Embora não quisesse acreditar, a realidade era aquela estampada nos jornais. Dura e crua, indigesta mesmo: seis brasileiros mais ricos concentram a mesma riqueza que os 100 milhões de brasileiros mais pobres. As vísceras se revoltam no estômago. Perturbados, os olhos correm a vista pela matéria sucessivas vezes. Fica difícil acalmar o juízo, a indignação grita um sonoro e espontâneo palavrão – calhordas. Como entender que tão poucos, seis apenas, detenham tanto num Brasil de muitos que vivem à míngua? A sensação de que o fosso social só aumenta não é nada confortável, sobretudo, quando nossa elite se mostra cada dia mais egoísta e indiferente ao sofrimento da quase metade da população nacional, incluindo os atuais 12 milhões de desempregados. Mesmo se dizendo cristãos ou evangélicos, são incapazes de dividir, surdos à lição do Senhor, pães e peixes entre os demais irmãos, a exemplo do que fez Jesus Cristo.

Nas igrejas que frequentam, eles costumam repetir mecanicamente, esboçando gesto de sentida emoção, o trecho bíblico sobre a multiplicação de alimentos: “E, tendo mandado que a multidão se assentasse sobre a relva, tomando os cinco pães e os dois peixes, erguendo os olhos ao céu, os abençoou. Depois, tendo partido os pães, deu-os aos discípulos, e estes, às multidões.” Questionados a respeito de tamanha riqueza, respondem sempre que é fruto de muito trabalho, jamais da esperteza e da exploração de seus semelhantes. Se os outros não conseguem ter uma vida melhor, ainda debocham, que haja paciência, longe da culpa ser deles, que passem a acordar mais cedo e batalhem sem trégua. Cínicos, ainda gozam por cima: “Deus ajuda a quem cedo madruga”.

Quanto aos 100 milhões de brasileiros, correspondente à riqueza total dos seis, que se contentem em sobreviver com as migalhas, dividindo solidariamente o que sobrou do farto banquete da burguesia econômica. Caso alguns se rebelem, ou tentem tomar à força, que sejam presos e trancafiados, mantidos apartados do convívio social. Assim, tomam consciência, desde cedo, do seu verdadeiro lugar dentro da sociedade excludente. Daí a importância do Estado no sentido de construir mais presídios e contratar mais agentes da lei. Afinal, como pensam  esses bilionários, os conflitos de classe devem ser resolvidos com severa intervenção policial. Contanto, que a bendita propriedade de suas riquezas permaneça inalterada e, de preferências, em “boas, poucas e sábias mãos”.

No fundo, os de cima sentem-se como os “escolhidos” da vontade divina, achando a concentração de renda e a exclusão social realidades mais do que naturais. Entretanto, aceitam de bom grado a ideia de um “céu” igualitário e fraterno, onde todos sejam irmãos e, sentados à mesa juntos, saboreiem os mesmos pães e peixes. De preferência lá em riba, é claro, porque aqui, no Brasil, a história é diferente, com a ganância impregnando suas medíocres almas. Cazuza já profetizava sabiamente, antes de partir, a sentença implacável: “a burguesia fede, enquanto houver burguesia não vai haver poesia”.