Wellington Soares

Coisas e outras

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Sertão é dentro da gente

 

      Nestes dias chuvosos lembrei, deitado numa rede aconchegante, da bela história de amor, infelizmente não concretizada, entre Riobaldo e Diadorim, protagonistas de Grande Sertão: Veredas, romance de Guimarães Rosa. Narrativa que desponta, sem dúvida, como meu alumbramento maior em termos literários. O impacto da leitura foi tamanho que faltou ar para respirar, além de deixar em mim atroz sentimento de culpa por não ter degustado a obra antes. Explico: tive a grata sensação de encontrar num só livro todos os outros já lidos, tanto do ponto de vista da variedade temática quanto da profundidade de enfoque. Algumas frases garimpadas ao longo do texto, nas suas mais de 500 páginas, nos permitem dimensionar a grandeza desse enredo.

        “Quem muito se evita, se convive.”

        “Ah, a gente, na velhice, carece de ter sua aragem de descanso.”

        “É, e não é. O senhor ache e não ache. Tudo é e não é…”

        “Diverjo de todo o mundo… Eu quase que nada não sei. Mas desconfio de muita coisa.”

        “Todo-o-mundo é louco. O senhor, eu, nós, as pessoas todas. Por isso é que se carece de religião: para se desendoidecer, desdoidar. Reza é que sara da loucura.”

        “Moço!: Deus é paciência. O contrário, é o diabo.”

        “Por enquanto, que eu penso, tudo quanto há, neste mundo, é porque merece e carece.”

        “Sertão. O senhor sabe: sertão é onde manda quem é forte, com as astúcias. Deus mesmo, quando vier, que venha armado! E bala é um pedacinhozinho de metal…”

        “O senhor sabe: há coisas de medonhas demais, tem. Dor do corpo e dor da ideia marcam forte, tão forte, tão forte como o todo amor e raiva de ódio.”

        Das genialidades do escritor de Cordisburgo, cidadezinha do interior de Minas, gosto mesmo é da linguagem esquisita, organizada a seu modo, demonstrando a riqueza de nossa língua, liberta dos padrões asfixiantes da norma culta. As palavras assumindo outras possibilidades, provocando estranheza num primeiro momento, mas nos deliciando em seguida. Poesia e musicalidade em prosa refinada, como se pode constatar noutras passagens do romance.

        “O senhor… Mire veja: o mais importante e bonito, do mundo, é isto: que as pessoas não estão sempre iguais, ainda não foram terminadas – mas que elas vão sempre mudando. Afinam ou desafinam. Verdade maior. É o que a vida me ensinou. Isso que me alegra, montão.”

        “Remei vida solta. Sertão: estes seus vazios.”

        “O senhor vá pondo seu perceber. A gente vive repetido, o repetido, e, escorregável, num mim minuto, já está empurrado noutro galho.”

        “Digo: o real não está na saída nem na chegada: ele se dispõe para a gente é no meio da travessia.”

        “Ser chefe – por fora um pouquinho amarga; mas, por dentro, é rosinhas flores.”

        “Cada hora, de cada dia, a gente aprende uma qualidade nova de medo!”

        “Vingar, digo ao senhor: é lamber, frio, o que outro cozinhou quente demais.”

        “Diz-que-direi ao senhor o que nem tanto é sabido: sempre que se começa a ter amor a alguém, no ramerrão, o amor pega e cresce é porque, de certo jeito, a gente quer que isso seja, e vai, na ideia, querendo e ajudando; mas, quando é destino dado, maior que o miúdo, a gente ama inteiriço fatal, carecendo de querer, e é um só facear com as surpresas. Amor desse, cresce primeiro; brota é depois.”

        “Pensar mal é fácil, porque esta vida é embrejada. A gente vive, eu acho, é mesmo para se desiludir e desmisturar.”

        “Desespero quieto às vezes é o melhor remédio que há. Que alarga o mundo e põe a criatura solta. Medo agarra a gente é pelo enraizado.”

        “Viver perto das pessoas é sempre dificultoso, na face dos olhos.”

        Garanto que não há prazer maior que tirar um final de semana, notadamente neste comecinho ainda de ano, entre o Carnaval e a Semana Santa, para refletir sobre o intrincado e complexo jogo da vida. As tiradas filosóficas do mestre Guimarães Rosa nos proporcionam luz nesta travessia existencial nem sempre clara. Daí valer a pena substituir a indigesta programação televisiva aos domingos, com cada programa pior que o outro, pela mais fascinante história literária já escrita até hoje. Afirmo sem medo de decepcionar meus leitores.

        “Amigo, para mim, é só isto: é a pessoa com quem a gente gosta de conversar, do igual o igual, desarmado. O de que um tira prazer de estar próximo. Só isto, quase; e os todos sacrifícios. Ou – amigo – é que a gente seja, mas sem precisar de saber o por quê é que é.”

        “Homem foi feito para o sozinho? Foi.

        “Sertão: é dentro da gente.”

        “Viver é muito perigoso.”

         “Mestre não é quem sempre ensina, mas quem de repente aprende.”

        “Qualquer amor já é um pouquinho de saúde, um descanso na loucura.”

        “O correr da vida embrulha tudo, a vida é assim: esquenta e esfria, aperta e daí afrouxa, sossega e depois desinquieta. O que ela quer da gente é coragem.”

        “O que Deus quer é ver a gente aprendendo a ser capaz de ficar alegre a mais, no meio da alegria, e inda mais alegre ainda no meio da tristeza!

Mil vezes boa noite

Filme bom é aquele que, além de emocionar nossa alma, desperta o desejo na gente de socializar com os amigos. Uma vontade premente de pegar o celular e ligar pra Deus e o mundo, sugerindo que não deixem de ver, de jeito nenhum, tal produção cinematográfica. Daqueles que chegamos, inclusive, a apelar sutilmente: “Não deixe de assistir antes de morrer”. Diante da imprevisibilidade do futuro, a pessoa não perde tempo e corre atrás. Mas qual filme específico, desembucha logo, deixou este cronista tão empolgado assim? Trata-se de Mil vezes boa noite, do cineasta norueguês Erik Poppe, lançado em 2013, um drama que retrata a vida perigosa de uma fotojornalista especializada guerra (Rebecca), interpretada magistralmente pela atriz Juliette Binoche.

O começo da história é apavorante, de tirar o fôlego do espectador. Uma das cenas mais fortes do filme. No Afeganistão, Rebecca presencia o ritual macabro de uma mulher-bomba, desde a simulação do enterro em cova até a instalação de explosivos no corpo. Achando pouco, solicita permissão para acompanhá-la na missão suicida. A tensão dentro do carro é grande, com ela registrando os instantes que antecedem o atentado, inclusive o momento da explosão no mercado, apinhado de gente, resultando em várias mortes e um monte de feridos, ela escapando por sorte. Mesmo tonta e assustada, quase não se aguentando em pé, Rebecca dispara sua máquina a fim de documentar tudo. Aqui surge indagação pra lá de pertinente: é ético buscar a beleza na destruição e na morte? Ou, ainda, vale a pena colocar a vida em risco pra saciar a fome de cadáveres da grande mídia e dos leitores dessas notícias fúnebres?

De volta ao seio familiar, a fotógrafa trava uma luta difícil para se recuperar das cicatrizes físicas e dos traumas psicológicos, até porque se sente culpada pelo atentado. Mal sabe ela que a peleja mais dura será reconquistar a confiança do marido e das duas filhas, que sofrem com suas prolongadas ausências cobrindo guerras pelo mundo. O contato com eles é feito, aliás, mais por telefonema do que presencialmente. Daí o enigmático título do filme, referência à quantidade de ligações dada, à noite, aos entes queridos. Num diálogo com Step, filha mais velha, esta a indaga por que começou a tirar fotos de guerra, recebendo de Rebecca a seguinte resposta: “Raiva”, reportando-se à indiferença do mundo em relação ao massacre de inocentes, sendo as fotos que tira instrumento importante na denúncia dessa barbárie. Os massacres hoje na síria tornam a película extremamente atual.

Optando pela família, Rebecca resolve aposentar a máquina de fotografia, sob protesto da editora do jornal, e dar uma reviravolta na vida. Sua decisão a aproximou das filhas e trouxe de volta o amor de Marcus (Nikolaj Coster-Waldau), com o casal retomando o idílio amoroso de outrora. Mas o convite de um amigo, para cobrir um acampamento de refugiados no Quênia, põe tudo a perder. Ela só aceita por garantirem não haver conflito armado e por insistência da própria filha, que deseja apresentar trabalho na escola sobre esse tema. Ao chegar lá, a história é outra, o acampamento invadido por tribos inimigas e a matança correndo solta. Mesmo pondo a vida de Step em perigo, Rebecca saca a máquina e não parar de fotografar. Ao saber do ocorrido, o marido sentencia, revoltado: “Quero você fora desta casa”. Triste de dar pena, a coitada apenas murmura: “Comecei algo de que não posso fugir”.

E qual o desfecho do filme? Rebecca retorna a Cabul para cobrir, a pedido do jornal, o ritual preparatório das mulheres-bombas, deparando-se desta vez com uma garota quase da idade de sua filha. E aí? Aí que não sou estraga-prazer pra contar o final, cena que embrulha nosso estômago em definitivo.

Teresina frienta

Dizendo, as pessoas nem acreditam: Teresina está fria ultimamente. Não é gozação, mas a pura verdade. Distante dos 40 graus costumeiros, temos agora somente uns 25. Tudo por conta das chuvas quase diárias. Não uma chuvinha qualquer, mas toró dos bons, com direito a relâmpagos e trovoadas de meter medo. Daí o outrora nome de Chapada do Corisco dado à nossa capital. Chuvaceiro dos grandes, como diria Pero Vaz de Caminha, resultando um friozinho gostoso pra danar, convite irrecusável a ficarmos em casa. De preferência, enrolados numa boa coberta e deitados na cama ou, melhor ainda, em rede de Pedro II. Tendo a amada juntinho, pernas e braços entrelaçados, aí não levantamos mesmo, nem sob intimação da justiça. Aceitamos no máximo, dando uma pausa no sono, e olhe lá, um café com leite pra esquentar o esqueleto. Sendo chocolate, o nocaute é fatal, difícil recuperar tão cedo.

Esse tempo acorda em mim lembranças da adolescência, lá na Clodoaldo Freitas, rua próxima ao estádio Lindolfo Monteiro, quando aproveitava pra banhar de chuva, nas goteiras de casa ou a céu aberto, pouco ligando aos perigos dessas peraltices em pleno inverno. Inesquecível eram as peladas, debaixo de tromba d’água, com os amigos da redondeza, a bola de plástico quase invisível e todos roxos de frio, os dentes trincando sem parar. Deitar numa prancha (isopor/madeira), ou usando apenas o corpo, e ser levado pela correnteza, livre como peixe, não tinha brincadeira melhor. Penoso era voltar para casa depois, encarar a palmatória de Seu Tomé e uma crise de asma de tirar o fôlego. Prometer que não faria mais aquilo até que prometia – quem gosta de sofrer? -, mas bastava a chuva despontar no horizonte que eu escapulia novamente.

Diferentemente de outros brasileiros, saudamos a chuva, no inverno ou a qualquer momento, com muita festança, dizendo que está “bonito pra chover”, expressão típica dos piauienses. Agradecida, a natureza reage de imediato, logo no dia seguinte, árvores despertando verdinhas em várias tonalidades. A secura no campo dá lugar à vida brotando feliz da terra, ao cheiro delicioso do chão e à sinfonia marcante dos pássaros. Até o estado de espírito das pessoas, inclusive nestes tempos sombrios, melhora significativamente, tornando-as mais otimistas. Sem falar de alegres também, sorriso escancarado no rosto. Sinônimo de boa lavoura e fartura na mesa, segundo os camponeses. Evoca ainda poemeto de Gabriel Chalita, escritor paulista: “Ora a chuva poetiza a vida, ora o sol,/ às vezes brincam de chegar juntos. Às vezes/ trazem o arco-íris para completar o espetáculo./ e vão embora. E ficam em nós”.

Convite irrecusável, este dos pés d’água, para ler livros e ver filmes bons, daqueles que despertam na gente o prazer da existência, fora uma tolerância maior com os absurdos do mundo. Da literatura local, o heroísmo comovedor de Mandu Ladino, tão bem retratado por Anfrísio  Neto Lobão, guerreiro indígena que enfrentou os desmandos dos fazendeiros na Capitania do Piauí durante nossa colonização, começo do século XVIII. Das letras nacionais, nada menos que Novos contos eróticos, antologia de textos “pornográficos” de Dalton Trevisan, autor curitibano que desnuda, sem papas na língua, as taras do homem brasileiro, socando o provincianismo nacional com um jab de direita. Entre os filmes, destaco a nova versão de Madame Bovary (2015), da diretora Sophie Barthes, inspirado no romance homônimo de Gustave Flaubert, história centrada nos desenredos amorosos e final trágico de Emma Bovary, traída pelos próprios sentimentos.

Paraíso do Tuiuti

Quando pensávamos que tudo estava perdido, no tocante aos protestos  políticos, eis que surge em plena Sapucaí, com enredo e desfile engajados, a Paraíso do Tuiuti trazendo um sopro de esperança ao povo brasileiro. Mais do que isto, libertando o grito de indignação dos que não aceitam ver nossas riquezas entregues aos gringos, de mão beijada e a preço de banana, nem os direitos históricos reduzidos aos tempos da escravidão. Tudo dito e mostrado, em cores e horário nobre, com muita irreverência, ironia e sarcasmo, apesar do silêncio constrangedor dos comentaristas da Globo. Por um décimo apenas, a escola de São Cristóvão, bairro do subúrbio carioca, não levou o título de campeã do Carnaval 2018, embora tenha ganho, disparado, no coração e na mente dos foliões democráticos do país inteiro.

Segundo Jack Vasconcelos, carnavalesco da Tuiuti, a arte tem por função despertar o pensamento e a visão crítica das pessoas. Além de fazer ecoar, sobretudo, as angústias da comunidade que representa. Daí a escolha de “Meu Deus, meu Deus, está extinta a escravidão?”, como enredo da escola, tema geralmente incômodo às elites econômicas e políticas do país. Uma paráfrase inteligente de Navio Negreiro, canto abolicionista de Castro Alves, poeta baiano que já denunciava essa iniquidade no século XIX.  A inspiração teria nascido depois de ler A elite do atraso: da escravidão a lava jato, do sociólogo Jessé Souza, obra que desnuda o Brasil atual marcado por uma sociedade, ou parte dela, sem culpa nem remorso que humilha e mata os pobres. O refrão do samba enredo não deixa dúvidas: “Meu Deus! Meu Deus! / Se eu chorar, não leve a mal / Pela luz do candeeiro / Liberte o cativeiro social”.

Os foliões presentes na Sapucaí, bem como os que assistiam pela TV, foram ao delírio durante o desfile, aplaudindo de pé e entoando cada verso da Tuiuti, sentindo a alma lavada no grito de protesto e na lindeza das fantasias encarnadas pela escola de São Cristóvão. Num dos carros alegóricos, batizado de Neo Tumbeiro, que despertou maior atenção do público, aparecia o Vampirão neoliberalista com faixa presidencial, um dos cantos da boca ainda escorrendo sangue dos trabalhadores. Logo abaixo, vinham os Manifestoches vestidos de verde e amarelo, em camisas da seleção brasileira, quase todos perdidos com cartazes na mão e idiotizados pela grande mídia. Não faltaram bordoadas também à famigerada reforma trabalhista e aos patinhos amarelos da Fiesp, entidade interessada em chupar o sangue e o suor da classe laboral.

Mesmo sem ter havido a intenção, se é que não houve, estava presente no desfile da Paraíso do Tuiuti o espírito irreverente e polêmico de Oswald de Andrade, nosso modernista antropofágico, que afirmara certa vez, lá pelos idos de 1928, que “antes dos portugueses descobrirem o Brasil, o Brasil já havia descoberto a felicidade”. Significando dizer que, desde nossos ancestrais até hoje, o povo brasileiro não abre mão, nem que a vaca tussa, do direito em ser feliz, de ter uma vida digna e cidadã. Plantada em educação, saúde, emprego, segurança, comida na mesa, diversão e aposentadoria antes de bater as botas. Que não se deixa enganar facilmente, expressando sua rebeldia sempre que necessário, ainda mais quando o país e o mundo estão de butuca ligada em nossa festança máxima. Ou a alegria não é a prova dos nove?

Sedução

Como tudo começou, nem eu mesma sei. Foi num relance, fração de segundos, meus olhos seduzidos pelo sorriso dela. Um sorriso enigmático e provocador, expresso em plena sala de aula, de forma bem sutil, sutilíssima. Daqueles que nos amolecem todinha por dentro, sem escapatória. Ninguém percebeu, na turma, mas sabia que era pra mim. Essas coisas não precisam ser ditas, a gente sente de longe, e fica paralisada, esperando ter certeza. Pura ingenuidade, pois os sinais haviam sido dados. Voz mansa comigo. Alegria nos encontros.  Cumprimentos afetuosos. Atenção em meu aprendizado, sobretudo. Sem gosto pelos livros, tinha dificuldade em escrever. Depois do convite implícito, já feito algumas vezes, como recusar aulas de redação em seu apartamento? Tudo lá, acredite, transpirava poesia e envolvimento. Invés de regras, no primeiro dia, ouvi textos de Hilda Hilst e Adélia Prado. Maravilhada, deixei-me possuir tanto por belas palavras quanto por mãos tarimbadas na arte do amor. Dali em diante, um mundo novo se descortinou para mim, mais envolvente e prazeroso. A ponto de dizer hoje, ó bendita a que educa, em todos os sentidos, virgens na tessitura das letras e no gozo dos corpos, síntese divina de múltiplos orgasmos. Respondendo essa bendita, no meu caso, pelo singelo nome de Sandra, professora das mais competentes em sua área, a desafiadora língua portuguesa. De seus apetitosos lábios, nunca esquecidos, ouço ainda Porque há desejo em mim, da poeta paulista, sem antes ficar molhadinha.

Porque há desejo em mim, é tudo cintilância.

Antes, o cotidiano era um pensar alturas

Buscando Aquele Outro decantado

Surdo à minha humana ladradura.

Visgo e suor, pois nunca se faziam.

Hoje, de carne e osso, laborioso, lascivo

Tomas-me o corpo. E que descanso me dás

Depois das lidas. Sonhei penhascos

Quando havia o jardim aqui ao lado.

Pensei subidas onde não havia rastros.

Extasiada, fodo contigo

Ao invés de ganir diante do Nada.

Embora difícil de compreensão, achava tudo muito bonito, inda mais exercitado na prática, por nós duas, ela sussurrando no meu ouvido, com voz sensual, cada verso do poema, arrepiando até a alma, corpo inteiro a ponto de pegar fogo. Da outra, a mineira, de Divinópolis, guardo na memória, de cor e salteado, o texto Sedução, declamado por Sandra abraçadinha a mim, coxas e braços entrelaçados uns nos outros:

A poesia me pega com sua roda dentada

me força a escutar imóvel

o seu discurso esdrúxulo.

Me abraça detrás do muro, levanta

a saia pra eu ver, amorosa e doida.

Acontece a má coisa, eu lhe digo,

também sou filho de Deus,

me deixa desesperar.

Ela responde passando

a língua quente em meu pescoço,

fala pau pra me acalmar,

fala pedra, geometria,

se descuida e fica meiga,

aproveito pra me safar.

Eu corro ela corre mais,

eu grito ela grita mais,

sete demônios mais forte.

Me pega a ponta do pé

e vem até na cabeça,

fazendo sulcos profundos.

É de ferro a roda dentada dela.

Foram muitas descobertas com Sandra, entre outras, a percepção da magia existencial e o saudável hábito da leitura. Sem falar também, não posso esquecer, do desabrochar de uma mulher habilidosa no manejo das palavras e carícias. Pena ter durado tão pouco, coisa de meses, até o ingresso no ensino superior, graças à nota máxima na redação