Wellington Soares
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Acesso ao cinema no Brasil

 

O tema da redação do Enem deste ano não poderia ter sido melhor: “Democratização do acesso ao cinema no Brasil”. Por vários motivos, dentre eles a falta de uma política do governo federal nesse sentido, a reduzida quantidade de salas de projeção no país e, agora, a ameaça de fechamento da Ancine – Agência Nacional do Cinema, órgão responsável por fomentar, regular e fiscalizar a indústria cinematográfica e videofonográfica brasileira. Sem falar ainda do corte de verbas no setor e, pra piorar, a volta da censura aos nossos filmes. Logo, tema oportuno e urgente para se debater e, como exige a dissertação-argumentativa, apontar possíveis soluções. Embora tenha pego os vestibulandos de surpresa, nada mais salutar que presenciar a galera batendo cabeça sobre assunto extremamente atual.

Não sei se Fellini ou outro, não lembro bem o cineasta, disse uma coisa que me tocou profundamente: “O cinema é um modo divino de contar a vida”. Quisera que todas as pessoas, indistintamente, tivessem acesso à sétima arte. Certamente, sua existência e horizontes seriam outros – tomados de prazer e visão crítica. Basta lembrar das belas pantomimas de Charles Chaplin, o sábio “Vagabundo” – O garoto, Tempos modernos e O ditador -, que através do riso desnudou o mundo do seu tempo. Não em cores, como hoje em dia, mas em preto e branco. E o que é mais incrível, sem áudio, mudinho da silva, fazendo uso da mímica. Difícil encontrar um ser humano insensível a filme, que não se emocione diante de uma boa película, no escurinho do cinema e saboreando pipoca com refrigerante. De preferência, com o tradicional happy end.

Apesar dos avanços ocorridos em termos de público (161 milhões de pessoas) e de salas (3.356) em 2018, estamos longe de uma verdadeira democratização do acesso ao cinema no Brasil. Fora os problemas citados, temos ainda crise econômica, país de dimensão continental, falta de hábito em ir ao cinema e preço caro do ingresso. Sem falar também da ausência de salas nos centros das capitais (as que existiam foram transformadas em igrejas evangélicas) e nos bairros da periferia, onde se concentra grande parte dos espectadores em potencial. Mesmo com o surgimento da Internet e da Netflix, bem como de inúmeros projetos sociais, a maioria dos brasileiros continua marginalizada dessa importante manifestação artística, nunca tendo pisado sequer o pé num cinema. E não é por não gostar, mas pura falta de oportunidade e condição financeira.

Como possíveis saídas para tal problema, que tal começar pela retomada do ministério da Cultura, depois encarar os recursos no cinema como investimento e, por último, elaborar uma estratégia ouvindo todos da área. Mais: inserir o cinema nacional, capaz de lotar salas e arrebatar prêmios internacionais, como prioridade das prioridades, sem ameaças nem cortes de verbas. Ainda: abrir cursos de audiovisuais nas escolas de ensino médio e superior, apostando na revelação de futuros cineastas e roteiristas. Ou, quem sabe, espalhar festivais de cinema pelo Brasil inteiro, com a presença de diretores e elenco, a exemplo das feiras literárias que ocorrem no país. Assim, nossa gente passaria a se ver representada, espantando de vez o complexo de vira-latas, em filmes pra lá de instigantes: Bacurau, A vida invisível, Que horas ela volta?, Cidade de Deus, Central do Brasil, Tropa de elite, Deus e o diabo na terra do sol, O pagador de promessas, Bicho de sete cabeças, entre outros.

O amor perde o equilíbrio na beira

me fala sobre teu tecido adiposo
sobre tua saliva
sobre teus suores
sobre o que te faz rir bem alto
sobre quem você vê no espelho
sobre teus apertos
me fala de você sem retalhos
sobre tuas raízes
e teus calcanhares
sobre os becos escuros
sobre tua descida nas ladeiras
sobre tuas cicatrizes
e tuas crises de ansiedades
me diz sem medo que escuro te apavora
que ponteiro das horas te assusta
diz baixinho os teus segredos
os teus enclaves
me diz sem pressa da tua chuva favorita

cá vem que o abraço
é abrigo melindroso dos desamparados
ouvir também acolhe e meus ouvidos
são pousos para os teus cansaços

vem, me fala sobre os tropeços
sobre o que você carrega nos bolsos
por quem você roga no desespero
por onde você deixa saudade
que aroma tem teu cheiro
diz os sabores do chá que você toma
vem sem pressa apreciar os musgos
e cobrir todo o corpo de espanto
diz sobre o que faz você prender o choro
quem mora nos teus gritos
diz teus pormenores
e quem faz corar tuas bochechas

vem.
diz.
e repete tudo de novo.

 

Ítalo Lima é escritor e publicitário. e-mail: italolimapoesias@gmail.com
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Contam os Mapuche

Há um bom par de anos tomei um ônibus em Santiago e desci pelas belas estradas privatizadas do Chile. A concessão era recente. Tudo reluzia nos imensos e bem cuidados portões dos pedágios. Os mesmos que por esses dias detém caravanas de caminhões em protesto, entre outras coisas, pela cobrança que onera seus parcos rendimentos. Cheguei ao sul com o dia amanhecendo sobre os Andes, e pela janela em movimento recebi a imagem que ficaria para sempre em minha memória: os primeiros raios de sol disputando espaço com o Osorno. Junto com a imagem, um nascente questionamento sobre o quanto a instabilidade geológica da região e seus vulcões eram responsáveis pela cosmovisão e os mitos dos povos originários da região, que me ofereciam ali o primeiro contato.

Minha jornada se cumpriria na travessia dos Andes a partir da cidade de Puerto Varas. Ora navegando por lagos de águas calmas, ora sacolejando por estradas estreitas que cortavam montanhas, segui com olhos embevecidos pela riqueza do Parque Nacional Vicente Pérez Rosales apesar do frio de doer os ossos. Um nome espanhol intrometia-se na estranheza das pronúncias que me cercavam: a província era Llanquihue, o rio era Petrohué, o lugar do pernoite era Peulla. Palavras me atiçavam a curiosidade como o vento sobre a fogo que me aquecia, e venciam pelo cansaço a minha completa ignorância sobre o mapudungún, o som da terra que forma o idioma Mapuche. Hue, disseram-me, significa lugar; llancun, que cai, afunda; Petro, inseto de água, mosquito; Peulla, pegar geada. De repente, tudo começava a fazer sentido.

Depois dos trâmites de fronteira, atravesso o Parque e Reserva Nacional Nahuel Huapi (ilha do tigre/puma) em busca de novo pernoite na cidade de Bariloche (gente que está atrás da montanha). Naquele instante era o crepúsculo sobre os Andes que me fazia entender que a montanha apenas escondia povos de mesma origem, separados por uma divisão imposta pela colonização.

O museu da Patagônia é, então, destino irresistível no amanhecer. Na saída, caminho sem rumo por ruas e praças. Uma pequena livraria em uma estrutura de madeira, com cara de banca de revista, me chama a atenção. Meus olhos encontram um livro que me apresso em folhear, tentando decifrá-lo a muito custo. O livreiro me explica que se trata de uma edição feita pelo pesquisador César A. Fernández para a Biblioteca de la Cultura Argentina, a partir de contos do povo Mapuche que, mesmo sem escrita, impunha beleza nas histórias transmitidas ao redor do fogo de geração em geração. A ele recorro para dar título a esse texto.

Um dos contos trazia como personagem central Huaca Mamül, uma espécie de pau vivo que mora no centro da cordilheira. Há duas explicações na cosmovisão de intensa relação entre che (a terra) e newén (anima/energia que habita todos os seres). Para a primeira, seria o filho da lua que toma forma de madeira e tem força para destruir o que estiver ao seu alcance; para a segunda, é um guerreiro que foi condenado a navegar eternamente em um lago, aparecendo em noites de tormenta. O enredo relata que em uma tarde em que as pessoas estavam abatidas pelo calor, veio um vento forte e se ouviu um enorme bramido. Depois outro grito e mais outro ainda mais alto. Era o sinal de que Huaca Mamül chamava a água e o vento. Choveu muito e a ventania varreu tudo ao redor. E desde então, sempre se ouve o seu grito como previsão de mau tempo. O seu bramido é anúncio de tormenta.

Isso me veio à mente ao ver a bandeira Mapuche no topo da, já icônica, fotografia das recentes manifestações em Santiago. Concentram-se na imagem os gritos, que se guardaram por anos de abatimento à espera de um sopro de esperança, e a kimün (sabedoria) que se pauta na ideia da necessidade do equilíbrio das relações entre todos os que ocupam a terra. O bramido ao pé da cordilheira parece anunciar a tormenta de um sistema econômico-social que não mais se sustenta. Que seja varrida para muito longe a sua lógica perversa. Que venha a chuva que limpa e faz florir os campos.

Ninguém me rouba mais de mim

Por Jullyane Alves Teixeira

 

Desse rosto que é meu e que carrega todas as rugas que o tempo e os sorrisos e as mágoas me trouxeram, às vezes desconheço, às vezes me enamoro. Desse corpo que me trouxe até aqui, às vezes deixo estar, às vezes o celebro. Aprendi a me amar aos bocados, os olhos grandes, o nariz adunco, as olheiras persistentes, os cachos rebeldes, os seios pequenos, as cicatrizes nos joelhos de menina arteira, a silhueta que por muitos anos lutei para que se encaixasse nas métricas.

Ninguém me rouba mais de mim. Os meus abraços cabem afetos sem tamanho e minhas lágrimas lavaram minha alma. De quem eu sou e de onde eu vim, como cheguei e para onde quero ir, meus pés cansados de solas gastas sabem todo o caminho que percorri. Fiz dos percalços minha escola. Não sou quem quero ser ainda, mas estou bem longe de quem já fui.

Ninguém me rouba mais de mim. Meus gostos estranhos por fotografia e cinema antigo, as gatas pela casa que arranham móveis e pensamentos, as plantas e os livros que tomam o espaço em demasia, meu ateísmo que não se importa com santos da fé de minha companheira pela casa, minha certeza de não haver necessidade de trazer mais pessoas ao mundo. Tudo o que hoje é parte de mim me orgulha dum tanto, o que por muito tempo tive que defender com unhas e dentes.

Ninguém me rouba mais de mim. Dos meus abismos, das minhas birras, dos meus sonhos impublicáveis. Tudo que é meu está entranhado nos meus músculos e veias e sangue. Tudo que de mim me faz gente, ser pensante, indivíduo. Aprendi a me amar aos bocados e hoje me amo tanto que não me caibo inteira: transbordo.

Um mundo cheio de preás

 

Dentre os vários aspectos de Vidas Secas, romance de Graciliano Ramos, tem um que se destaca de todos: o sonho que marca a vida das personagens, incluindo a Baleia, cachorrinha que salva a família de retirantes da fome. A narrativa do escritor alagoano, que alguns críticos definem como romance desmontável, é um texto dos mais pungentes da literatura nacional. A história transcorre entre duas secas no interior do Nordeste – na primeira, fugindo da seca sem um destino certo, abrigando-se numa fazenda abandonada; na segunda, eles se deslocando para a cidade em busca de um futuro melhor. Tanto num como noutro caso, nos deparamos com pessoas embrutecidas, mais parecidas com bichos que gente de fato. A exceção fica por conta, por incrível que pareça, da cadelinha Baleia, humanizada a ponto de ter sentimentos humanos.

Por ter muita dificuldade com as palavras, o chefe da família, o vaqueiro Fabiano, homem rude e analfabeto, sonhava em falar bem, igual às pessoas letradas, que sabiam ler e escrever, além de terem o direito de votar. Daí se comparar, constantemente, aos animais: “Você é um bicho, Fabiano.” Ao tempo que admirava os “cultos”, mantinha um pé atrás em relação a eles, pois queriam geralmente tirar proveito de sua ignorância. Quanto à sinha Vitória, esposa dedicada e religiosa, o sonha dela era apenas ter uma cama confortável onde pudesse estirar os ossos: “Sinha Vitória desejava uma cama real, de couro e sucupira, igual à de seu Tomás da bolandeira. Afinal, dormir sobre varas, num arremedo de cama, como fazia há anos, a levava a suplícios terríveis, não bastassem os padecimentos do cotidiano.

Já os dois filhos do casal, que não aparecem com nomes, têm sonhos muito singelos. O do Menino Mais Velho se resumia em ter um amigo, não vários, mas tão somente um, com quem pudesse compartilhar brincadeiras e aventuras juvenis. Embora gostasse das companhias do irmão e da cachorra Baleia, queria ter um amigo de outro perfil, desses comuns, sem traço genético nem sendo bicho de estimação. Ser vaqueiro que nem o pai, esse era o sonho do Menino Mais Novo, que resultava em imitar os gestos de Fabiano nos mínimos detalhes. Como ainda não tinha um cavalo, a saída era improvisar a montaria no lombo de um bode velho, e fosse o que Deus quisesse. O piralho vivia metido nesse desejo: “Quando fosse homem, caminharia assim, pesado, cambaio, importante, as rosetas das esporas tilintando. Saltaria no lombo de um cavalo brabo e voaria na catinga como pé de vento, levantando poeira.”

Até a cachorra Baleia, antes de morrer, tivera um sonho também: um mundo cheio de preás, de preferência gordos e em abundância, que ela não precisasse correr tanto para pegá-los. Assim, a família de Fabiano, da qual se sentia parte, teria a mesa sempre farta, com todos alimentados e felizes. Pra dizer a verdade, ela já não suportava era caçar preás magros, cabendo-lhe apenas os ossos no final. Mesmo atingida por um tiro certeiro de Fabiano, nunca desistiu de pensar no bem-estar dos entes queridos: “Baleia queria dormir. Acordaria feliz, num mundo cheio de preás. E lamberia as mãos de Fabiano, um Fabiano enorme. As crianças se espojariam com ela, rolariam com ela num pátio enorme, num chiqueiro enorme. O mundo ficaria todo cheio de preás, gordos, enormes.”