Luana Sena

Amar e escrever à máquina

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A verdade sobre mim

Não, não teve texto de ano novo porque talvez – mas só talvez – não tenha tido ano novo algum. Peguei uma greve no mestrado, de modo que 2015 está estanque e pode ser esse o motivo da ausência de um reveillón em mim. Não somente. A verdade é que lá em janeiro do ano passado eu comecei um ano que só vai terminar daqui a dois. Aguardemos.

Mas é estranho aguardar sem que o tempo que passa seja marcado pelos acontecimentos – nada acontece, novamente, em mim. Não consigo mais ser mil. Não que um dia eu tenha conseguido, mas é fato que está bem mais difícil agora parar de problematizar tudo, falar de bobagem com os amigos, tomar um vinho – eu que nunca fui de vinho, veja você – escutando Gal cantando Azul. Tudo tem ficado tão intenso enquanto tento convencer a mim mesma que as coisas não precisam ter o peso de um elefante.

Fui acometida por uma LER na mão direita e agora digito enquanto penso no ousado projeto do meu corpo de tentar prender tantas palavras em mim. Dei pra ir deitar as 4 da manhã, mas isso nem significa exatamente dormir.

Fico muito bem em mim e, aparentemente, parei de sofrer por saudade ou expectativas. Sou de uma apatia terrível, tanto faz se tá frio, tanto faz se calor, se estamos na noite de sábado ou se a quarta-feira derrama cinzas pelo país. Você vai me ver sorrindo e pensar que estou curtindo pra valer qualquer momento, mas na verdade, em qualquer hipótese, pode apostar que eu preferia estar no sofá lendo o Twitter.

Saudade pra presente

Quando eu era criança, o mês mais esperado do ano era dezembro – e não era por causa dos presentes de natal ou da comilança. Era porque meu avô me levava numa livraria pra comprar o material escolar do ano seguinte e, como bicho solto, eu escolhia tudo de mais lindo e da moda, do jeitinho que eu queria. Canetas com bolha de sabão. Caderno com cheiro de chocolate. Corretivo multicolorido. E um monte de coisa que, na prática, não surtiam nenhum efeito nos estudos. Mas faziam eu me sentir no colégio.

Cresci uma adulta obsessiva por papelarias. Algumas pessoas ficariam felizes em bares, shoppings, churrascarias, galerias, teatro ou supermercado. Mas eu fico muito bem, obrigada, cercada por bloquinhos, envelopes, grampeadores, clipes coloridos, canetas e tubos de corretivo. O certo é que em duas décadas e meia de existência, finalmente, eu descobri como canalizar isso para o bem.

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Ano passado, através das cartinhas de Natal dos Correios, conheci Pâmela e Dayron. Ambos estudam e moram na periferia de Teresina, e, ao invés de bola ou boneca, pediram ao Papai Noel seus kits escolares para o próximo ano. A Pâmela foi meio modinha: queria tudo da Monster High, essas bonecas espantosas que invadiram a tv, as mochilas e os cadernos. Já o Dayron, mais tradicional, queria tudo da Hot Wheels. A lápis, o menino de 11 anos escreveu: “minha mãe e meu pai não tem condição de compra poriso eu estou tipidino”.

Montar os kits de Pâmela e Dayron foi um dos meus maiores prazeres daquele ano. Escolhi tudo como para mim mesmo: as melhores canetas, o caderno mais bonito, o estojo temático, e atentei até para os detalhes de borrachas e lapiseira. Em outros tempos eu levaria tudo pra casa, na minha compulsão por esses trecos, entocaria em uma gaveta e provavelmente nunca usaria. Dessa vez eu embrulhei tudo e deixei nos Correios.

Esse é o primeiro Natal sem o meu avô. Não pensem vocês que não dói – a lembrança dele está em cada momento, em todo detalhe, naqueles frames que povoam meu pensamento antes de dormir. Mas nesse tempo de ausência eu entendi que uma forma de preservar a memória de uma pessoa, é perpetuar as coisas boas que ela fazia.

Seja onde você estiver, vô, estará no sorriso de Pâmela e Dayron na manhã do 25.

Sinto sua falta. Feliz Natal.

Diz que fui por aí

Tenho uma amiga que trabalha dois turnos, malha, faz balé, prepara a própria comida e ainda faz a sobrancelha no salão a cada quinze dias. Eu admiro, queria estar: no peso ideal e por dentro das polêmicas do facebook. Meus outros amigos que não trabalham ou estudam (porque ninguém é obrigado), estão por aí acompanhando a agitada vida noturna da cidade, o que, também admito, exige invejável esforço.

Tem essa sensação, que é muito real e cruel, do mestrando ver a vida passando ao seu lado e só observar. Sim, é verdade. E olha que eu só tenho aula três vezes na semana, pago um estágio e faço uns freelas. Minha ex-chefe terminou o mestrado dividindo a rotina com três empregos, dois cachorros e uma dissertação – e estava sempre maquiada, vestido passado e disponível 24h no whatsapp.

Eu não tenho uma meta, sempre estou a um passo de perder os prazos. Mas isso não quer dizer que não me esforce. Assim como eu, meus livros sempre chegam com um mês de atraso às discussões, minhas roupas perderam as expectativas, a sobrancelha saiu da linha e minha bicicleta cansou de esperar o dia em que sairia para passear.

Lembrando um pouco de que sim, um mundo externo existe, de vez em quando vale a pena pegar o carro, cair na estrada, e ver o mundo sob a ótica da embriaguez. É ali, numa bodega de calçada, com meia dúzia de pessoas escolhidas a dedo, que você se dá conta do quanto é pertinente debater a origem semântica do “ó do borogodó” e se o método de almoçar criando barreiras entre os ítens no prato – ou misturar o feijão com o arroz até que não se distinguam – diz algo relevante sobre o jeito de ser de cada um de nós. Dadas as conclusões, pode voltar para casa sentindo-se vivo – como o cão que quase salta a janela ouvindo o vento passar, fechando os olhos, sorrindo.

Tem algo de muito urgente e belo em tudo isso.

No rádio do seu coração

(foto: Mauricio Pokemon)

(foto: Mauricio Pokemon)

Parece hoje, fechar os olhos e lembrar da viola de madeira verde do mau pai, tocando os primeiros acordes de Preta Pretinha. Do alto dos meus quatro ou cinco anos, eu bateria em qualquer um que me dissesse que aquela canção não era nossa.

“Eu sou um pássaro que vivo avoando…”

Anos depois eu captei alguém dizer: “toca aquela do Moraes Moreira”. Aprendi aquele nome – e que, apesar da gente pegar pra si, as músicas tinham dono.

Já adolescente eu me encantei pelos Novos Baianos, os filhos de João. A loucura de morar num sítio com menino e música, gastar a grana do disco com chuteira e bola, morar num ap no Rio com o lendário quarto da bíblia (tudo isso tá aqui nesse doc, que você não deve passar por essa vida sem ver). Eu queria ser da turma deles, sorrir e cantar como Bahia.

(foto: Mauricio Pokemon)

(foto: Mauricio Pokemon)

Assistir Moraes Moreira ontem foi revisitar essas memórias. O som da infância. A trilha sonora da saudade. O show “Anos 70 e hoje” trouxe um repertório pra agradar todas as gerações – de “Mistério do Planeta” (Moraes Moreira / Galvão) a “Flor do desejo” (Fausto Nilo/Moraes Moreira/Pepeu Gomes). Todos os maravilhosos frevos, entre eles o imortalizado por Gal Costa, “Bloco do prazer” (Moraes Moreira/Fausto Nilo), que transformou o Teresina Hall num baile de carnaval. Depois veio “Sintonia” (Morares Moreira) e até homenagem a Teresina com “Cajuína” (Caetano Veloso).

O show é parte de um projeto dos Correios, “Pombo Correio”, que passa por cinco capitais e tem uma contraproposta social: na véspera, Moraes fez uma apresentação fechada na Associação dos Cegos do Piauí (Acep). Além disso, os Correios selecionam cartas de pessoas separadas pela saudade e promovem o reencontro delas no show. Em Teresina, Renata, que mora há dez anos em São Paulo, reencontrou a mãe, Raimunda.

E eu me reencontrei comigo.

Meu passado, minhas histórias.

Estava tudo lá, em cada canção, que são minhas, e até podem ser do Moraes também.

Completamente contente

Deixa eu dizer, antes que a ideia me fuja. Aqui em São Paulo todo mundo anda apressado – é um sobe e desce na estação, um mar de gente me levando e eu começo a correr também embora não saiba exatamente para onde. Até na escada rolante e na esteira eles correm. Me reservo ao direito de ficar parada, sempre no corremão da direita, que é o que me cabe.

O certo é que durante todo o percurso do Bela Vista ao Butantã ele me vinha a cabeça: “Vai com calma, você vai chegar”. Eu tinha vontade de amplificar aquela voz e gritar às pessoas na rua: “Vocês aí, tenham calma!”.

Um sobrado azul num beco acolhedor parecia, ele todo, nos esperar. Ouço um assovio da janela superior, seguido de um xaveco: “Olha que gatinha!”. Mas não era um galanteador qualquer. Era Di Melo, o imorrível.

Conheci seu disco clássico, de 1975, há cerca de um ano. E nunca mais parei de ouvir. Nem acreditei quando conseguimos marcar esse encontro, mediado pela dona Jô, mulher e assessora de Di Melo – inclusive, vale aqui meus mais sinceros elogios a toda simpatia e doçura dessa anfitriã, que passou café e foi comprar bolo de milho cremoso na esquina, pra tudo ficar ainda mais gostoso.

Café com o imorrível Di Melo (foto: Mauricio Pokemon)

Café com o imorrível Di Melo (foto: Mauricio Pokemon)

Quando percebo estou eu falando de mim: do trabalho, da viagem, da vida a dois. Acabou-se a relação repórter fonte. Di Melo já é meu amigo. Já é alguém que eu queria ter conhecido há mil anos, com quem eu queria sentar num bar, com quem eu gostaria de aprender a escrever poemas e canções. De repente a Jô já está mostrando a casa, os quadros na parede, o fusca e o álbum com fotos da Gabi, filha do casal, modelando aos nove anos.

O repórter que não se envolve com a fonte, que não senta pra tomar o café com calma e observa com atenção e também amor o que ela fala, está, de fato, num caminho muito errado. Aliás, vamos aqui derrubar essa palavra “fonte”, se ela estiver limitada a alguém que gera apenas informações. O que mais brota das minhas “fontes”, quando as entrevisto, são boas histórias, olhares cúmplices, identificação, estranhamento e até felizes coincidências. Tá permitido entender a emoção do outro, inclusive, muito em voga.

De cada encontro desses, como o que tive com o Di Melo e a Jô na tarde de ontem, eu levo mais que novidades. Eu me renovo em força, vontade e fé. Por vezes, minha profissão me leva a tais circunstâncias, mas em outras ocasiões eu mesma tento encaixar em pauta tudo aquilo que vivi e aí ambos se misturam deliciosamente em mim. É quase místico. Como se fosse simples relatar o místico. Mas, por quase um segundo, me arrisco a falar, enquanto tudo isso se processa em minha mente, eu me sinto completamente contente.