Victória Holanda

Fica, vai ter post!

Blog Title

Montaria

Ontem eu assisti Montaria. Na estreia, há alguns meses, vários amigos disseram que adoraram. Pensei: “que pena que perdi, deve ser bom mesmo”. Mas ontem eu percebi que não era sobre ser bom ou não, ser bonito ou não, ser bem executado ou não.

Eu conheci o Dackson Mikael há alguns anos. Nós éramos estudantes da Escola Estadual de Dança Lenir Argento. Talentoso, divertido, eu já sentia que ele era uma pessoa intensa. Anos depois, passamos na mesma audição para o Balé da Cidade de Teresina. Espontâneo, eu adorava rir das brincadeiras daquelas tardes. Em seguida, vi surgir a Chandelly Kidman: exuberante, versátil, ativista.

Eu sabia de todas essas qualidades e sabia também que iria encontrá-las em Montaria – elas estavam lá. Mas, o que eu não sabia que veria foi surpreendente. Em meio ao transe daquele ser, eu me peguei chorando, emocionada com o que aquilo alcançou em mim: era empatia.

montaria

 

Revolta, agressividade, vileza, hostilidade, rancor. Eu nunca sequer reparei em qualquer traço dessas características no Dackson – na maior parte do tempo doce – mas de maneira honesta, elas estavam lá, compreensivelmente presentes no corpo de quem sofreu preconceito, na pele de quem se arrisca a acompanhar a Marcha para Jesus montada ou corre o perigo de se machucar em uma de suas performances acrobáticas.

Montaria é corpo animalesco, bicho feroz acuado sofrendo. É questionamento dos padrões estéticos impostos. É descoberta de si. É enfrentamento contra o preconceito. É coragem de se redescobrir e se entregar extremamente. É a dignidade de expressar seu lado mais obscuro, porém com a serenidade de sabê-lo inerente ao ser-humano.

*Montaria foi contemplado no Prêmio Funarte Klauss Vianna de Dança 2014 e teve direção e colaboração de Elielson Pacheco e Adriano Abreu

O dia em que tudo ficou mais cinza

Eu estava prestes a sair do trabalho. O relógio marcava 13:34 e eu acessei a TV Senado. Encerrada a votação que se fazia no dia 31 de agosto, ouvi fogos de artifício na região. Da janela, o céu parecia azul, o sol tinindo. Mas quando cruzei a porta externa do prédio foi que eu enxerguei melhor: estava tudo mais cinza.

Foi o dia em que os adolescentes secundaristas tomando sorvete na esquina estavam mais cinzas, foi o dia em que a cor dos carros no trânsito parecia mais cinza, foi o dia em que os trabalhadores fardados da obra estavam mais cinzas, foi o dia em que eu não enxerguei verde ou vermelho no semáforo – estava cinza. Minha visão era de cachorro: estava tudo preto e branco, em tons de cinza.

Passei do cruzamento onde pararia para almoçar, estava tudo tão cinza. O ciclista parecia pedalar devagar, o pedestre caminhava em câmera lenta, os carros passavam a 20 km/h. Era um filme de stop motion. As nuvens estavam cinzas, o céu estava cinza, os pássaros voavam cinzentos.

No meu prédio, os gatos miavam, mas não como de costume. Não eram listrados, não eram amarelinhos, todos miavam mais, e cinzas. As plantas mal se mexiam com o vento, cristalizadas. Não eram verdes nem amareladas, estavam mais secas, estavam cinzas.

E tudo se tornou mais cinza, o que tinha cor ficou pálido, ficou cinza. O que era preto ficou cinza, o que era branco ficou cinza, o que era colorido ficou cinza. Não que tudo antes fosse multicolor e límpido, mas foi o dia em que tudo ficou mais cinza. Ao meu redor, mas também em todos os lugares. No centro e na cidade, em casa e na rua. São muitos tons de cinza, uma cartela inteira de cores cinzentas, tomando conta de tudo.

Era uma quarta-feira de cinzas.

“E no entanto é preciso cantar, mais que nunca é preciso cantar”

De dia a dia o mundo tá cheio

Essa semana eu ganhei uma pedrinha “energizante” da Samaria. Veio com um bilhete: “Viczinha, uma pedrinha pra te encher ainda mais de força e vontade. Bjs, Sam”. Era um mimo, mas soou como um alerta. Mesmo que esse “ainda” me fizesse supor que eu já tenho alguma força e vontade comigo, é como se andasse me faltando.

Não é de hoje que eu venho reparando, aliás. É verdade que tento dar uma escapada das certezas, às vezes. Arriscar: sempre adorei. Mas lá dentro de mim, tinha uma chama mais acesa que agora, capaz de mover montanhas? Que nada! Moveria o que eu quisesse – sempre moveu.

Acontece que tenho duvidado dessa chama, ultimamente. Ocasionalmente, eu simplesmente assisto ela se apagar um pouquinho, como uma fogueira que é atingida por areia, frente a uma frustração. Claro que há casos em que as coisas ganham lenha e esse fogo cresce tanto que eu tenho absoluta certeza que vai incendiar meu peito.

Diariamente, ligo o interruptor da sensibilidade quando convém. Esse negócio de sentir tudo, toda hora, tem deixado de ser. Na maior parte do tempo, sinceramente, eu só consigo me irritar com o trânsito, com um estranho mastigando no restaurante, com um à fazer obrigatório doméstico qualquer. E essa chaminha escorre cada vez mais pelos dedos.

Samaria escolheu uma pedrinha diferente pra ela mesma e pra Luana: a pedrinha da autoconfiança. Se ela acreditou que esse quesito me bastava, não sei.

E ficou martelando: “ainda mais de força…”, “ainda mais…”, “força e vontade”…

Fio condutor

Espero a água ferver no bule, esquento o almoço requentado no micro-ondas, checo se a porta está mesmo fechada várias vezes. Acordo subitamente no meio da noite, a TV ainda ligada, baixinho. A água do meu chuveiro voltou a vir forte de novo, oba! Seguimos riscando itens, modo piloto automático, devastados.

Às vezes levo ração para os gatos que moram no meu condomínio e que eu nem gosto, faço compras e fico orgulhosa em cuidar de mim. Estou sempre com a sensação de que esqueci alguma coisa. Eterna disputa com os ponteiros do relógio, sempre atrasada. Pego atalhos, fujo do trânsito, do que é improvável, do que não tá na minha lista.

Mas diante do imprevisível, a gente reza.

Gosto de acordar tarde, de ter a casa arrumada, de fazer um prato especial só pra mim. Acendo uma vela, escondo o choro, dor fincada no peito. Uma parte de mim acha que tá perdendo alguma coisa, perdendo tempo, perdendo amigos. Um fiozinho fino e elástico, que se puxar demais arranca e se soltar desmancha.

A gente desvia da topada no asfalto, do assalto, do acidente de trânsito. Numa noite tem os amigos aqui com a gente, na outra a gente não sabe. E sofremos.

Adeus, até logo

Era quase 13:00 quando chegou uma mensagem inesperada por WhatsApp de uma amiga de longa data. “A Ju se matou, não conta pra ninguém ainda”. Tremi, a fome que chegava naquela hora se tornou um grande buraco no meu estômago e as letras no computador se embaralharam. As vozes das outras pessoas na redação ficaram cada vez mais longe e, imediatamente, eu me lembrei da última vez que a vi.

– “Acabei de pagar uma conta de partir o coração”, disse ela estampando um sorriso, quase debochando dessa obrigação.

Eu almoçava no shopping com a mesma amiga que me deu essa notícia devastadora e nós a encontramos acompanhada do marido. “Vou comer um Subway”, disse se despedindo. Rapidamente baixei os olhos e pensei: “Tá todo mundo na mesma pindaíba…”.

Mas não estávamos. Com frequência, encontramos os amigos e nos identificamos com as lutas diárias, mas subestimamos a profunda dor de cada um.

Enfrentar leões, enfrentar/ Passar por cima de uma coisa que tá no lugar da outra/ Mordida, a pele fica ferida/ Prossiga no rastro, no pasto e siga a vida/ Por fim, a tristeza é amiga da onça/ Ensina a enfrentar leões (Karina Buhr, “Dragão”)

Enquanto eu engolia em seco, estática por alguns minutos, outros amigos ficavam sabendo da mesma notícia. No ônibus, em casa, no trabalho. Talvez tenham passado da parada que iam descer, talvez tenham deixado o arroz queimar, talvez não tenham conseguido trabalhar o resto do dia, talvez tenham chorado um pouco, talvez tenham chorado copiosamente, talvez…

O dia estava nublado, quente e o ar parecia mais pesado. Distraída e ansiosa, passei o resto da tarde tentando cumprir os compromissos que tinha em vista, com esforço. Talvez tenha sido o que a Ju vinha tentando fazer.

À noite, todos se reuniram para se despedir. Que triste reencontrar as pessoas por esse motivo. Em meio aos abraços e palavras de conforto me lembrei de uma conversa virtual, em que ela me convidava para sua formatura.

– “Eu vou pra colação Juzinha. Finalmente né?!”

– “Finalmenteee”.

Finalmente né Ju? Finalmente…