A chita estampada embrulha a TV como uma marmita na trouxa de pano. “É pra não pegar poeira”, comenta Bideco, o peito entreaberto na blusa, todo vermelho, tostado do sol. Vaqueiro, filho de dona Ninica e seu Raimundo Preto, carrega o sangue dos Honorato. Pelas brechas no telhado entram raios de luz. O sol, no céu, marcando meio dia na Marmelada.

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Não tem muito tempo que o brilho do sol deixou de ser a única fonte de luz daquele lugar. O calor do mormaço não desanima a junta de bois mansos passando devagarinho. O som dos chocalhos quase é capaz de abafar a televisão que chegou por ali ano passado – pouco antes deles terem, pela primeira vez na vida, energia elétrica.

Quase cem pessoas vivem na comunidade que tem nome de doce e gosto de sol. As margens do rio Uruçuí Vermelho, que agora não passa de torrões de lama ressequida, plantar e criar são os meios de levar a vida. Os primeiros que chegaram ali eram vaqueiros, garimpeiros, descendentes de índios e também escravos.

Os traços da mistura estão nos detalhes, como a cor exuberante de dona Ilene. Chegou gargalhando com o café. Ela cata girassóis enfeitando as portas, mas nem da beleza da flor o calor tem piedade. Tinha-se deixado estar no alpendre sentada, descansando as pernas no chão de barro enquanto o fogão a lenha preparava o cuscuz. Era véspera do grande dia, a levanta do mastro. O pensamento vagava numa visão de boa ventura.

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Os dez dias de Festejo do Divino Espírito Santo anunciavam-se com boas novas: duas prendas vindas da capital para bingar na igreja, junto ao garrote e uma quantia em dinheiro. A filha prometeu que viria, sentia saudade dos netos. Gero, o marido, também queria ver seu povo.

Naquela manhã, Ilene pegou-se a pensar em como tudo começou. A celebração é mais antiga que sua sede, é verdade: a pequena igreja recém pintada, cuja chave e o zelo lhe são atribuídos, foi construída nos anos 1960. O que os mais velhos contam é que a mais de um século se festeja o divino ali, embora poucos saibam exatamente dizer quem começou.

A primeira pessoa preocupada em deixar a história no papel foi Venceslau Fonseca, o seu Frito. A mão resguarda os olhos fundos, tentando ler por trás dos óculos os rabiscos que escreveu a punho em três folhas pautadas, agora, amarelas. “O que se sabe do Festejo do Divino Espírito Santo, da comunidade de Marmelada, antiga Firmeza…”, ele vira a página, sentado no parapeito, os pés suspensos a balançar. “Informou-me a senhora Maria Raimunda de Sousa, que em 1889 chegava aqui seus pais, Lúcio Marcos de Sousa e Marcelina Maria de Farias, e já encontraram a senhora Bertolina festejando o Divino Espírito Santo”.

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Levantada em 1962, a casa de Frito é grande e escura, contornada por mandacarus e coroas-de-frade. O riacho Marmelada e o córrego do Uruçuí arrodeiam sua varanda e quintal – parece um cenário de Velho Chico. Ele e Luzia criaram ali os 13 filhos, hoje, no mundo. O Divino é padroeiro certo, mas a única imagem em um oratório singelo para quem Luzia acende vela, é Nossa Senhora do Bom Parto.

Para a família Fonseca, a energia elétrica ainda não é uma realidade. Quando os homens do governo se arranchararam na região, o boato era de que até o fim daquele ano os fios estariam cruzando todo o céu da Marmelada. Para quem mora além do riacho, a promessa ainda ressoa na fala das autoridades. Foi bom não desfazer da lamparina nem do radinho a pilha.

Até bem pouco tempo, a luz na Marmelada era somente a do céu negro. Os postes de concreto foram levantados em março de 2015. Geladeira e TV começam, devagar, a decorar as casas de poucos móveis. Um foguete estrondou no tempo e todos ficaram em festa, mas a alegria durou pouco. No mês de maio, faltando poucos dias para o Festejo do Divino acontecer, os capitães atinaram-se para um detalhe. Os fios elétricos cruzavam a estrada de terra em zigue-zague. O mastro não poderia passar com a procissão.

Festejos do Divino Espírito Santo acontecem em muitos cantos do Brasil – mas é a procissão com o mastro erguido que distingue a Marmelada. As atividades começam nove dias antes do Domingo de Pentecostes, data em que, segundo os católicos, os discípulos de Jesus Cristo presenciaram a descida do espírito santo. O Pentecostes é celebrado 50 dias após o domingo de Páscoa – e é ali, a quase dois meses do festejo, que a preparação começa.

O galo canta as três da madrugada, o sábado se vai, o dia santo vem, e os homens estão prontos para sair à mata por estradas pedregosas e quase sempre secas. Eles vão equipados para a caça, mas a sina é buscar a melhor Pindaíba que forem capaz – a árvore da Mata Atlântica tem tronco comprido e naturalmente lustrado. É preciso de dois que, amarrados com imbira, viram o mastro. Eles são escondidos para quarar ao sol pelos próximos dias.

Apesar das redes suspensas, naquela tarde ninguém fez a sesta na casa de Frito. Lagartixas davam carreiras por cima das folhas secas no chão, não mais ligeiras que os homens que passavam em bando em frente a varanda. “Tarde, seu frito!”, gritavam alguns. Sorriam, cantavam, teimava e tomavam cachaça. Era a folia do Divino começando.

Eles voltam com o mastro encaixado sobre os ombros, as calças suspensas no meio da canela – o percurso atravessa o rio e segue 500 metros até a casa de Manoel de Rolinha. Fogos de artifício anunciam, finalmente, a chegada. Manoel tinha tino pra madeira e inventou a “grade” do mastro, uma engenhoca com quase dez hastes arqueadas em forma de pirâmide, capaz de manter o mastro de 48 metros erguido e equilibrado.

Falta pouco para as seis, o sino da igreja badala e já se ouve a marcação do tambor. As velas de cera branca tem saiotes de papelão na mão de mulheres e crianças que vão a frente. A tarde vai ficando cinza e a cera quente virando pontinhos de luz na paisagem. O bando carrega o mastro repetindo ladainhas em latim, puxadas pelas cantadoras. O pano amarrado na cabeça, o rosário e a voz que vem tanto da memória quanto do coração: todas as cantigas foram ensinadas pelas bisavós, avós e mães.

“Me impressiona muito a cantoria porque a maioria delas não saber ler nem escrever e não faz ideia do que está dizendo. Mesmo assim, cantam”, comenta Roberto Saboia, documentarista que conheceu o festejo há mais de dez anos. Ele passou a frequentar anualmente, criou laços e fez amigos – é hoje uma espécie de secretário da população, fazendo a ponte entre a comunidade e a capital – Marmelada fica a 22 quilômetros do município Gilbués, e a outros 742km de Teresina. A região possui grande reserva de diamante, a única do Nordeste, que sozinha pode equiparar o Brasil a Rússia e Botswana, maiores líderes do setor.

Cada ida de Saboia para lá é um frete: desta vez, um óculos para dona Ilene, documentos para Frito, foguetes e rojões, além de um liquidificador e prancha para cabelo – com a chegada da energia as prendas para bingar na igreja se sofisticaram.

Em uma década, ele e Zé Piau, ambos da Associação Brasileira de Documentaristas – a ABD Piauí – filmaram mais de 30 horas de imagens e entrevistas na Marmelada. Editado, o material deu origem ao documentário Festejo do Divino Espírito Santo, em 2006, que já foi exibido pelo Canal Brasil.

Foi Saboia que entrou em ação, frente aos moradores da Marmelada, para pedir que os postes de luz saissem do caminho do mastro. “Eles queriam muito a chegada da energia elétrica”, lembra. “Ficaram tão entusiasmados que ninguém se lembrou, na época, da procissão”. Saboia digitou um ofício no computador, foi até a Marmelada e caminhou embaixo do sol colhendo assinaturas de todos da região. “Pedimos ao presidente da Eletrobrás-Piauí, Sr. Marcelino da Cunha Machado, que ordene a retirada da fiação elétrica que passa sobre a estrada pela qual percorrem as procissões do Festejo do Divino Espírito Santo…”, dizia o documento.

Os fiés da Marmelada tiveram a seu favor o Instituto de Patrimônio Histórico e Artístico Nacional, o IPHAN. Há seis anos, um grupo de pesquisadores do órgão foi ao local para fazer uma descrição etnográfica da celebração. Antropólogos, sociólogos e historiadores levantaram acampamento para participar do festejo. Até hoje dona Ilene guarda com afeto a foto de uma das pesquisadoras da expedição, Mariana Frizero. A expedição deu origem ao processo de registro do Festejo do Divino Espírito Santo da Marmelada como patrimônio imaterial do Brasil.

“O elemento principal para o registro é que se trata de uma referência cultural para a comunidade”, diz Ricardo Pereira, historiador. Por email, o técnico do IPHAN que acabara de chegar da viagem ao povoado, comentou os principais aspectos dessa manifestação. “O festejo existe desde o século XIX, e foi preservado e transmitido pelas gerações de moradores, sem que houvesse intervenção do estado ou da igreja católica”, observa. Todas as características do ritual, marcado pelos benditos, ladainhas em latim, novenas, esmolas, procissões – e ainda os elementos não sagrados como o forró e o encontro dos vaqueiros – estão no relatório. Cabe ao órgão ajudar para que o estado não faça intervenções que a comunidade não queira. “Não creio que este festejo dependa do IPHAN para sua preservação”, conclui. “As famílias da Marmelada já fizeram isso muito bem ao longo do tempo”.

A Marmelada movimenta uma espécie de turismo religioso – os primeiros dias são marcados de reencontros, romeiros chegam em paus-de-arara e vão se arranchando em casas de pau-a-pique, levantadas especialmente para a ocasião. O trabalho é coletivo, os homens pegam a enxada, levam o gado para o abate, as mulheres cozinham e arruma a igreja – há quem tire uns trocados na temporada, mas a impressão é de que tanto o trabalho quanto a hospitalidade são baseados na ideia da dádiva – são ofertas para o divino.

O pequeno pátio em frente a igreja serve de praça para prosear. Um cachorro dorme ignorando o mormaço, as crianças brincam de roda e as mulheres passam com fardos de arroz e feijão em tempo de pôr no fogo. Todos os rostos são só sorrisos – o festejo começou e o mastro corta o azul no céu, brilhando imponente pelos nove dias que se seguem.

Apesar da súplica, os postes não foram retirados a tempo em 2015. O festejo não deixou de acontecer por isso, mas todos sentiam que parte importante da tradição se quebrava ali. Abalado, Maximiano lista a sucessão de tragédias: a irmã de Vanginha morreu, dona Olenor enterrou um filho, a sogra Ninica adoeceu. Sua fala tem mais lamento que temor. O corpo franzino segura o tambor feito de pele animal, timborana e corda que toca há uma década – é um dos lugares mais importantes do festejo, a reza só começa ao toque do instrumento. Seu mentor, Raimundo Preto, tocou por quase meio século e só a morte fez calar o seu tambor.

Um ano depois, há poucas semanas do festejo, a companhia elétrica atende ao pedido e envia uma equipe para resolver o impasse – pelo menos oito postes foram realocados para que, enfim, o mastro do divino pudesse voltar a passar em seu percurso de hábito. A comunidade estava em festa.

O que sucede a procissão é um forró animado no clube da Marmelada. O sanfoneiro Raimundo Tanger comanda a dança há 30 anos – nada de forró da moda, por ali ainda se ouve o pé-de-serra de raiz. Antes de começar o som, Jaciara Tavares, uma morena de cabelos cacheados e compridos balança um bebê miúdo. Ela veio de Brasília acertar-se com o divino. Maria Júlia, que está ao colo, nasceu antes do tempo e passou semanas na UTI. Foi um período difícil para mãe e filha, separadas tão logo ao nascer. Sozinha entre quartos de hospitais, Jaciara lembrou-se do conselho de sua mãe: “Apegue-se com o divino”. Agora estão ali para quitar a dívida, ela e a pequena pagadora de promessas que mama tranquila.

Dona Olenor, o cabelo claro arrumado sobre a pele escura, lembra o dia em que pediu ao médico licença para voltar pra casa e falar pessoalmente com o divino. Ela estava internada em Brasília, tratando um câncer que lhe acometeu. “Participo do festejo desde os sete anos de vida”, alegou diante do jovem de jaleco no consultório frio. Baixou a vista e tomou fôlego junto com coragem. “Vá desculpando, dotô, mas lá o nosso médico é deus. E ele tem nos atendido muitas vezes”.

Olenor foi a porta-bandeira na procissão do mastro que abriu o festejo, mas teve de retornar ao hospital antes do domingo de esmolas – um espetáculo a parte, de fé e graça. O alferes, escolhido pela comunidade, carrega a bandeira do divino, guiando o bando casa por casa da região. No cenário seco e árido, as sobrinhas vão colorindo a estrada, protegendo do sol os sertanejos que choram e dançam. Muitos seguem a pé, outros a cavalo, mas há também carros de boi e uma ou duas motocicletas.

As casas cor de terra molhada ficam pequenas para a quantidade de pessoas que chegam na poeira do sol. São momentos de preces em canto, sanfona, pandeiro e tambor. A crença diz que tudo o que o divino toca será abençoado. É comum ver a bandeira erguendo-se sobre o galinheiro, a horta, o curral e, agora, a geladeira. Há casas onde o próprio morador cobre-se dela, ajoelha-se e agradece. Francisco Honorato, o marido de Olenor, tem feição dura e mãos calejadas. Surpreende a face rude marejando os olhos ao tocar a bandeira. A mulher já voltou ao hospital, que sina, meu deus, tocar sozinho o gado, a casa, a vida. A vizinha ensaia um afago nos cabelos ralos do amigo, engole o choro. Ele tira do bolso um lenço surrado e esfrega os olhos vermelhos.

Dali a esmola segue ao cemitério. Morrer na Marmelada é deixar aos vivos a missão de um cortejo trabalhoso – a caminhada até o local exige pique de alpinista. No alto do morro, as sepulturas compõem uma paisagem bonita e triste. O local nunca é excluído do roteiro. É dever do alferes percorrer a bandeira por todos os túmulos, tomando cuidado para, ali, jamais tocá-la nos vivos.

Angelita Soares é romeira e peleja contra o vento para manter acesa a vela, ao lado da sepultura de sua mãe, feita com pedras, folhas secas e um crucifixo de madeira. “Vou estar nessa caminhada enquanto vida eu tiver”, diz baixinho. “Fui desenganada pelos médicos, me apaguei ao divino espírito santo e fui valida”. O rosto, agora alegre, deixa escapar uma esperança: “Essa fé dentro de mim é viva”.

O caminho é longo e pedregoso – o sol castiga a pele, a garrafa de cachaça e o abano de palha vão à mão de homens, mulheres e animais no cabresto, amarrados em pau-branco seco que fazem as vezes de sombra. Eles também estão ali para pagar promessas – diante da angústia de ver seus bichos doentes, os devotos prometem ao divino cumprir as esmolas ao lado de suas crias.

Seu Antônio Lira vibra a saúde do cavalo, finalmente livre da cachingação. “Ele cortou a mão no arame. Quando eu achei, ele tava amoitado e eu trouxe ele pra casa arrastando a mão”, conta. “Achei que ele não ia escapar e pedi ao divino que se meu cavalo não espaduace eu ia cumprir um dia de esmola”. Ao comando, o animal parece entender e repousa a pata em seu colo, mostrando a pisadura sarada. Não é mais o dono e seu cavalo. É um homem e seu melhor amigo.

Eva também pediu para o divino interceder pela bezerra Bibita. “A mãe dela morreu, ela era pequenininha e doente”, relembra olhando o animal que birra com o arreio de corda. “Me apeguei com o divino e prometi: se ela não morresse eu ia acompanhar a esmola junto dela”, alegra-se. “Eu tive fé e fui valida, mas ela tá aqui zangadinha”, ri.

As esmolas são retribuídas com alguns tostões, comida ou garrotes. Todo o arrecadado é destinado, em acordo, à igreja. É por isso que numa região de casas sem luxo algum, o espaço é um requinte à parte: tem piso em cerâmica, teto forrado, ventiladores, bebedouro e um banheiro – cômodo incomum nas casas da região. O templo é pequeno mas suficiente para caber o altar inteiramente dedicado a ele, o divino, simbolizado pela pomba e a bandeira que contrastam o vermelho e o branco com as fitas coloridas em cetim.

São dez dias em que o tempo corre diferente no sertão. O povo da Marmelada é acostumado com o difícil, porque nada ali vem fácil – é preciso plantar para colher, pescar para comer, montar para correr e crer para viver. Pouco ou quase nada facilita a vida por ali – não há médico, prefeito, padre, comércio, nem nada no qual os moradores depositem mais confiança que o poder divino. É preciso olhar pro arremedo de nuvens no céu e crer.

Mal o fole silencia e o sol desponta findando a escuridão, os devotos estão prontos para a despedida – não importa o quão feliz possa ser um domingo de pentecostes, sempre haverá uma segunda-feira ingrata. A comunidade está agora mais saudosa que festeira, e o sino ecoa anunciando a abertura da igreja. Dona Ilene reconduz a bandeira ao altar, as mãos vão ao rosto tangendo as lágrimas. “Meu divino espírito santo, aqui vois ficai”, puxa a senhora de saia florida e cabelos penteados. As pessoas se abraçam e os olhares estão tão ternos quanto tristes – como se previssem a saudade daquilo que mal foi embora. Eles beijam a bandeira com a certeza de estarem protegidos pelo tempo que durar. E mesmo o mais descrente, nessa hora, se pega cantando: “E até para o ano, se nois vivo for”.