Wellington Soares

Coisas e outras

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Peidar sem medo

Ninguém quis acreditar, dado o barulho feito, mas era a pura verdade: um peido havia explodido na sala, justo no momento em que todos assistiam, com a máxima atenção, ao programa preferido da família. A indignação foi geral, a começar pela mãe que, dedo em riste, apontou em direção ao filho caçula, Jivago, autor da façanha e um rebelde por natureza.

– Não ensinamos bons modos a você?

– Sim.

– Por que então esse despropósito?

– Li que faz bem à saúde.

– Como assim?

– Tanto de quem solta quanto de quem cheira.

– Quem disse tamanha eguagem?

– Cientistas britânicos, da Universidade de Exeter.

– Era só o que faltava!

– Dizem que previne contra várias doenças.

– Por exemplo?

– Câncer, AVC, ataque cardíaco, artrite e demência.

– Lorota das grandes.

– Não, pois fruto de muitos anos de pesquisa.

Calado até então, o pai resolveu entrar na conversa também, logo ele que, no começo, achava não passar de brincadeira do guri, pego no flagra ao soltar um pum.

– Viu onde, filho, tal informação?

– Na internet.

– Que tem de especial esses gases?

– Sulfato de hidrogênio, que preservam as mitocôndrias.

– E daí?

– Elas respondem pela produção de energia das nossas células.

– Só?

– Além de regular as inflamações presentes nelas.

– Feliz com essa notícia, não é mesmo?

– Claro, sempre gostei de peidar.

– Sabemos disso.

– Mas viviam reclamando de mim.

Nessa hora as duas irmãs, citadas indiretamente, não se contiveram e, em tom irônico, alfinetaram o bróder.

– Também pudera!

– Não entendi.

– Você mata qualquer um.

– Dá pra ser mais explicitas.

– Seus peidos parecem carniça.

– Quanto mais fedorentos, saibam disso, mais saudáveis são.

– Credo!

– Não sou eu que digo, queridinhas, mas cientistas renomados.

– Sei não, sei lá.

– Tem mais uma coisa que vocês precisam saber.

– Diga lá.

– As flatulências melhoram a relação entre os casais.

– Não é o contrário, não?

– Logo, tratem de curtir os puns dos namorados e vice-versa.

– Nojeira!

Ansiosa para voltar ao programa, a mãe pede silêncio a todos, quando é surpreendida mais uma vez pelo garotão, com sorriso de deboche estampado no rosto.

– Mais uma coisita, além do já dito.

– Seja breve.

– Não esqueçam que sou um revolucionário.

– Que tem isso a ver com peido?

– Minha missão é libertar o que está preso.

Sitiado

 

O tempo chuvoso despertou em mim, aconchegado na rede do quarto, uma vontade danada de ler um bom livro, talvez pra celebrar o início do inverno no Piauí e espantar, por alguns meses apenas, o calorzão danado que faz em Teresina, quando saltou da biblioteca, num passe de mágica, o romance Sitiado, de Edmar Oliveira, psiquiatra e conterrâneo radicado no Rio de Janeiro, que apresenta, em 210 páginas, a bem urdida história, entrelaçando fatos reais e ficcionais, da passagem da Coluna Prestes por estas bandas, sobretudo, o cerco feito à nossa capital nos idos de 1925, entre o natal e o ano novo, ninguém podendo sair ou entrar na cidade, com tropas legalistas de um lado, fiéis a Artur Bernardes e Matias Olímpio, presidente do Brasil e governador do Estado respectivamente, e do outro os revoltosos, sob comando dos revolucionários Miguel Costa/ Luís Carlos Prestes/Juarez Távora, todos prontos a iniciar uma batalha sangrenta, deixando inúmeros mortos de ambos os lados, na única capital do país a vivenciar tão perigosa situação, embora não seja isso, a meu ver, o aspecto mais crucial da trama, escrita em linguagem simples e envolvente, e sim, acredite, as personagens comuns que despontam ao longo da narrativa, a exemplo do ingênuo soldado Teodoro, fissurado em cordel de cavalaria, escutadas da avó, especialmente as aventuras do imperador Carlos Magno e seus Doze Pares de França, através das quais descobriu em sonho, certa noite, estar lutando do lado errado e, igual a Ferrabrás, se converte à fé de Oliveiros pela força inspiradora de Roldão, encarnado agora na figura do Cavaleiro da Esperança, tornando-se um rebelado fervoroso dali em diante, a ponto de abandonar a mulher, Ceiça, a quem incumbe de batizar o filho, caso não volte, de Luís Carlos; outra que se destaca no enredo é Bernardino da Mata, popularmente conhecido por Lenine do Maranhão, lavrador misto de socialista e espírita e vegetariano que, tendo suas terras confiscadas pelo governo, adere à Coluna a fim de dar cabo das injustiças dos latifundiários de Codó, levando consigo uns cabras destemidos que, depois de lutar em várias partes do Nordeste, abandona os revoltosos e retorna à terra natal onde, de cabelo e barba crescidos, vira um místico, sebastianista “que acreditava na volta de ‘el rei’ para libertar seu povo”, arrastando uma cruz e construindo grandes asas, com penas de aves, para alçar voos pro infinito; Seu Geraldo, quitandeiro esperto e esquisito, simpatizante dos revoltosos, é personagem das mais interessantes da obra, pois homem culto que já lera, numa época que imperava o analfabetismo, mais de cinco livros, o que não evitou de ser dedurado pelo próprio irmão, Zé Mário, miliciano integralista dos camisas verdes, para enorme desgosto dele que, no final, escapole em busca do amor de Donana,  a Ana Cecília, mulher empreendedora e independente, fina nos costumes e capaz de entabular conversa agradável sobre Dumas, Victor Hugo, Balzac e Flaubert, escritores de sua preferência; gostei muito também de duas outras figuraças do enredo: Abdon, mascate libanês e aprendiz de mágico, adere à Coluna por causa de dívidas, morto na cruel batalha de Propriá; e João do Fato, magarefe matador de bodes, nunca aceitando ser chamado João Fuçura, meio amalucado que, vestido de terno de linho claro, faz discursos nas ruas profetizando a tomada do governo por Prestes, apesar do fim da Coluna nas matas da Bolívia, objetivando restituir a monarquia sob a tutela de Dom Pedro, numa aliança esdrúxula com os comunistas de Moscou; e, quando dei pelo tempo, concluída a leitura do instigante livro, o dia acordava anunciando um domingo ensolarado, eu grávido da certeza, agora confirmada, depois de já ter lido Terra do Fogo, sua estreia no texto de matriz ficcional, narrativa de fundo histórico sobre as queimadas criminosas em Teresina, em plena ditadura Vargas, que Edmar Oliveira, com seu Sitiado, desponta como romancista dos mais talentosos da contemporânea literatura piauiense, quiçá, também da literatura em língua portuguesa.

Ricaços num país de pobres

Embora não quisesse acreditar, a realidade era aquela estampada nos jornais. Dura e crua, indigesta mesmo: seis brasileiros mais ricos concentram a mesma riqueza que os 100 milhões de brasileiros mais pobres. As vísceras se revoltam no estômago. Perturbados, os olhos correm a vista pela matéria sucessivas vezes. Fica difícil acalmar o juízo, a indignação grita um sonoro e espontâneo palavrão – calhordas. Como entender que tão poucos, seis apenas, detenham tanto num Brasil de muitos que vivem à míngua? A sensação de que o fosso social só aumenta não é nada confortável, sobretudo, quando nossa elite se mostra cada dia mais egoísta e indiferente ao sofrimento da quase metade da população nacional, incluindo os atuais 12 milhões de desempregados. Mesmo se dizendo cristãos ou evangélicos, são incapazes de dividir, surdos à lição do Senhor, pães e peixes entre os demais irmãos, a exemplo do que fez Jesus Cristo.

Nas igrejas que frequentam, eles costumam repetir mecanicamente, esboçando gesto de sentida emoção, o trecho bíblico sobre a multiplicação de alimentos: “E, tendo mandado que a multidão se assentasse sobre a relva, tomando os cinco pães e os dois peixes, erguendo os olhos ao céu, os abençoou. Depois, tendo partido os pães, deu-os aos discípulos, e estes, às multidões.” Questionados a respeito de tamanha riqueza, respondem sempre que é fruto de muito trabalho, jamais da esperteza e da exploração de seus semelhantes. Se os outros não conseguem ter uma vida melhor, ainda debocham, que haja paciência, longe da culpa ser deles, que passem a acordar mais cedo e batalhem sem trégua. Cínicos, ainda gozam por cima: “Deus ajuda a quem cedo madruga”.

Quanto aos 100 milhões de brasileiros, correspondente à riqueza total dos seis, que se contentem em sobreviver com as migalhas, dividindo solidariamente o que sobrou do farto banquete da burguesia econômica. Caso alguns se rebelem, ou tentem tomar à força, que sejam presos e trancafiados, mantidos apartados do convívio social. Assim, tomam consciência, desde cedo, do seu verdadeiro lugar dentro da sociedade excludente. Daí a importância do Estado no sentido de construir mais presídios e contratar mais agentes da lei. Afinal, como pensam  esses bilionários, os conflitos de classe devem ser resolvidos com severa intervenção policial. Contanto, que a bendita propriedade de suas riquezas permaneça inalterada e, de preferências, em “boas, poucas e sábias mãos”.

No fundo, os de cima sentem-se como os “escolhidos” da vontade divina, achando a concentração de renda e a exclusão social realidades mais do que naturais. Entretanto, aceitam de bom grado a ideia de um “céu” igualitário e fraterno, onde todos sejam irmãos e, sentados à mesa juntos, saboreiem os mesmos pães e peixes. De preferência lá em riba, é claro, porque aqui, no Brasil, a história é diferente, com a ganância impregnando suas medíocres almas. Cazuza já profetizava sabiamente, antes de partir, a sentença implacável: “a burguesia fede, enquanto houver burguesia não vai haver poesia”.

Medo de Avião

Convencer o pai a tomar um avião não foi tarefa fácil, trabalho que levou anos. Mas eles, os filhos, nunca desistiram. A cada ano repetiam o convite e, claro, apresentavam novos argumentos. Sempre reforçando a mesma tese: transporte aéreo era o mais seguro de todos. Desconfiado, Seu Amaral dizia que tudo bem, mas ao cair, o que não era tão raro assim, não sobrava ninguém pra contar a história. A mulher, embora pensasse diferente, fechava com ele. Até que um belo dia, tomado de coragem repentina, resolveu enfrentar os receios e visitar os pimpolhos na Cidade Maravilhosa, onde moravam há bastante tempo. As coisas caminhavam bem, no aeroporto, até a moça, no balcão da companhia, solicitar-lhe um telefone para contato.

– Posso saber pra quê?

– Caso ocorra algo.

– De que tipo?

– Nada não, senhor, pura formalidade.

– Como assim?

– Apenas um procedimento de segurança.

– Vocês já não têm meu contato?

– Não serve, senhor.

– Não serve?

– Tem de ser de um parente próximo.

– Por quê?

– Norma da empresa.

– Com que finalidade?

– Avisar numa emergência.

– Que emergência?

– Sinto muito, mas o senhor está atrapalhando a fila.

– Atrapalhando?

– Sim, ao recusa dar o telefone.

– Recusar não, quero entender apenas que emergência é essa.

– Uma emergência qualquer, senhor.

– Isso é muito genérico, não acha senhorita?

– Não, pois ninguém questionou até hoje.

– Eu não sou ninguém, mas um cliente que exige uma resposta plausível.

Estavam nesse impasse, quando o gerente da empresa, solicitado por um grupo de passageiros, interveio na conversa entre os dois, dirigindo-se gentilmente ao desconfiado Amaral. Com um pouco de habilidade, quem sabe não conseguisse o tal de contato.

– Em que posso ajudá-lo, senhor?

– Respondendo que emergência é essa.

– Quem falou em emergência?

– Sua funcionária.

– Força de expressão apenas, senhor.

– Qual a razão dessa exigência, então?

– Pura formalidade burocrática.

– Sou obrigado a dizer?

– Infelizmente, sim.

– Vocês estão escondendo algo de mim?

– Longe de nós, senhor.

– Por que essa exigência absurda?

– A imprevisibilidade do futuro.

– Um acidente com o avião, por acaso?

– Não falei isso, senhor.

– Mas deixou em aberto.

– Não dificulte nosso trabalho, por favor.

– Dificultar?

– Queremos tão somente o contato de alguém próximo.

– Pra quê?

– Entrar em contato, havendo necessidade.

– Sei!

E mais não disse, Seu Amaral, desistindo da viagem. Poderiam culpá-lo por tudo, exceto que nem tentou embarcar naquele pássaro de ferro. Não fosse a expressão emergência, dita pela atendente, teria matado a saudade de Camila e Júnior, filhos amados; e, ainda, conhecido as belezas naturais do Rio de Janeiro. Já em casa, mais tranquilo, não tardou muito a receber uma ligação pra lá de triste. A voz inconfundível, do outro lado da linha, era bastante familiar.

– Mas pai…

– Desculpa, filho.

– Nem pra avisar que não tinha dado certo.

– Fiquei com vergonha.

– De quê?

– Difícil explicar o medo em relação a avião.

– Entenderíamos.

– Na próxima vez, quem sabe.

– O avião chegou na hora e sem problema.

– Talvez porque não embarquei.

– Essa não, velho, assim já é demais.

– Diga pra Camila que sinto muito.

– Como está mamãe?

– Assim como vocês, frustrada comigo.

– Também não é pra menos, velho.

– Quem pôs tudo a perder foi a mocinha da Gol.

– Que tem ela?

– Falou em emergência.

– Como assim?

– Pediu um telefone em caso de emergência.

– Uma praxe da empresa, pai.

– Por que falar em emergência a quem morre de medo de avião?

– Sei lá!

– Pensei logo no pior.

– Tipo?

– Colisão num morro, todos mortos, inclusive eu e a mãe de vocês.

– Melhor dormir agora, velho, e esquecer tudo isso.

– Boa ideia, filhão!

Grávidos de amor

Pelo tom choroso da prima, não tive dúvida, Irina havia morrido. A coitada quase não conseguia falar, tamanho o desespero, com os soluços entrecortando as palavras. Do pouco que ouvi, vez que meu corpo entrou em parafuso, não sentindo chão nem pernas, juntei sons disparatados que criaram algum sentido: curva, moto, velocidade, pescoço, São Benedito, perigosa, quebrado, igreja, não entendo e, numa súplica sussurrante, vem pra cá. Embora a vontade fosse essa, estar no velório pra despedida final da Irina, grande amor de minha vida, tracei roteiro diferente a fim de aplacar dor tão angustiante. Peguei a mochila, pus roupas e livros, e, a pé, tomei a estrada em busca do mar, em nosso distante litoral. Sozinho e sem ninguém pra perturbar, quem sabe, pensei comigo, não encontraria paz no coração e sossego na alma. Sem falar ainda, talvez, nalguma explicação pro ocorrido. Como sempre gostei de caminhar, feito andarilho, pouco mais de 300 km nada seriam para relembrar os momentos felizes vividos com Irina. A começar pelo começo, quando nos conhecemos após assistir ao Último dos moicanos, bela história de amor entre um “índio” branco, Nathaniel Hawkeye, e uma jovem inglesa, Cora Munro,ela comovida por me ver chorando num canto do shopping, gesto pouco visto nos homens. Durante a carona até em casa, que aceitei de bom grado, vi que era uma mulher especial, delicada e sensível. Mesmo embirado a outra garota, não resisti aos encantos da Irina e, sem pestanejar, saltei no precipício escuro, nem aí pras consequências e a vida boa às custas da Soraya, mulher de deputado. Em pouco tempo, joguei tudo pro alto, flechado por Cupido, e fui tratar do amor,plantinha que exige cuidado redobrado e constante, do contrário murcha e vai brotar noutros jardins. Arriado os quatro pneus, relevava seu noivado com famoso advogado criminalista e, tampouco, o caso homoafetivo com Isaura, a prima lindíssima, que anunciara sua partida. Inteira quando estivesse comigo, um tantinho de tempo qualquer, era o que importava de fato, contanto que nunca mais ficasse apartado dela. Daí em diante, minha vida ganhou sentido e mergulhou em sentimentos desconhecidos, mas instigantes do ponto de vista do inusitado. Irina era intensa e sabia agasalhar como ninguém, doando-se toda e sem pudor. Quando menos esperava, chegava ela com o sorriso franco e o olhar enigmático, difícil de resistir tal  seu poder de sedução. Fechada a porta do quitinete, nossos corpos fundiam-se num único desejo: transcender o plano físico por meio do sexo intenso e visceral. Pena ter durado tão pouco, menos de dois anos. A paixão pela velocidade, pilotando uma moto 500 cilindradas, acabou o que era doce, abrindo em mim um vazio enorme e dolorido. E pior, difícil de cicatrizar, mesmo o tempo sendo pródigo em curar as dores. Talvez não queira, no fundo, que isso acabe nunca, até porque ouço ainda hoje, agora de forma compreensível, o telefonema que me fez cair do trapézio – Irina morrera na curva perigosa da igreja São Benedito, o pescoço quebrado, ao perder o controle da moto por excesso de velocidade. Isaura jamais me perdoou, de todo, por ter sumido justo no momento em que mais precisou de mim, de um ombro amigo capaz de dimensionar quem foi Irina e o que representou, de fato, em nossas vidas. Por mais que tenha explicado que, diante da morte, reagimos, cada um a seu modo, de forma diferente, ela parece não entender ou não querer entender, o que é muito pior. Passado a turbulência, embora o vazio não afrouxe um minuto sequer, trato de regar diariamente a flor que plantei em sua homenagem, no pezinho da árvore onde meu amor se encantou de vez, deixando saudade. Talvez ela fique feliz em saber que Isaura e eu estamos grávidos de uma menininha e que, de comum acordo, será batizada com o nome mais bonito de todos: Irina.