Trabalhos no Subsolo

por Manoel Ricardo de Lima

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Quase uma história e os poemas sem inocência de Chantal Castelli

Vi em sonhos um terreno deserto. Era a praça do Mercado de Weimar. 
Havia escavações em curso. Também eu escavei um pouco a areia. E vi 
aparecer o pináculo da torre de uma igreja. Não cabendo em mim de alegria, 
pensei: um santuário mexicano pré-animista, o Anaquivitzli. Acordei a rir. 
(Ana = àvá; vi = vie, witz = igreja mexicana [!]).Trabalhos no Subsolo. (Walter Benjamin)

 

“Não existe o alhures. Estamos todos aqui. ”

Pier Paolo Pasolini

Estamos, há muito, em tempos sem inocência. Num texto de maio de 1969, “Monstros e monstrengos”, Pier Paolo Pasolini, poeta e cineasta italiano, denuncia que “a inocência não existe, ninguém é um anjo vítima do diabo”. E aponta a chantagem como um modo desse jogo moralista e judicativo, além de uma busca por monstros para que sejam linchados antes; do quanto há uma necessidade imediata de linchamento. Daí que diga, com força, que o moralista só aponta o dedo a outrem, nunca a si mesmo. Toda a responsabilidade é – eis a moral da pequena burguesia, que, aliás, fica muito aborrecida quando a sua moral não se cumpre –, biblicamente, das maldições divinas. Pouquíssima ou nenhuma diferença entre a civilização de Himmler e dos Lager para a que nos modela agora, em tempo real, como vigilância e violência. É a expressão de Max Weber, “o monopólio da violência”, para dizer das sociedades capitalistas, que faria tanto sentido ao pensamento de Walter Benjamin, desde o texto Para uma crítica da violência, 1921, até as Teses sobre o conceito de História, 1940: “a violência que  mantém o direito é a mesma, a partir do direito, que nos ameaça.”

Repare-se na disputa grosseira entre duas figuras que dizem decantar o encantamento a partir da floresta por um assento numerado para o chá da tarde numa academia de letras, quando, se a coragem ainda é um ato sério, poderiam se juntar pra tentar fechar de vez todas essas academias que não dizem nada, se prestam a nada.

 

Nessa estrutura mímica, repare-se agora, por exemplo, 1] na quantidade de jovens estudantes e poetas celebrando e anunciando que foram jurados da primeira etapa de um desses prêmios literários, felizes pela circunstância de um pacto circular, sem elipse, sem corte, sem abertura, sem desmonte. Baudelaire disse que um prêmio literário fomenta a hipocrisia, há algo que fere tanto o homem quanto a humanidade, ofusca tudo. E é Pasolini quem reclama do pacto dos estudantes com seus superiores quando estes passam a determinar onde e como serão as assembleias daqueles; é também quem denuncia a passividade de Ungaretti quando a  burguesia italiana o transformou num “poeta oficial” e ele não fez nada para que isso não acontecesse; 2] na disputa grosseira e agressiva entre duas figuras que dizem decantar o encantamento a partir da floresta e da seiva do coração com os tempos do primitivo por um assento numerado para o chá da tarde numa academia de letras, oficialização e mudez, quando, no mínimo, se a coragem ainda é um ato sério, poderiam até se juntar pra tentar fechar de vez todas essas academias que não dizem nada, se prestam a nada.

Chantal Castelli | Foto: Ricardo Rizzo

O apontamento é, precisamente, diz Pasolini, “as coisas que o poeta enfrenta na juventude, e sobre as quais, mais tarde, quando já velho, se cala.” E é essa ausência completa da inocência que Chantal Castelli [1975, SP] traça sem piedade nos poemas de Para que os inocentes não tenham tempo [Corsário-Satã, 2023]. A poesia de Chantal, há muito, já incorpora os sentidos abertos de uma esferologia limite com os impactos sociais e políticos de uma vida com violência, do corpo a corpo, do mero convívio doméstico à rua, da rua à miséria, da miséria ao direito, do direito ao ritornelo da violência etc. E isto é o fundamento do espectro da política, integralmente, nos móbiles em que estamos girando ao redor dos centros do dinheiro. Leia-se, pois, os livros anteriores de Chantal, como Memória Prévia [Com-Arte, 2000] ou Os cães de que desistimos [Hedra, 2016]. Está muito claro o quanto Chantal lê, entende e percebe o buraco da interrogação “quid tum”, algo como “e então, e agora?”, e que esse buraco não pode ser inscrito a partir de um mero desenho íntimo, familiar, narcísico, autobiográfico, frágil, atoleimado. Mas sim, recuperando o gesto do quanto uma perspectiva da história ainda descende, noutro exemplo, da técnica de Ptolomeu, quando transforma o globo em um mapa, ou seja, num espaço reto de controle e poder. E isso coincide com a construção do Hospital dos Inocentes, em Florença, projeto arquitetônico de Filippo Brunelleschi, com um pórtico que funcionou até 1875, onde se enfiavam os enjeitados, os inocentes, as crianças recusadas por seus pais. E é dessa violência de morte, biopolítica imperiosa, da qual surge o nome do Renascimento: esta segunda natureza que advém apenas para fins civis.

Para que os inocentes não tenham tempo [Corsário-Satã, 2023], de Chantal Castelli, faz lembrar que se ainda há uma tarefa política ao poema, ela é uma luta contra a violência da afasia moralista e, ao mesmo tempo, luta contra as novidades banais do mercado e o egocentrismo que buscam anular e negar toda estranheza à poesia.

É uma linha rara, raríssima, de pouca palavra e muitos esforços de linguagem, imagens empenhadas e um trabalho minucioso de demora e método, esta por onde Chantal constitui a poesia que imagina como vinco, sulco, saliência, salto, origem. Não é uma vida de retaguarda como a normal e naturalmente aparecida numa poesia de fundo raso, molinha, cheia de truques, idas a cafés, passeios, encontros de disse me disse ou quem diz primeiro para ir à feira literária mais festiva, mas trata-se de uma poeta – quando esta palavra ainda é a recuperação do sentido de quem avança à frente –, que se lança às linhas onde elas começam, quando há uma solidão perigosa e quando a ideia de independência é política. É a violência sacrílega e iconoclasta que sustenta o limite dos poemas de Chantal, desde o primeiro poema do livro, Anamnese, com 10 fragmentos, que refaz o ímpeto profanatório de Abrãao: matar Isaque; até o último poema do livro, Sazão, uma espiada na passagem do tempo em suas delicadezas, que nos lança diante da imagem que nos devolve a todo o livro: “Quase uma história.”

Para que os inocentes não tenham tempo [Corsário-Satã, 2023], de Chantal Castelli

O livro tem 5 partes [Autofágicas, Extremo ríspido, Ode à mãe, Outra língua entre os dentes e Sazão] que se amalgamam num jogo de síncopes do corpo, ou de corpos, que se engendram entre figuras conhecidas, como uma mãe e uma filha, um pai e uma guerra, uma placenta e um Anaximandro invisível, uma criança e o músculo do desejo, o fígado e o inferno etc.  Mas é o vocabulário diferido e os modos de uso desse diferimento que nos impõem os poemas de Chantal sob uma perspectiva modulada, nunca linear, uma singularidade do que ainda é pensar: a poesia como um pensamento imprevisto, heterogêneo, contingente e sem centro. Poemas, por exemplo, como Garota-bomba ou Outra Pietá, de partes diferentes do livro, se desintegram ao roçar a fratura do que ainda é uma experiência: “Ninguém espera que uma menina ande por aí / com uma bomba embaixo do braço” e “Acabo de parir, mas quem sentiu as dores e convalesce (como quem se livra de uma doença) com minha filha no colo é ela.” Quase em seguida, há no poema Duas cidades, um descompasso entre “teste” e “bombardeio” e, bem antes, há no poema Recuo, um desdobramento do termo “partout” e a aderência do corpo a uma segunda pele, a outra violência, a alguma esperança.

Esse é, um pouco, o pesa-nervos dos poemas de Chantal: dispor em xeque qualquer inocência e toda liberdade numa busca incansável para existir – como uma jovem estudante ou poeta – sem pedir licença a superiores e habitando apenas os telhados, se for o caso. Para que os inocentes não tenham tempo é um livro que faz lembrar que se ainda há uma tarefa política ao poema, ela é, no mínimo, uma luta contra a violência da afasia moralista dos dias, a da lei e, ao mesmo tempo, uma luta contra as novidades banais do mercado e o egocentrismo que buscam anular e negar toda estranheza à poesia.

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Manoel Ricardo de Lima [Parnaíba, 1970, professor do PPGMS e Escola de Letras, UNIRIO. Pesquisador CNPq, PQ-2], publicou A guerra da água [7Letras] Xenofonte [Cultura e Barbárie], O método da exaustão [Garupa], Avião de alumínio [Quelônio, com Júlia Studart e Mayra Redin] entre outros. Organizou, entre outros, Uma pausa na luta [Mórula]. Coordena a coleção “móbile” [Lumme ] e as edições da poesia de Ruy Belo no Brasil [7Letras]. Escreve a coluna “Trabalhos no subsolo” para a revista Revestrés.

 

 

 

A mátria de Laís Romero ou digitais impressas no tempo

“não tenho pátria, tenho mátria
   e quero frátria”

Caetano Veloso

 

Em 1965, Elsa Morante profere a conferência Pró ou contra a bomba atômica 3 vezes, em Turim, Milão e Roma, depois a publica na Europa Letteraria em abril daquele ano e, só em 1984, em Linha de sombra. Na conferência, traduzida e prefaciada no Brasil por Davi Pessoa e publicada em 2017 [Editora Ayiné], ela indica o “sistema de desintegração” em que vivemos diante das ameaças constantes do capital e a da era atômica; agora, isso se implicaria sobre a era tecnológica da IA afásica que relega todo e qualquer caráter entre carne e sangue ao jogo da ineficácia, ou seja, imprestável ao dinheiro. Ao mesmo tempo, Elsa chama atenção à tarefa política do escritor, da escritura, frente a esse tempo, e difere severamente as atribuições do poeta das do literato, porque este último sempre se volta à banalidade do “mercado editorial” e seus aparatos de conluio e glória, nada diferente das relações, por exemplo, entre Gabriele d’Annunzio e Benito Mussolini: favores e bajulação, ou seja, ampliação porosa do fascismo.

O que Elsa Morante projeta é pensar em que momento o papel da poesia ainda é ao contrário, e contrária, ao sistema expandido de desintegração em que vivemos. A resposta aberta que encontra, e que apresenta também como pergunta, é: NENHUM. E desenha, com extrema radicalidade, uma aposição entre Eros e Tânatos, outra vez, para nos lembrar que sem Eros, seducere, sobra-nos o ilusionismo do segundo que nos desvia, fatalmente, do real, nos deixando apenas a narcísica “evasão de si mesmos”: alienação e intimidade, regressão ínfima e angustiante, tráficos oficiais e mercado fúnebre, luta das imagens sem luta de classes etc. E sem perder de vista que o que gira e engendra uma teoria da imaginação contra esse “sucesso” glorioso é a realidade, daí que o exemplo que dá é Miklós Radnóti: poeta húngaro, muito jovem, morto no Lager, golpe na nuca, antes obrigado a cavar a própria cova, existência reduzida ao horror espectral, “um caderno, uma lanterna, tudo me foi tirado pelos guardas do campo, escrevo versos no escuro” e “agora a morte é uma flor de paciência”. Elsa diz, com força e boniteza, que Radnóti deixa “milagrosamente, a prova de que mesmo dentro daquela máquina perfeita de desintegração, que o aniquilava fisicamente, sua consciência real permanecia íntegra”.

Não há muita diferença entre a estrutura dos Lager e a estrutura da cidade moderna-contemporânea: a voracidade onívora e indômita do capital, além de bélica, é inesgotável e assassina; o real desaparece e o que escapa torna-se imediatamente a regra para uma existência mímica pactuada com tudo o que a ilusão do dinheiro oferece. É o contraponto do contraponto até o contraponto, infinitamente, mover-se entre um nem sim nem não, desejar o desejo, espaços e tempos desejantes, abertos, livres, caminhar, caminhar mais. A primeira parte do primeiro livro de poemas de Laís Romero, Mátria [Editora Paraquedas], vontade de frátria, filos, se chama exatamente desejo. E assim, tão logo, anota: “tateio a língua”,  “tateio o lábio” e “o solo irrigado / o reverso, o sumo / verde-escuro / plantação”. Nascida em Teresina, no Piauí, em 1986, arrisca o poema com imagens de força e sem compaixão alguma à língua, aos jogos de azar da vida e do mundo e modulando um desafio à toda e qualquer lógica imposta entre cultura e memória fixas; algo muito prenhe a partir de “persistência”, “assisto” e “escrevo” como “metáfora abissal”.

Em seguida, a série de imagens é impressionante: “dança em dança”, fome de “comer suas peças pelo pescoço”, “melancolia vermelha / e pavor”, “correntes mais violentas”, “muitos metros de pele”, “coisa leve do impossível”, “digitais impressas no quadril”, “as mortas falam”, “tempo para o desejo / tempo para perder a hora”, “imensos blocos de concreto / armado / velozes blocos que não permitem / a ousadia da distração”, “há um veneno lento”, “o brilho do chicote encerado”, “são tantas as pessoas que podemos trair” etc. Laís avisa e, ao mesmo tempo, denuncia que este seu livro magro é imparável, tal como um pé esquerdo inquieto capaz de chutar canelas fixas e conformadas, e também uma convocação à construção de uma comunidade de mulheres tal como a imaginada por Emília Freitas, no sertão do Ceará, em 1889, para enfrentar com risco o ignoto patriarcal: mátria = frátria. Não à toa a segunda parte do livro é mátria, que dá título ao livro, e a terceira e última é pathos, mas num diferimento ao patético do gesto incapaz de dançar.

Andar à beira de abismos, dançar à beira de abismos, o alarme de incêndio que vem de Nietszche, aqui, se reconfigura no que se imprime no tempo, com o tempo, para o tempo, até porque se está diante de um trabalho que é, segundo ela mesma, um “feito irresponsável de mulher / uma poesia tímida e vadia / que se arrisca”, o poema que é escrito enquanto “queimamos pessoas / … / rasgamos a pele / ofertamos os filhos” e “lutamos em guerras / em cima de nomes / que lhes demos / por não sabermos / seus idiomas secretos?”. Salta, como uma origem, Ürsprung, o poema O meu país, quando escreve um contrário à farsa democrática; repare-se em alguns fragmentos: “atuar meu papel / pardo / nordestino e calado / de mulher // o país morre agonizando / em calçada”, “andar num ônibus lascado / quente e abafado”, “vivendo / de boa vontade / a caridade é o papel do / religioso engajado e a / igualdade é pacto”, “arder na saliva branca do ódio de / uma gente sem astúcia sem / delírio”, “arredia e valente / igual à ancestral / capturada para casar / e de sucessivos estupros / fazer brotar / o meu país”.

Foto | Régis Falcão

Laís Romero imprime, de fato, uma “busca pela coragem”, quando se entende que a coragem, ou uma coragem, é “há alguém a algo” e, numa transparência, “há algo a alguém”; está em Hölderlin, a palavra do poeta [Dichtermut] só é se uma coragem, um perigo, um ajuste de contas, rival do mundo etc. E o mais interessante e pertinente, ainda, nesse Mátria, é o tanto e o quanto a anotação de um EU e de um MEU nem são o desamparo da intimidade vazia nem muito menos a tentativa em tomar a posse de nada, mas sim uma disseminação ao que não é pertença, colapso de tudo, “fogo e valsa” e quando é o corpo que diz “a rata em marcha solitária”.

O trabalho de Laís se imprime no tempo e se junta, com a delicadeza da porrada – e que ainda pode nos liberar do esgotamento industrial de uma poesia piedosa e cristã feita no Brasil e publicada por grande editoras, sem vísceras, logo sem experiência, mera vivência íntima e pessoalizada, vidinha em família –, à poesia de Renata Flávia ou de Aline Prúcoli, de Júlia Studart ou de Annita Costa Malufe, de Marcela Maria Azevedo ou de Rita Isadora Pessoa, de Chantal Castelli ou de Veronica Stigger, de Joice Nunes ou de Sara Síntique, de Gabriela Perigo ou de Amora Pêra etc.  É que estamos o tempo inteiro diante de uma guerra que não acaba nem acabará, Laís sabe, e diante de uma guerra “o inferno é”, ela avisa na última linha do livro.

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Manoel Ricardo de Lima [Parnaíba, 1970, professor do PPGMS e Escola de Letras, UNIRIO. Pesquisador CNPq, PQ-2], publicou A guerra da água [7Letras] Xenofonte [Cultura e Barbárie], O método da exaustão [Garupa], Avião de alumínio [Quelônio, com Júlia Studart e Mayra Redin] entre outros. Organizou, entre outros, Uma pausa na luta [Mórula]. Coordena a coleção “móbile” [Lumme ] e as edições da poesia de Ruy Belo no Brasil [7Letras]. Escreve a coluna “trabalhos no subsolo” para a revista Revestrés.