Numa de minhas andanças pela Anchieta, fui tomado de entusiasmo por uma edição de Morte e Vida Severina, de João Cabral de Melo Neto, poeta pernambucano tido como um dos mais importantes da literatura brasileira. Não uma edição qualquer, dessas lançadas para suprir a demanda do mercado, mas uma edição especial comemorativa de 60 anos após sua publicação inicial em 1955. Daqueles livros que a gente começa a devorar pelo projeto gráfico, olhos e mãos dando pulos de alegria diante de biscoito tão refinado: capa dura e vermelha, papel pólen bold, apresentação de Antônio Carlos Secchin, entrevista com Chico Buarque e texto de Alceu Amoroso Lima. Como se não bastassem, a editora Alfaguara traz ainda a cronologia e a biografia do autor. Enfim, uma edição pra ser lida com a reverência que o texto exige e guardada com todo carinho possível.
Por mais vaga ideia que se tenha do livro, acredito que todo leitor, pelo menos o escolarizado, bem como o que assistiu na TV ou no cinema, lembre-se das agruras do retirante Severino fugindo da morte em busca de uma vida minimamente humana. Logo no começo da peça, não esquecer que se trata do Auto de Natal Pernambucano, nosso irmão nordestino manifesta quem é: “Como então dizer quem fala/ ora a Vossas Senhorias?/ Vejamos – é o Severino/ da Maria do Zacarias,/ lá da serra da Costela,/ limites da Paraíba.” Caso não recorde ainda, talvez a descrição que Severino faz de si próprio e de seus pares evoque reminiscências difíceis de esquecer: “E se somos Severinos/ iguais em tudo na vida,/ morremos de morte igual,/ mesma morte Severina:/ que é a morte de que se morre/ de velhice antes dos trinta,/ de emboscada antes dos vinte,/ de fome um pouco por dia…”
Escrita sob encomenda, a pedido da teatróloga Maria Clara Machado, a peça tinha poucas chances de ser um sucesso: não era nem de longe a obra do gosto do escritor recifense, que preferia “Uma Faca Só Lâmina”, texto de maior fôlego poético; teve a trilha sonora musicada por um compositor inexperiente, Chico Buarque de Holanda, que expressara, em certa ocasião, “eu não tinha domínio técnico da organização musical e peguei um trabalho um pouco maior do que podia”; sem falar também que seria montada por jovens atores, do grupo teatral Tuca, da PUC/SP, estudantes universitários que pisavam num palco pela primeira vez; e, por último, correndo grande risco de ser censurada pela ditadura militar, afinal quem mandou seu autor explorar logo um conteúdo de apelo social e político, falando de latifúndio e miséria e injustiça, temas proibidos na época.
A despeito de tudo, não é que a peça foi um estrondoso sucesso, tanto de público quanto de crítica, inclusive vencendo a competição no respeitadíssimo Festival de Nancy, na França. Há quem afirme que o sucesso do livro foi tanto que João Cabral, sobretudo, depois das adaptações para outros veículos – televisão, cinema, teatro e história em quadrinhos – chegou a temer pelo esquecimento do restante de seus livros. Ledo engano, uma vez que a partir daí só tem aumentado o interesse pela leitura e análise de sua extraordinária obra, em particular no meio acadêmico. E pensar que essa história tão banal do Severino, 60 anos depois, continua a inquietar nosso juízo: “Seu José, mestre carpina,/ que diferença faria/ se em vez de continuar/ tomasse a melhor saída – a de saltar, numa noite, fora da ponte e da vida?”.