O tempo chuvoso despertou em mim, aconchegado na rede do quarto, uma vontade danada de ler um bom livro, talvez pra celebrar o início do inverno no Piauí e espantar, por alguns meses apenas, o calorzão danado que faz em Teresina, quando saltou da biblioteca, num passe de mágica, o romance Sitiado, de Edmar Oliveira, psiquiatra e conterrâneo radicado no Rio de Janeiro, que apresenta, em 210 páginas, a bem urdida história, entrelaçando fatos reais e ficcionais, da passagem da Coluna Prestes por estas bandas, sobretudo, o cerco feito à nossa capital nos idos de 1925, entre o natal e o ano novo, ninguém podendo sair ou entrar na cidade, com tropas legalistas de um lado, fiéis a Artur Bernardes e Matias Olímpio, presidente do Brasil e governador do Estado respectivamente, e do outro os revoltosos, sob comando dos revolucionários Miguel Costa/ Luís Carlos Prestes/Juarez Távora, todos prontos a iniciar uma batalha sangrenta, deixando inúmeros mortos de ambos os lados, na única capital do país a vivenciar tão perigosa situação, embora não seja isso, a meu ver, o aspecto mais crucial da trama, escrita em linguagem simples e envolvente, e sim, acredite, as personagens comuns que despontam ao longo da narrativa, a exemplo do ingênuo soldado Teodoro, fissurado em cordel de cavalaria, escutadas da avó, especialmente as aventuras do imperador Carlos Magno e seus Doze Pares de França, através das quais descobriu em sonho, certa noite, estar lutando do lado errado e, igual a Ferrabrás, se converte à fé de Oliveiros pela força inspiradora de Roldão, encarnado agora na figura do Cavaleiro da Esperança, tornando-se um rebelado fervoroso dali em diante, a ponto de abandonar a mulher, Ceiça, a quem incumbe de batizar o filho, caso não volte, de Luís Carlos; outra que se destaca no enredo é Bernardino da Mata, popularmente conhecido por Lenine do Maranhão, lavrador misto de socialista e espírita e vegetariano que, tendo suas terras confiscadas pelo governo, adere à Coluna a fim de dar cabo das injustiças dos latifundiários de Codó, levando consigo uns cabras destemidos que, depois de lutar em várias partes do Nordeste, abandona os revoltosos e retorna à terra natal onde, de cabelo e barba crescidos, vira um místico, sebastianista “que acreditava na volta de ‘el rei’ para libertar seu povo”, arrastando uma cruz e construindo grandes asas, com penas de aves, para alçar voos pro infinito; Seu Geraldo, quitandeiro esperto e esquisito, simpatizante dos revoltosos, é personagem das mais interessantes da obra, pois homem culto que já lera, numa época que imperava o analfabetismo, mais de cinco livros, o que não evitou de ser dedurado pelo próprio irmão, Zé Mário, miliciano integralista dos camisas verdes, para enorme desgosto dele que, no final, escapole em busca do amor de Donana, a Ana Cecília, mulher empreendedora e independente, fina nos costumes e capaz de entabular conversa agradável sobre Dumas, Victor Hugo, Balzac e Flaubert, escritores de sua preferência; gostei muito também de duas outras figuraças do enredo: Abdon, mascate libanês e aprendiz de mágico, adere à Coluna por causa de dívidas, morto na cruel batalha de Propriá; e João do Fato, magarefe matador de bodes, nunca aceitando ser chamado João Fuçura, meio amalucado que, vestido de terno de linho claro, faz discursos nas ruas profetizando a tomada do governo por Prestes, apesar do fim da Coluna nas matas da Bolívia, objetivando restituir a monarquia sob a tutela de Dom Pedro, numa aliança esdrúxula com os comunistas de Moscou; e, quando dei pelo tempo, concluída a leitura do instigante livro, o dia acordava anunciando um domingo ensolarado, eu grávido da certeza, agora confirmada, depois de já ter lido Terra do Fogo, sua estreia no texto de matriz ficcional, narrativa de fundo histórico sobre as queimadas criminosas em Teresina, em plena ditadura Vargas, que Edmar Oliveira, com seu Sitiado, desponta como romancista dos mais talentosos da contemporânea literatura piauiense, quiçá, também da literatura em língua portuguesa.