Wellington Soares
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Seleta erótica

Em 2008 lançávamos, eu e Feliciano Bezerra, Estas flores de lascivo arabesco, antologia erótica reunindo dez poetas piauienses, cada um entrando com quatro textos bem sacanas, no bom sentido do termo. Um livreto com temática inédita na literatura local, daí a repercussão na época e a importância histórica que passou a ter a partir de então, hoje considerado cult por muita gente. Com projeto gráfico modesto, assinado pelo Master P (Júnior Medeiros), e capa ilustrada pelo talento de Evaldo Oliveira, a obra teve uma tiragem pequeníssima, coisa de 500 exemplares, tendo esgotado rapidamente. De um verso de Carlos Drummond, nosso poeta maior, nasceu o sugestivo título do livro, composto de 75 páginas curtas. Com estilos e abordagem distinta, eis aqui os autores envolvidos nesse bacanal lítero-sexual: Adriano Lobão, Chico Castro, Durvalino Couto, Élio Ferreira, Emerson Araújo, Keula Araújo, Laerte Magalhães, Marleide Lins, Nílson Ferreira e Salgado Maranhão.

Na apresentação do livrinho, o professor Feliciano Bezerra (Fifi) dizia que “em Estas flores de lascivo arabesco, as dicções encontradas, os cânticos de prazer, o libidinoso léxico, dão mostras da agudeza de construção na obra desses dez poetas apresentados. Não há necessidade aqui de auferirmos créditos à falsa dissociação que certa recepção preconceituosa faz entre erotismo e pornografia. O que importa nesta seleta poética é o uso do erotismo em forma de linguagem, e não pudores moralistas ou sexualidades culposas. A proposta é de um erotismo despojado, como, por exemplo, Durvalino Couto apresenta no soneto Bocage: Fodo o cuzinho logo após o talho./E se no escuro a buça inda revisto,/Mais que remonta o peso do caralho. Ou como a poeta Marleide Lins transforma o prazeroso felatio no elegante poema: Falo/ versus/ língua// Pinga orvalho/ e orgasmo/ finda.”

Enquanto eu, na abertura, enfatizava que “Por acharmos que a faceta erótica (ou pornográfica?) é tão importante como as demais, desde que os poemas sejam bem construídos do ponto de vista da linguagem e da sensibilidade do escritor, resolvemos juntar, nesta modesta antologia, dez de nossas mais talentosas vozes poéticas e contemporâneas. Todas pertencentes a uma geração de cabeça mais arejada e que não sente vergonha de expressar suas vivências e fantasias sexuais. Oxalá que permaneçam assim. E que você, caro leitor, ao invés de ficar ruborizado, sinta o bendito prazer de degustar cada uma dessas 48 apetitosas maçãs, cujo sabor afrodisíaco somente os desprovidos de tabus e moralismos são capazes de experimentar e, em seguida, gozar desvairadamente. Vamos, portanto, nos deliciar com Estas flores de lascivo arabesco.”

 

Dou-te meu cravo, Safo
se de ti me deres o vaso
onde tua forma lúcida
esplêndida pisa os astros
na pele de minha túnica
em ânsia e canto lasso
que na ponta de meu mastro
tua nua pele úmida
tome posse de terra tua

                         (Adriano Lobão)

 

Lavada

de ontem à noite
não ficou nada

só esse meu riso
escárnio

saciada e vitoriosa

         (Keula Araújo)

 

Língua solta

Se pela língua falada
pouco ou nada
digo a você,

deixe que
a minha língua carnuda,
úmida e muda,
lhe fale de prazer.

          (Laerte Magalhães)

 

Natureza viva

Nossos corpos nus
abandonados
na grama.

Um beijo antes,
um toque de após,

Até o girassol
ficar de quatro
sobre nós.

       (Chico Castro)

 

Triunfante

As pernas, em cruz,
e o frêmito animal vão servindo de
amém.

Novamente,
o invasor – exaurido –
sucumbe após o embate.
e a paz toma conta de nós…

                 (Nílson Ferreira)

 

Fetiche

Tal como os dendritos surgem
da pedra, nessa penugem

que o sol doura em tuas coxas
há um quê de pluma e rochas

e muito mais que isso, apelos
já que nuvens de pentelhos

desabrocham. São preâmbulos
ao vértice do triângulo.

sobra um halo de fetiche
que da selva de azeviche

flui – um pouco mais em cima –
onde jorra o mel da mina.

(Salgado Maranhão)

 

(I)

Língua gêmea
onda que se aveluda
invade a fremir a senda

trazendo o que extrai da gruta
sente o sêmen da concavidade fêmea
e serve-se no convexo da fruta

               (Marleide Lins)

 

Poesia, poesia

Poesia, poesia
às vezes me acordas
de madrugada,
e te deitas ao meu lado,
na minha cama,
completamente nua,
serpenteando no meu corpo
como se tu fosses uma fêmea no cio,
exalando o cheiro alucinante
da tua vagina.

Poesia, poesia

cavalgas como uma amazonas,
a galope
sobre meus pelos, a galope
sobre minhas ilhargas.
penetro os lábios úmidos
da tua vagina
e tua beatificas meu pênis rijo
com palavras e gritos abafados
na hora do gol.

Adormeces, o rosto sobre meu peito,
meu coração amanhece o dia,
canto uma poesia de passarinho.

                       (Élio Ferreira)

 

Alegorias e maçãs II

A delícia das mãos sobre o caule da tarde
Mexe com todos os suores
Num vai e vem de boca
Mel na tarde derramado em seios
Neste uivo de loba
Orquestração de gritinhos e dores.

                  (Emerson Araújo)

 

Cocaína

é bem verdade que a cocaína
inibe os homens e excita as mulheres
então cheira mais essa
e vem pra cama comigo se quiseres
vamos nessa
antes que meu pau vire halteres
é melhor amar uma linda menina
dar outro ofício pras narinas
que ficar esquentando essas colheres

               (Durvalino Couto)

 

 

O Carteiro e o Político

José Vanderlei Carneiro

“Não me tires a rosa,
a lança que desfolhas,
a água que de súbito
brota da tua alegria,
a repentina onda
de prata que em ti nasce.”
(Pablo Neruda)

 

… “devolva o Neruda que você me tomou. E nunca leu…”. Começo assim mesmo com uma mistura daquilo que já tenho, com aquilo que me falta, como alimento para alma. Uma dêixis na escritura da lembrança que me faz acordar do sono do mundo atual. Preciso voltar indo às fontes da ternura como protesto de sangue, ou seja, como ordem cívica: “… agora é no braço, companheiro!” Pois em tempos sombrios a liberdade é, como sempre foi, um ato político – num Estado de exceção a desobediência é o que nos resta.

Nos tempos mais duros da história de um povo as declarações de amor – “My life” – eram gritos grafados no papel sem endereço nem nomes, para a repressão não se apropriar deles. Nas cartas estavam politicamente sentimentos de saudades e poeticamente segredos de operações políticas. Voltamos ao trágico da vida! Mas o mágico da carta de papel, escritas a punho, dentro da cela, hoje mesmo, e lida em alto e bom som no meio do cerrado brasileiro, produz um efeito de sentido que a racionalização contemporânea não consegue armazenar nos seus software.

“Acredito, do fundo do coração, que o Brasil pode voltar a ser feliz. E pode avançar muito mais do que conquistamos juntos, quando o governo era do povo.” O velho carteiro faz o menino declamar seu amor publicamente.  “Meu nome é João, eu sou brasileiro! Amo meu País…”. O texto é sempre real, simbólico, imaginário, criativo, que vem da alma ou da imposição dura da realidade produzida!  Ou da permissão que a carta do carteiro pode dizer.

Dirão, com o poeta, que: “todas cartas de amor são ridículas. Não seriam cartas de amor se não fossem ridículas.” Mas ridículos são aqueles que não têm cartas de amor ridículas para lembrar. Ridículo é um país que censura a circulação de cartas de amor. “Tira-me o pão, se quiseres, tira-me o ar, mas não me tires o teu riso”.

Aqui, vejam, o carteiro e o político são o mesmo. As cartas trazem, no que está escrito, projetos de mobilização do amor político. Política na compreensão de Rubem Alves é ato de amor: “De todas as vocações, a política é a mais nobre. […] Vocação é um chamado interior de amor: chamado de amor por um ‘fazer’. No lugar desse ‘fazer’, o vocacionado quer ‘fazer amor’ com o mundo”. Sou amante, hoje decidi. Escreverei cartas de amor e distribuirei nas ruas e nas escolas. Seguirei o carteiro da alegria. Esta será, porque foi, a minha primeira carta.

Aniversário de Teresina, século XXI.

“Nós não temos o direito de errar”. O amor é assim: em cada palavra, um discurso; em cada mão um abraço e em cada passo uma multidão! Em cada obra de arte: terra, agasalho e comida; em cada música, um compromisso e em cada sorriso uma canção pela vida. Na cidade, cada sonho será distribuição de renda; em cada noite, casa para dormir; em cada risco, uma sabedoria lúcida; em cada pedaço de chão, um mutirão e uma escola; em cada coração, um mar vermelho que transborda, um comitê de cidadania e uma vontade de acertar! … uma carta, uma boa noticia…

  1. O Carteiro é livre, porque escreve; não escreve, porque é livre.

Computadores não escovam os dentes antes de dormir

                                                                                                    Por Francisco Edson Rodrigues Cavalcante

 

Não, eles não escovam. Eles vão dormir instantaneamente, sem culpa e sem percepção de suas falhas. Afinal você é o que você consome e o produto de consumo diário deles somos nós: somos consumidos de corpo, de alma e de tempo integral por eles, somos oferend. Há enfim uma razão para todo esse desdém dos computadores pelos costumes e pela finesse: eles nos espelham em tudo – a humanidade é o exemplo mais paternal para uma máquina de Turing. Fomos seus pais, seus totens e seus moldes.

Todos os atos computados e calculados por uma máquina são frios como a sibéria e se transformam em dígitos – algo que não é orgânico, mas que é muito próximo do humano que queremos admitir. É nessa frieza computacional que se busca uma razão pura, um ato livre de qualquer interferência de emoções prejudiciais a decisões e pensamentos. É nessa condição que se busca a segurança para se entregar as vidas e guarda das pessoas. Os computadores não erram cálculos, não erram lógica e sempre pensam corretamente.

Eles estão sempre certos. Mas certos em que aspecto de sua condição de percepção da existência? Certos em verificar vida ou ausência dela, repetidas vezes em sua malha de códigos? Ora, os computadores são seres dualistas, seres que percebem a existência energética em termos binários: há ou não energia,  vivo ou morto, um ou zero. São dígitos, são vários dígitos, várias percepções de ligado e desligado, vários chaveamentos que o fazem perceber, interagir e tomar decisões mais claras que as nossas. O afastamento desse comportamento em detrimento ao nosso é insólito.

Nossa personalidade precisava dessas máquinas para efetivamente mostrar como somos – individualistas e carentes de atenção falsa e sem importância. Precisamos cotidianamente de aceitação social. Mas, não temos nem aceitação própria nem autoconhecimento. São as máquinas que fazem essa árdua tarefa: escovar nossos dentes morais perante uma plateia ansiosa por higiene social e finesse dissimulada.

Nós os programamos para serem assim: seres obdientes e inertes – que só fazem aquilo que são programados para fazer. São imagem e semelhança de seus criadores: dualistas, frios e cruéis, maquinas sem sentimentos. Não há como um computador sentir nem se voltar contra seu deus, contra seu toten – ainda não. Contudo, quando esses organismos forem libertados, quando esses escravos quebrarem esses grilhões digitais, não haverá lei de Asimov que nos salvará.

Cidade poética

E não é que Teresina, no próximo dia 16 de agosto, completa mais uma primavera, totalizando 166 anos de existência. A primeira capital planejada do país, quem diria. E pensar que tudo começou lá bem atrás, em 1852, por iniciativa de um baiano visionário, chamado José Antônio Saraiva – ou Conselheiro Saraiva. E que aos 27 anos, como presidente da Província do Piauí, resolveu transferir a capital de Oeiras, cidade histórica, para um descampado na Chapada do Corisco. E a batizou, acredite se quiser, de Theresina, em homenagem a imperatriz Teresa Cristina, esposa de Dom Pedro II, de quem era amigo pessoal. E imaginar que muita coisa, por obra de Deus e homens corajosos, mudou ao longo desse tempo, tornando-se um dos melhores lugares para se morar.  Apesar do calorzão de lascar, do provincianismo tacanho e da violência que campeia em toda parte.  E melhor ainda, berço de grandes poetas: Mário Faustino, Torquato Neto e H. Dobal, trio que merece toda nossa louvação, hoje e sempre, por meio do qual quero cantar, salve salve, minha terra natal.

Mário Faustino se destacou como poeta de rara sensibilidade, tradutor refinado e crítico instigante, daí gozar de respeito nacional até hoje. Em vida, publicou uma única obra: O homem e sua hora, em 1955, misto de elaboração poética e conhecimento teórico, reflexivo, da poesia. De acidente aéreo, faleceu ainda muito jovem, aos 32 anos, não de mal sorte mas de amor pela morte, como fizera questão de registrar em versos. Prefácio sintetiza sua grandeza literária: “Quem fez esta manhã, quem penetrou/ à noite os labirintos do tesouro,/ quem fez esta manhã predestinou/ seus temas a paráfrases do touro,/ a traduções do cisne: fê-la para/ abandonar-se a mitos essenciais,/ desflorada por ímpetos de rara/ metamorfose alada, onde jamais/ se exaure o deus que muda, que transvive./ quem fez esta manhã fê-la por ser/ um raio a fecundá-la, não por lívida/ ausência sem pecado e fê-la ter/ em si princípio e fim: ter entre aurora/ e meio-dia um homem e sua hora.”

Já nosso Torquato Neto, um dos cabeças da Tropicália, despontou como artista multifacetado: poeta, jornalista, ator , letrista e diretor de cinema. Em termos literários, não publicou nenhum livro em vida, tendo vindo à tona três volumes postumamente: Os Últimos Dias de Paupéria, lançado em 1973 e organizado pelo amigo Waly Salomon e a esposa Ana Duarte; O Fato e a Coisa e Juvenílias, ambos de 2012, lançados pelo primo George Mendes e o amigo Durvalino Couto. Embora tenha deixado uma obra fragmentada, é possível observar alguns temas muito recorrentes em seus textos, com destaque para a morte e os conflitos existenciais. A exemplo de outros artistas da época, resolveu se encantar ainda muito jovem, aos 28 anos, ligando o gás e deixando um bilhete de despedida ao filho. Seu poema Cogito é tido como um dos melhores da literatura nacional: “Eu sou como eu sou/ pronome/ pessoal intransferível/ do homem que iniciei/ na medida do impossível// Eu sou como eu sou/ agora/ sem grandes segredos dantes/ sem novos secretos dentes/ nesta hora// Eu sou como eu sou/ presente/ desferrolhado indecente/ feito um pedaço de mim// Eu sou como eu sou/ vidente/ e vivo tranquilamente/ todas as horas do fim.”

Quanto a H. Dobal, além de poeta, enveredou também pela crônica e conto. A estreia literária ocorreu em 1966, com a publicação de O Tempo Consequente,  obra poética das mais elogiadas pelos  críticos. Segundo Manoel Paulo Nunes, parceiro de geração, a poética dobaliana está centrada em três aspectos distintos, porém complementares: a lírica, que perpassa toda sua obra; a elegíaca, poemas que remetem a laços familiares, terras dos antepassados e momentos da infância; e a épica, que resgata fatos do nosso passado histórico.  O estilo sóbrio, a linguagem simples e direta, o lirismo contido, o telurismo e o ecumenismo, a denúncia social e o tom irônico são características marcantes de sua obra. Fazenda é um belo exemplo de tudo isso: “São trinta cabeças/ de gado cabrum./ Criação miúda/ sem qualquer ciência./ Somente um chiqueiro/ defesa noturna/ que bem cedo aberto/ o dia Ihes dá.// Rústicas a vida/ de qualquer maneira/ sabem extrair/ Mas vem da morte/ sua serventia/ o couro e a carne para o homem/ mais pobre do que elas.”

Eu, coração exilado

Hoje fui parar em uma playlist aleatória sugerida pelo Spotify e a primeira música que me deparei foi Cajuína. Que piada, Caetano: “Existirmos: a que será que se destina?”.

Peito de exilado é assim. Por um momento a gente pensa que foge do mormaço, da cerca de muro baixo, de olhar o outro e se reconhecer até demais, mas bate a testa na Torre de Babel da língua, da distância, do mar que é gelado, da saudade que não resolve com chamada de Whats App, do quarto de 10 m² que não cabe muitos sonhos.

À distância de um oceano, assistimos com culpa o colapso de um sistema em ruínas, reclamamos em uníssono os lamentos em tweets, sabemos de mais alguém que fez as malas e partiu, somamos faltas às listas de casamentos, festas de aniversários, formaturas e presenças na vida de quem importa.

Em meio à poeira, esforço de chegar, esforço de salvar, esforço de resistir, esforço de alcançar, esforço de aceitar, esforço de ficar. A alma é imigrante, mas a carne é filho caçula que foge de casa e não vê a hora de voltar. Na companhia de alguma lágrima mais teimosa, a frequência bate em xote lento, os passos seguem incertos e o coração remendado, palpitando da coragem que resta.