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Considerações sobre a escrita

Por Laís Romero

 

Por muito tempo achei que escrever fosse um terrível mistério carregado pelos sérios poetas, uma dor ou um segredo, algo crônico e edificante e que nunca cessaria de sangrar. O tempo não passou tanto assim e me desvencilhei da aura mística do escritor, fui adentrando nos espaços de criação, abrindo as portas dos coletivos de escritores, tocando na realidade do ‘sentar e escrever’. Foi difícil. É difícil.

Ainda me falta perceber uma rotina, atar vida prática e massacrante com o desejo de trabalhar com as palavras; tão somente com as palavras. Não estamos numa seara fértil o suficiente para o tal, digo isto em uma perspectiva financeira, obviamente. Me fechando na fala feminina, percebo que ainda estou presa ao perfil de responsável pelas demandas afetivas da casa, ainda sou o foco da criação do meu filho, esmagada por uma culpa improdutiva e paralisante. Fui plantada em solo deficiente, ainda procuro com afinco a fertilidade para o florescimento.

Escrever, pelo que atravesso diariamente, tem mais relação com o vácuo. A promessa e o desejo de sentar diante de uma folha em branco e fluir, tal qual se debruçam os escritores no cinema: numa escrivaninha charmosa e antiga, pilhas de papel num lixeiro de metal, um gato, álcool, chá ou café, quem sabe cigarros e sempre à noite. Não. Muito mais tempo passo sem conseguir dizer palavra, aquela sensação esmagadora de incompetência como se todo o meu ar não fosse suficiente para um grito. Inflado o peito parto para as tentativas de falar, enumerar, descrever, construir um parágrafo ou verso, escolher as melhores palavras, revisar e revisar e revisar. Sentir por fim que não alcancei o que desejava, que meu domínio é somente o desejo, que as palavras continuam a fugir ou simplesmente não existem dentro de mim; manejo um verdadeiro vocabulário das ausências.

Neste avesso revejo conceitos e percebo que escrever é um interminável cansaço, uma frustração que vai se estampando em nosso rosto. A satisfação diante da escrita sempre me foi suspeita, e raramente encontrei trabalhos de força e fôlego aliados a histórias de felicidade e fluidez na escrita. Aquele mistério que ronda os artistas da palavra é apenas a incapacidade de lidar com a linguagem. Não uma incapacidade por incompetência, mas um atravessamento pelo desespero de não ter alcançado aquilo que desenhava dentro de si. As demandas da língua, as portas fechadas quando se quer falar, a falta de fôlego para alcançar a manhã gloriosa de uma lauda que sintetize as histórias por contar. O silêncio que pesa o ar durante as horas da madrugada diz muito mais de nós. Os sons do dia amanhecendo já aciona as engrenagens que fenecem o desejo de grafar.

Perdidas as aparências, percebo que a matéria de que trata a escrita é muito maior que a vontade de escrever. Todo o farfalhar de páginas perdidas e o egoísmo do escritor sombrio não passam de medo e frustração, recorrentes companheiros de quem, como eu, se exige uma produção minimamente correspondente aos anseios que sobem à garganta. Quando escolhi escrever este texto me impus prazo, leituras, horas a fio escrevendo e apagando um parágrafo que nunca adentrou nesta leitura que você faz agora. Te aproximo do processo pois, ou você é escritor e quer saber de que trata este banal relato, ou por acaso me conhece e quer saber como lido com as palavras em um espaço de visibilidade. Se leu até aqui, parabenizo a insistência.

Em resumo, por fim, não mais tendo detalhes a desfiar, talvez eu receba a alcunha de romântica, adepta de um pessimismo infantil e um repertório fraco. Não interessa muito. Os que escrevem e andam tortuosos sabem da demanda dantesca. Navegar no Styx requer uma certa dedicação. Talvez silêncio.

 

Medo de Avião

Convencer o pai a tomar um avião não foi tarefa fácil, trabalho que levou anos. Mas eles, os filhos, nunca desistiram. A cada ano repetiam o convite e, claro, apresentavam novos argumentos. Sempre reforçando a mesma tese: transporte aéreo era o mais seguro de todos. Desconfiado, Seu Amaral dizia que tudo bem, mas ao cair, o que não era tão raro assim, não sobrava ninguém pra contar a história. A mulher, embora pensasse diferente, fechava com ele. Até que um belo dia, tomado de coragem repentina, resolveu enfrentar os receios e visitar os pimpolhos na Cidade Maravilhosa, onde moravam há bastante tempo. As coisas caminhavam bem, no aeroporto, até a moça, no balcão da companhia, solicitar-lhe um telefone para contato.

– Posso saber pra quê?

– Caso ocorra algo.

– De que tipo?

– Nada não, senhor, pura formalidade.

– Como assim?

– Apenas um procedimento de segurança.

– Vocês já não têm meu contato?

– Não serve, senhor.

– Não serve?

– Tem de ser de um parente próximo.

– Por quê?

– Norma da empresa.

– Com que finalidade?

– Avisar numa emergência.

– Que emergência?

– Sinto muito, mas o senhor está atrapalhando a fila.

– Atrapalhando?

– Sim, ao recusa dar o telefone.

– Recusar não, quero entender apenas que emergência é essa.

– Uma emergência qualquer, senhor.

– Isso é muito genérico, não acha senhorita?

– Não, pois ninguém questionou até hoje.

– Eu não sou ninguém, mas um cliente que exige uma resposta plausível.

Estavam nesse impasse, quando o gerente da empresa, solicitado por um grupo de passageiros, interveio na conversa entre os dois, dirigindo-se gentilmente ao desconfiado Amaral. Com um pouco de habilidade, quem sabe não conseguisse o tal de contato.

– Em que posso ajudá-lo, senhor?

– Respondendo que emergência é essa.

– Quem falou em emergência?

– Sua funcionária.

– Força de expressão apenas, senhor.

– Qual a razão dessa exigência, então?

– Pura formalidade burocrática.

– Sou obrigado a dizer?

– Infelizmente, sim.

– Vocês estão escondendo algo de mim?

– Longe de nós, senhor.

– Por que essa exigência absurda?

– A imprevisibilidade do futuro.

– Um acidente com o avião, por acaso?

– Não falei isso, senhor.

– Mas deixou em aberto.

– Não dificulte nosso trabalho, por favor.

– Dificultar?

– Queremos tão somente o contato de alguém próximo.

– Pra quê?

– Entrar em contato, havendo necessidade.

– Sei!

E mais não disse, Seu Amaral, desistindo da viagem. Poderiam culpá-lo por tudo, exceto que nem tentou embarcar naquele pássaro de ferro. Não fosse a expressão emergência, dita pela atendente, teria matado a saudade de Camila e Júnior, filhos amados; e, ainda, conhecido as belezas naturais do Rio de Janeiro. Já em casa, mais tranquilo, não tardou muito a receber uma ligação pra lá de triste. A voz inconfundível, do outro lado da linha, era bastante familiar.

– Mas pai…

– Desculpa, filho.

– Nem pra avisar que não tinha dado certo.

– Fiquei com vergonha.

– De quê?

– Difícil explicar o medo em relação a avião.

– Entenderíamos.

– Na próxima vez, quem sabe.

– O avião chegou na hora e sem problema.

– Talvez porque não embarquei.

– Essa não, velho, assim já é demais.

– Diga pra Camila que sinto muito.

– Como está mamãe?

– Assim como vocês, frustrada comigo.

– Também não é pra menos, velho.

– Quem pôs tudo a perder foi a mocinha da Gol.

– Que tem ela?

– Falou em emergência.

– Como assim?

– Pediu um telefone em caso de emergência.

– Uma praxe da empresa, pai.

– Por que falar em emergência a quem morre de medo de avião?

– Sei lá!

– Pensei logo no pior.

– Tipo?

– Colisão num morro, todos mortos, inclusive eu e a mãe de vocês.

– Melhor dormir agora, velho, e esquecer tudo isso.

– Boa ideia, filhão!

Grávidos de amor

Pelo tom choroso da prima, não tive dúvida, Irina havia morrido. A coitada quase não conseguia falar, tamanho o desespero, com os soluços entrecortando as palavras. Do pouco que ouvi, vez que meu corpo entrou em parafuso, não sentindo chão nem pernas, juntei sons disparatados que criaram algum sentido: curva, moto, velocidade, pescoço, São Benedito, perigosa, quebrado, igreja, não entendo e, numa súplica sussurrante, vem pra cá. Embora a vontade fosse essa, estar no velório pra despedida final da Irina, grande amor de minha vida, tracei roteiro diferente a fim de aplacar dor tão angustiante. Peguei a mochila, pus roupas e livros, e, a pé, tomei a estrada em busca do mar, em nosso distante litoral. Sozinho e sem ninguém pra perturbar, quem sabe, pensei comigo, não encontraria paz no coração e sossego na alma. Sem falar ainda, talvez, nalguma explicação pro ocorrido. Como sempre gostei de caminhar, feito andarilho, pouco mais de 300 km nada seriam para relembrar os momentos felizes vividos com Irina. A começar pelo começo, quando nos conhecemos após assistir ao Último dos moicanos, bela história de amor entre um “índio” branco, Nathaniel Hawkeye, e uma jovem inglesa, Cora Munro,ela comovida por me ver chorando num canto do shopping, gesto pouco visto nos homens. Durante a carona até em casa, que aceitei de bom grado, vi que era uma mulher especial, delicada e sensível. Mesmo embirado a outra garota, não resisti aos encantos da Irina e, sem pestanejar, saltei no precipício escuro, nem aí pras consequências e a vida boa às custas da Soraya, mulher de deputado. Em pouco tempo, joguei tudo pro alto, flechado por Cupido, e fui tratar do amor,plantinha que exige cuidado redobrado e constante, do contrário murcha e vai brotar noutros jardins. Arriado os quatro pneus, relevava seu noivado com famoso advogado criminalista e, tampouco, o caso homoafetivo com Isaura, a prima lindíssima, que anunciara sua partida. Inteira quando estivesse comigo, um tantinho de tempo qualquer, era o que importava de fato, contanto que nunca mais ficasse apartado dela. Daí em diante, minha vida ganhou sentido e mergulhou em sentimentos desconhecidos, mas instigantes do ponto de vista do inusitado. Irina era intensa e sabia agasalhar como ninguém, doando-se toda e sem pudor. Quando menos esperava, chegava ela com o sorriso franco e o olhar enigmático, difícil de resistir tal  seu poder de sedução. Fechada a porta do quitinete, nossos corpos fundiam-se num único desejo: transcender o plano físico por meio do sexo intenso e visceral. Pena ter durado tão pouco, menos de dois anos. A paixão pela velocidade, pilotando uma moto 500 cilindradas, acabou o que era doce, abrindo em mim um vazio enorme e dolorido. E pior, difícil de cicatrizar, mesmo o tempo sendo pródigo em curar as dores. Talvez não queira, no fundo, que isso acabe nunca, até porque ouço ainda hoje, agora de forma compreensível, o telefonema que me fez cair do trapézio – Irina morrera na curva perigosa da igreja São Benedito, o pescoço quebrado, ao perder o controle da moto por excesso de velocidade. Isaura jamais me perdoou, de todo, por ter sumido justo no momento em que mais precisou de mim, de um ombro amigo capaz de dimensionar quem foi Irina e o que representou, de fato, em nossas vidas. Por mais que tenha explicado que, diante da morte, reagimos, cada um a seu modo, de forma diferente, ela parece não entender ou não querer entender, o que é muito pior. Passado a turbulência, embora o vazio não afrouxe um minuto sequer, trato de regar diariamente a flor que plantei em sua homenagem, no pezinho da árvore onde meu amor se encantou de vez, deixando saudade. Talvez ela fique feliz em saber que Isaura e eu estamos grávidos de uma menininha e que, de comum acordo, será batizada com o nome mais bonito de todos: Irina.

Teresina & Paris

por Nayara Barros

 

Caminhando pelo centro da cidade, pude rever o último escombro construído com esmero pelo abandono do teresinense em relação ao seu patrimônio físico e histórico. Curiosamente, a indignação e a raiva que eu costumo sentir quando vejo essas belas casas de um tempo remoto sendo substituídas por construções pragmáticas – como algum estacionamento, ou mais uma farmácia -, essas emoções foram paulatinamente suplantadas por uma deliciosa satisfação de quem confirma uma teoria omitida de qualquer discussão pública e que, por isso, posso garantir o sucesso absoluto dela.

O fato é que, diante dos tapumes que tentavam encobrir a falsa vergonha da demolição, tive um forte indício de que ali, naqueles escombros, residia a principal prova do nosso espírito forte. Explico um pouco melhor, antes que me acusem de não me importar mais com o desmoronar da nossa memória. Lendo Gertrude Stein, na “Autobiografia de Alice B. Toklas”, numa Paris do início do século XX, fui surpreendida com uma observação da autora, quanto à facilidade com que a Cidade Luz se livrava de seus prédios históricos e que isso acontecia com certa regularidade, porque o espírito dos franceses, esse sim, era perene e robusto, logo, podiam dar-se ao luxo de desfazerem-se dessas futilidades históricas e abraçar o novo. O novo! O espírito sobrevivia a todas essas ruínas, as de agora e as futuras.

Vejam só! Paris! Quem diria que o teresinense encontraria um povo irmão na prática de seu desdém histórico na Paris de 1920. É até de se orgulhar!

Um dia sem uma poesia já me parece um dia perdido

Amilton Cavalcante

Filosofia

 

Um dia sem uma poesia já me parece um dia perdido, parece que estou tentando explicar o mundo pela poesia, talvez partindo dela para este fim, talvez vivendo nela para suportar o fato de nunca tê-lo alcançado, talvez nem isto nem aquilo; que parece agora que quero fugir da ideia, que me passou pela mente e arrastou alguma coisa com ela, que todo poeta é um músico frustrado e todo músico alcançou seus maiores anseios poéticos. Mas por que fazemos isto ou por que falamos assim? Para ser mais direto: temos a propensão de pensarmos que um poema em que se tira a sua musicalidade, caso ele tenha tido alguma, ainda que, possivelmente, menos ou não agradável mais aos ouvidos, continua a ser poesia, e uma música em que se tira sua poética, continua a ser música, ainda que, possivelmente, não nos agrade mais; por que a música mesma não seria ainda, poesia? Temos propensão a elogiar uma coisa como poética, à medida que ela nos impacta de forma eloquente e metafórica, que somos impressionados pela sua forma de se insinuar aos nossos sentidos e instigar nossa reflexão, dizemos que certa imagem de um desenho animado é poética, que uma fotografia é poética, que uma cena de movimento e fala de atores é poética, que certas palavras são poéticas…, mas por que mesmo as imagens, a fotografia, a cena, as palavras não são mesmo “Poesia”?… Por que é acessório e não essencial? Por que é adjetivo e não substantivo? Supondo-se que, em geral, adjetivamos uma coisa para descrevê-la ou rodear outra de descrições, e substantivamos para dizer o que ela é. A “poética” é uma forma de elogio comumente em uso, mas poesia mesmo, o que pensamos que seja? E esta é a questão mais difícil em que agora nos pomos, a verdade é, me parece, que vemos o fazer poético tal como olhamos o poeta, com a pretensão que ele seja como queremos vê-lo; pois bem, o poeta é para nós um tipo de escritor, que se faz a partir de versos escritos, e assim parece que o restringimos a arte da escrita, talvez estejamos excluindo boa parte do seu fazer, para ajustá-lo a um modo corrente de pensamento, com o qual nos sentimos mais cômodos e confortados, por estarmos acostumados a pensar desta forma, mas e o poeta mesmo, o que é para nós? Se é que podemos responder, quando não sabemos ao certo nem o que nós mesmos somos para nós, mas e se formos poetas? O poeta é o que somos ou é o título de uma função que exercemos? Podemos mesmo separar assim a função social que exercemos daquilo que particularmente consideramos que somos? É muito complicado, mas podemos começar por aqui: a identificação, é marca concreta da poesia, nos identificamos com a poesia, seja que a consideremos escrita, imagem, música, atuação etc., por que nos identificamos com algum ponto da vida de quem a escreveu? Neste caso identificamos vida e escrita num só ato ou a escrita como ato concreto de vida, um especial, que ajuda a manter seu criador em pé, com mais firmeza em suas fases e experiências vividas, que o faz mesmo com que ele pareça gravar momentos passageiros de sua vida em marcas que se estendem no tempo, para nós e para a consciência de seus criadores, com aparência de eternidade; assim, podemos dizer que o vemos como alguém sincero quando fala de si mesmo, quando fala na sua forma própria de se expressar, a sinceridade passou então, a ser marca do poeta moderno, quanto ao seu modo de vida e suas ideias, e sinceridade é marca de ser próprio e original, como achamos que deve ser uma figura da qual achamos que deve apresentar um certo tipo de vida excêntrico, diferente, de algum jeito, da maioria, assim é que achamos que conseguimos ser, também, nós mesmos, pessoas mais originais, pois passamos a nos conhecer melhor, eles sabem as melhores palavras para nos descrever, nos sentimos melhores com nós mesmos através da associação que fazemos com as palavras e modos de vida e sentimentos dos criadores de formas próprias de dizer,  dizer-se, pois eles são “especiais”, e acima de tudo, e isto vale para a maioria, são uma boa forma de distração, e mesmo este tempo distrativo que passamos conosco e suas palavras, serve para que nos sintamos mais em nós com nossa interioridade, o que também nos faz sentir que melhor nos conhecemos, passando a nos aceitar, conviver com a coisa que chamamos de “nós-mesmos”, simplesmente nos inspiramos a ser; devemos ver isto melhor, mais de perto ainda, mas também e antes de tudo, a distância, imaginemos que um poeta veja um estranho ou estranha na rua, e sinta por esta pessoa um certo desejo íntimo, o mesmo poderia valer para amigos com os quais conversamos, o mais sincero não seria ir até esta pessoa qualquer e dizermos o que sentimos e queremos? Para que enfeitar com eloquências e palavreados românticos, sensuais, desesperados, furiosos ou rebeldes? Por que diríamos que um poeta, ou qualquer artista que seja, é sincero, se o que ele faz é justamente o contrário e parece representar o cume exemplar daqueles que disfarçam seus impulsos mais básicos? (“baixos”?). Parece-me que o poeta é sincero, mas de uma outra forma, a sua ‘sinceridade’ é diferente do que comumente chamamos de sinceridade, ela não é tão prática e nem guarda em si tantos valores, não basta apenas dizer o que se sente e o que se quer, é preciso algo mais, ela quer mostrar algo mais, e ao mesmo tempo, é menos que apenas conseguir o que se deseja de imediato, ela é insinuação, sinceramente insinuante, e claro, possui o que toda e qualquer tipo de sinceridade possui, isto que nem sempre se percebe, pois toda sinceridade tem um q de desprezo, tem que ser acompanhada por isto para ser o que é, isto é, o que é para nós, e se reforçam em proporções incalculáveis de acordo com cada indivíduo a medida que este se utiliza de sua sinceridade, já que ela é e tem determinado valor para nós, ela é algo para nós que pode não ter sido em outros tempos, sobre determinados conjuntos de circunstâncias, valores e modos de pensar diversos, ela é algo como que uma rejeição, um pôr-se de pé firme ou uma confirmação de seja lá o que for, ante um conjunto de relações, condições e interrogações do que encaramos com um sentimento de exterioridade, num mundo onde o não-ser, a mentira e a exigência de ser si mesmo e verdadeiro nos acomete o tempo todo, numa forma de combate ou suporte ou impulso, ou seja, coisas que valoramos ou entendemos como seus contrários estão impulsionando-nos à sinceridade o tempo inteiro, como problemas dos quais a fazemos de solução, na tensão de contrários unidos no desprezo, e talvez em outras coisas mais, tudo isto, antes e durante a formação daquilo que consideramos que ela é, a sinceridade propriamente dita, formada, em formação; qual seria, porém, as relações que chegaram a forma-se e que explicariam o porquê de fazermos disso um valor ou uma propriedade poética, ou do poeta? Interessante questão, mas isto é muito exaustivo para o que se propôs aqui; e ainda temos outra questão em cheque, igualmente insolúvel, se a poesia enfeita a realidade com uma áurea de eloquência imagética e sonora, como poderíamos ver através dela uma vida mais nítida?… A verdade é que não sabemos de nada sobre o que falamos, apenas estamos a falar, não em sua profundidade pelo menos, não sabemos o que queremos dizer por sinceridade, poesia, Arte, sobre ser alguma coisa, sobre dizer a verdade, e isto vale não só para a poesia, pude constatar isto em todas as ideias atuais em uso, as que pude analisar até agora, pelo menos, que ainda são poucas, mas de certa relevância, se aprofundadas todas caem em contradições, em significações que se anulam, e todos os discursos, escritos, formas de pensamento a que os feitos de grandes homens nos legaram são obras inacabadas, e se alguém já pensou encontrar a verdade última é porque não viveu o bastante para sentir a própria incompletude, não é sincero, capaz ou não teve tempo o bastante para expressá-la, guardou para si ou expressou só em sua particularidade, por algum motivo ou valor qualquer; continuamos recortando o mundo e o vendo em fragmentos, e pior ainda, a maioria está vendo apenas pela ótica dos fragmentos recortados dos fragmentos maiores de recortes de vida e mundo daqueles poucos que foram capazes de olhar a distância, estendendo-se a escala todos nós somos cegos para um ponto de vista mais largo, e não tem como mudar isso, estenderam suas vozes ao mundo, com palavras tão firmes, mas poucos foram capazes de não intercalar os limites de suas certezas, duvido sinceramente que alguém hoje ainda afirme uma certeza de verdade absoluta e não seja corroído no seu interior pela incerteza arraigada a todo sintoma de certeza final, que em verdade, se pudéssemos nos adentrar pelos fenômenos da consciência e da estrutura do mundo a que temos acesso, veríamos que a incerteza está presente em uma parte muito maior do todo, ela é o que poderíamos chamar de a condição e o condicionante de alguma certeza que adquirimos e/ou afirmamos, ela é mais presente em nossa constituição natural que a própria certeza, quase somos naturalmente incertos do que somos, não vos enganeis ó intimidades que me leem, é um erro sentir que isto é próprio apenas de vocês, mas não é errado sentir que a forma como qualquer um pode sentir isso é própria e único em cada um, em modo e intensidade… A poesia tem um caso especial com o incerto, para nosso ponto de vista, grande parte dela expressa mesmo isso em suas formas, a certeza de não poder dizer diretamente o que é, o duro e o seco, por assim dizer, dizer poeticamente, são encharcadas de vapores perfumados, eloquência barata, rica, erudita, simplicidades igualmente variadas e por ai vai…, parece assim que o incerto é afirmado em uma certeza insinuada, insinuante, e assim não se perde o que diz o grande filosofo Heráclito: “O senhor, de quem é o oráculo de Delfos, não diz nem oculta, mas dá sinais”, pois “Natureza ama esconder-se”, a realidade neste sentido é como uma dama, doce e perigosa, mas também, bruta e acolhedora, num jogo de sedução para aqueles que querem conhecer sua nudez mais íntima nesta festa coberta de escuridão em que entramos sem qualquer convite, ela conquista e quer ser cativada, sempre está como é, neste “é” está implicado também a sua parte de não-ser onde não nos adentraremos para não cair na disputa de uma questão milenar, mas nós a cobrimos com nossas palavras e sentidos, única forma de despertarmos em nós o desejo de querer desvesti-la, no caso do poeta, achamos que ela deve ter o vestido apropriado ao próprio ser que ela é, ele é nosso sinal para ela, e ele deve, tal como ela, mostrar e ocultar, pois um sinal é ainda, a um só tempo, dizer e ocultar, enquanto o que oculta não diz e o que diz não oculta… Mas será que não é justamente isso que estamos tentando fazer aqui, insinuar tantas dúvidas, ou afirmá-las, para dizer uma certeza, ou afirmá-la, uma certeza de uma verdade? A resposta é: sim e não; claro que já tenho algo em mente ao iniciar esta reflexão, mas ainda algo bem vago, que se quer sei se chegarei a um objetivo certo qualquer que seja ele, tal como a filosofia de Heráclito este aforismo é puro movimento, que quer e intenciona pôr em movimento os sentimentos e pensamentos daqueles que o recebem, que não sabe por onde ainda vai passar e nem anseia por uma parada final… Pois bem, voltemos ao início da questão, poderíamos afirmar que a poesia é um modo de expressar a realidade que percebemos, expressa indiretamente o que sentimos diretamente, melhor dizendo, e se o pensamento corrente tiver sua certeza confirmada aqui, ela afirma este indiretamente, já que se costuma pensar nas diversas formas de linguagem como intermediárias entre nós e o mundo, se assim for, todas são, de certa forma, indiretas com relação a realidade percebida que se quer que seja novamente percebida ao modo próprio de quem a percebe, mas como ficaria isto quando adjetivamos o fazer da poesia? Quando dizemos que uma música é poética, por exemplo, como pode um modo de expressão expressar outro modo de expressão? A partir desta última questão poderíamos multiplicar indefinidamente as questões que surgiriam como problemas ligados a ela, mas não faremos isto aqui, pois que aqui objetivamos, agora temos ciência, mais o incerto que a certeza. Se Heráclito era filosofo, poeta ou o que quer que seja, parecia fazer pouca diferença para o mesmo, mas parece fazer muita diferença para nós, se aqui fazemos poesia, filosofia, ou qualquer outra forma de arte, ou reflexão solta, faz pouca diferença para o presente autor, na medida que o que faz já é, sendo de alguma forma satisfatório, mas faz diferença na medida que é uma das questões que lhe dá matéria de reflexão e uma certa medida de incomodo motivador e que, ocasionalmente, pode ser algo reconhecido como modo de um fazer que será, portanto, nomeado de alguma forma. Parece-me que, enquanto aa nível de expressão, temos a tendência de considerar a linguagem como mediadora entre nós e o mundo, a exceção de uma forma vulgar e outra científica de ver, pouco ou nada refletida neste ponto, pois não possuem a expressão mesma como problema de trato, por outro lado, a nível de conhecimento e percepção de mundo, tendemos a considerar a linguagem como reflexo do próprio mundo que vivemos e expressamos, isto porque a estrutura própria de nosso modo de pensar, platônico e racional em sua origem, exige uma definição fixa, a sobreposição da certeza sobre a incerteza, e os repartimentos classificatórios das especializações modernas não nos permitem, ou dificultam, a diluição e transposição de barreiras, queremos uma definição fixa e completa de algo, sem muita mistura de outros ramos de pretensos conhecimento e visões de mundo, com isto, não percebemos as contradições a que caímos quando fazemos e expressamos algo, grande parte do problema que aqui tratamos se deve ao fato de estarmos inserido nesta estrutura de expressão, que delineia os contornos de nosso pensar. Contradizendo esta estrutura de pensamento, não chegamos a nenhuma solução última, embora tenhamos alcançado nosso objetivo calcado na fluidez da incerteza, não podemos ir adiante, pois de agora em diante seria necessário que tivéssemos ao menos uma ideia mais ou menos firme de qual seria a natureza da existência e o modo que nos convém expressá-la…

Mas nunca vos esqueçam daquilo que foi dito com toda a propriedade e razão: que os poetas, eles “mentem demais”…