Dentre os vários aspectos de Vidas Secas, romance de Graciliano Ramos, tem um que se destaca de todos: o sonho que marca a vida das personagens, incluindo a Baleia, cachorrinha que salva a família de retirantes da fome. A narrativa do escritor alagoano, que alguns críticos definem como romance desmontável, é um texto dos mais pungentes da literatura nacional. A história transcorre entre duas secas no interior do Nordeste – na primeira, fugindo da seca sem um destino certo, abrigando-se numa fazenda abandonada; na segunda, eles se deslocando para a cidade em busca de um futuro melhor. Tanto num como noutro caso, nos deparamos com pessoas embrutecidas, mais parecidas com bichos que gente de fato. A exceção fica por conta, por incrível que pareça, da cadelinha Baleia, humanizada a ponto de ter sentimentos humanos.

Por ter muita dificuldade com as palavras, o chefe da família, o vaqueiro Fabiano, homem rude e analfabeto, sonhava em falar bem, igual às pessoas letradas, que sabiam ler e escrever, além de terem o direito de votar. Daí se comparar, constantemente, aos animais: “Você é um bicho, Fabiano.” Ao tempo que admirava os “cultos”, mantinha um pé atrás em relação a eles, pois queriam geralmente tirar proveito de sua ignorância. Quanto à sinha Vitória, esposa dedicada e religiosa, o sonha dela era apenas ter uma cama confortável onde pudesse estirar os ossos: “Sinha Vitória desejava uma cama real, de couro e sucupira, igual à de seu Tomás da bolandeira. Afinal, dormir sobre varas, num arremedo de cama, como fazia há anos, a levava a suplícios terríveis, não bastassem os padecimentos do cotidiano.

Já os dois filhos do casal, que não aparecem com nomes, têm sonhos muito singelos. O do Menino Mais Velho se resumia em ter um amigo, não vários, mas tão somente um, com quem pudesse compartilhar brincadeiras e aventuras juvenis. Embora gostasse das companhias do irmão e da cachorra Baleia, queria ter um amigo de outro perfil, desses comuns, sem traço genético nem sendo bicho de estimação. Ser vaqueiro que nem o pai, esse era o sonho do Menino Mais Novo, que resultava em imitar os gestos de Fabiano nos mínimos detalhes. Como ainda não tinha um cavalo, a saída era improvisar a montaria no lombo de um bode velho, e fosse o que Deus quisesse. O piralho vivia metido nesse desejo: “Quando fosse homem, caminharia assim, pesado, cambaio, importante, as rosetas das esporas tilintando. Saltaria no lombo de um cavalo brabo e voaria na catinga como pé de vento, levantando poeira.”

Até a cachorra Baleia, antes de morrer, tivera um sonho também: um mundo cheio de preás, de preferência gordos e em abundância, que ela não precisasse correr tanto para pegá-los. Assim, a família de Fabiano, da qual se sentia parte, teria a mesa sempre farta, com todos alimentados e felizes. Pra dizer a verdade, ela já não suportava era caçar preás magros, cabendo-lhe apenas os ossos no final. Mesmo atingida por um tiro certeiro de Fabiano, nunca desistiu de pensar no bem-estar dos entes queridos: “Baleia queria dormir. Acordaria feliz, num mundo cheio de preás. E lamberia as mãos de Fabiano, um Fabiano enorme. As crianças se espojariam com ela, rolariam com ela num pátio enorme, num chiqueiro enorme. O mundo ficaria todo cheio de preás, gordos, enormes.”