Promessa dada tem que ser promessa cumprida. Voltei a Marmelada um anos após conhecer aquela comunidade cuja história contei pra Revestrés. Você pode ler aqui, mas relembrando rapidinho: um pequeno grupo de pessoas no interior de Gilbués, sul do Piauí, que festeja o divino espírito santo há quase 200 anos da maneira mais genuína e linda que eu já vi de praticar a fé. Eles não tinham energia elétrica até 2015. E quando chegou, lutaram para retirar os postes que impediam a passagem do mastro levantado. Tá tudo cheio de simbologia. É tudo divino, maravilhoso.

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meu rancho, embaixo de um pé de fava <3

Dona Ilene me recebeu com a mesma festa. Uma preta linda do abraço apertado, a guardiã da chave da igreja. A gaitada dela continua do jeitinho que eu me lembrava. O beiju grosso no fogão a lenha. O café passado pra tomar sem pressa. Tudo segue da maneira como eu guardei a Marmelada no meu coração.

Este ano, mente aberta e alma leve, reparei em novos personagens. É claro que afinei as amizades antigas: que felicidade dona Olenor boa de saúde. O vei Chico chega tava outra pessoa, o semblante só de alegria. Ela, na missa de sábado, parecia uma princesa. A saia rodada verde, um sapato de veludo cor de rosa. O padre falando: “Eu não me guio em quem eu sou: eu me guio na fé de dona Olenor”. Eu também, seu padre.

IMG_1169A burra de seu José de Quintino morreu – ele disse que ela foi picada por uma cobra, ou algo do tipo, e caminhou léguas pra chegar em sua casa e morrer em paz. Ele ainda lembra o último olhar. Arrumou um pé de pano, segue andando com rapé no bolso. Foi ele que disse que a “Para tudo” (a cachaça que é sucesso nas esmolas), na verdade, é “conserva tudo”. 94 anos e toma todo dia. Ouça a voz da sabedoria.

Vanjinha, dona Ninica, Isabel, Jaciara, Raimundo Batista (o sineiro que de tanto tocar o sino da igreja ficou corcunda), Maximiano. Este último tava com olho machucado – foi colher alguma coisa no mato, um galho desgovernado o acertou em cheio. Lembrei da história de Lampião, o alertei – um ômão da porra desse não pode perder a visão. Tava vermelho e baixo, ele não foi ao médico. Mas não há dúvida de que se apegou com o divino.

Conheci este ano seu irmão, o Tinhô. É ele que faz o tambor que Maximiano toca há anos – é feito de aroeira e couro de viado (outro animal não funciona, sob o risco de comprometer a sonoridade do instrumento). A maneira como Tinhô narra sua história é emocionante. Cada frase é uma poesia, ele sabe direitinho observar a linha que cruza toda a sua vida. “Deus me algemou a família”. É uma verdade. Aos 16 anos assumiu o comando da casa, cuidou da mãe e todos os irmãos. Depois casou e teve um filho especial, que só acalmava com ele. Os filhos cresceram, ficou viúvo, hoje cuida dos netos que moram com ele. Seu Tinhô é pai em poesia e essência.

Prometeu tentar fazer o meu tambor – o divino que vai dizer se sou digna de tê-lo. Se ele julgar que sim, deixarei claro que o tambor estará comigo mas será sempre da comunidade. A única vez que ele os comercializou foi para ajudar o tratamento do filho doente. Ainda apareceu político desviando essa renda. Agora tá mais difícil fazer, com a caça proibida e a madeira em extinção. E eles tem uma consciência total disso, por esta razão não se comprometeu.

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Dona Ilene construiu um banheiro – o cômodo agora está rente a nosso alojamento, imponente, todo pintado de branco. É o único espaço da casa de pau a pique com parede branca. A gente nota a alegria da dona em ostentar aquilo que até bem pouco tempo parecia inalcançável. Usei um dia, só pra agradá-la. Ela mesma concluiu: “já reparei que você gosta mesmo é de tomar banho no banheiro com teto de estrelas”.

No dia das esmolas – o famoso domingo de pentecostes – colei no alferes, o seu Orlando de Ninica. Vestindo a indumentária que a ocasião exige, é extremamente respeitado por todos ali: é ele quem escolhe o roteiro a ser percorrido, direciona os capitães, recolhe as doações. Depois das cantigas pro dividino e para o padroeiro da casa, é a hora do samba – particularmente, meu momento preferido. Acho que eu sou foliã de raiz – desculpa, Marmelada. Eu tinha que ter essa falha. Mas tenho o cuidado de não ser afoita demais sob o risco de ser considerada apenas pelega. É possível passear entre os dois, migrar rapidamente do sagrado pro profano. Tanto é que os melhores cantadores são exímios foliões.IMG_1124

É na hora do samba que surge a cachaça . Alguém (geralmente, o dono da casa), surge com a “Para tudo” e oferece ao alferes. Ele a impõe no alto, todos vibram, cantam, dançam, gritam, batem palma. Mas só bebe aquele a quem o alferes oferecer. É ele quem tem o poder de decidir quem vai beber, o quanto vai beber e a ordem – em geral, capitães recebem a dose primeiro. Preciso dizer que foi uma honra quando, após oferecer-me a dose da cachaça pela primeira vez, Orlando me botou sempre na roda – até, na última casa, da última esmola, eu chegar a ser a primeira pessoa – depois dele – a beber. Isso pra mim foi a maior honra.

Este ano reparei poucos bichinhos pagando promessa na Marmelada – sinal de um superávit na saúde dos animais da região. Dois cavalos e um cachorrinho seguiam com a gente a caminhada de um dia inteiro (12 casas), que sobe os grotões, atravessa rio ressequido, cruza literalmente o caminho das pedras e passa pelo cemitério, parando somente para o almoço. Encerra tudo na igreja, com uma procissão belíssima – todo mundo de velinha na mão, aqueles pontinhos de luz no meio da escuridão.

Voltei com uma sacola carregada de catinga de porco, coroa de frade, alecrim e canelinha – toda cura para todo o mal parece estar aqui comigo agora. Isso sem falar em presentes como favo de mel, caneta de pena, o chaveirinho do divino e a binga (ou artifício, nome que eu gosto mais). Aprendi a fazer fogo, a atirar com um bodoque, a aceitar tudo de bom e ruim que a vida pode me dar.

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família que me adotou na Marmelada <3

Na Marmelada, quando a gente agradece qualquer coisa (tipo, “obrigada, dona Ilene, pelo almoço!”), eles não dizem “por nada” nem tampouco “não há de que”. Eles sabem que há motivo sim para agradecer, porque tudo é custoso, tudo é trabalho, é suor – mas se a pessoa estiver comendo uma migalha de pão, e esta for o único alimento que ela tem, ela vai te oferecer, e quando você disser “obrigada!” ela vai apertar sua mão com força, talvez até te puxe pra um abraço, e vai dizer: “merece”.

E, depois disso, moço, você vai entender o que é o divino.