Hanna e os amigos | Foto: selfie de Hanna

Hanna Abreu mora na única rua asfaltada da Palitolândia, a Rua Apóstolo do Simão. Por conta desse detalhe urbanístico, a coleta de lixo feita por caminhões só chegava até o final da sua rua e dava meia volta. Bastava dobrar as esquinas que era possível ver o lixo empossado nas calçadas ou despejado no esgoto à céu aberto. Com exceção do asfalto, a sua casa tinha um problema comum a todas as outras: até 2004, ano em que Hanna nasceu, os moradores andavam quase três quilômetros até o poço mais próximo para ter água nas residências. Às vezes as viagens ao chafariz precisavam ser feitas duas vezes por dia. Esse não chegava a ser o maior dos problemas: sem saneamento, vez ou outra, se ouvia a notícia de crianças que haviam morrido desidratadas por conta de diarreias e infecções contraídas através da água. 

Em 2021, durante uma aula do ensino médio, Hanna viu uma chance de resolver o problema do lixo nas ruas em que cresceu. Foi quando uma equipe da Águas de Teresina anunciou a seleção do projeto Pioneiros, que escolhe alunos da rede pública de ensino, realizando uma capacitação de quatro meses em todos os setores da empresa (do marketing ao jurídico), até que eles estejam prontos para executar um projeto autoral. Cada estado que possui uma sede da Aegea (o nome vem de Egeo, no latim, aquele que avança em direção ao futuro), o grupo da empresa de saneamento, ficava responsável por treinar os jovens que iriam representar o estado numa disputa nacional. Foi o que aconteceu com Hanna que, aos 16 anos, acabou se tornando a vencedora da disputa final naquele ano, com o projeto “Mude os Hábitos, Mude o Mundo”. 

O projeto de Hanna envolvia engajar outros adolescentes e fazer limpezas das ruas onde o caminhão de lixo não ia. A ideia exigia dinheiro para comprar materiais de limpeza, sacolas plásticas e luvas necessários para o trabalho. “Além dos lanches para agradar os voluntários, claro”, brinca. Decidiu então bater de porta em porta da Palitolândia em busca de garrafas pet’s e papelões para trocar por dinheiro em recicladoras especializadas. Fez o que para muitos seria improvável: juntou quase 100 quilos de garrafas de plásticos e duas toneladas de papel. O montante que tomou a garagem improvisada da família fez com que ela realizasse o primeiro sonho de Hanna: limpar as ruas e esgotos da Palitolândia. Desde então o projeto acontece pelo menos uma vez por mês. 

Foto: Vitória Pilar

Vencedora da edição do Pioneiros em 2021, Hanna tornou-se menor aprendiz na Águas de Teresina. Ela acabou parando no setor que desenvolveu seu projeto, o de Responsabilidade Social. Por lá, trabalhava diretamente com lideranças comunitárias para obter licença social para que as máquinas da empresa operassem nos bairros. “Quando é aberta uma obra na comunidade, muita gente reclama do congestionamento na rua, o barulho, a movimentação. Dialogar com essas pessoas, por meio das lideranças, é essencial para garantir o entendimento e continuidade do trabalho”, explica a jovem. “É também onde a gente capta pessoas de baixa renda para obter a tarifa social, um benefício para obter desconto no tratamento de água e esgoto”. 

Após o período de menor aprendiz na empresa, Hanna decidiu continuar investindo em ações que aproximasse a população do saneamento básico. Uma delas consiste em garantir que, pessoas de baixa renda da região, tenham acesso à Tarifa Social, um benefício na conta de água para famílias com renda de até um salário mínimo e cadastradas em Programas Sociais do Governo Federal (CadÚnico). Para isso, Hanna também dá um jeito: sua casa, que é sede de descarte de material reciclável, também é ponto de encontro das famílias do bairro rastreadas por meio da busca ativa da concessionária de água da capital. Quem se encaixa nos critérios é orientado por Hanna a reunir a documentação comprobatória e auxiliado pela menina a seguir com o restante do processo para obter o benefício. A maior parte dos assistidos são mulheres, em sua maioria mães, de baixa ou nenhuma escolaridade. Atualmente, segundo a Águas de Teresina, existem mais de 17 mil famílias contempladas com o benefício. 

Na Palitolândia, ainda não há tarifa de esgotamento. O lugar, que é uma ocupação com pouco mais de oitocentas pessoas, nasceu ao lado da Vila Irmã Dulce, no extremo da zona Sul de Teresina, que já foi considerada uma das maiores favelas da América Latina. A Palitolândia leva o nome de Palito, um dos líderes comunitários que ajudaram na ocupação da comunidade, em 1998. O esgoto continua a céu aberto, mas diferente de cinco anos atrás, quando o lixo competia espaço nas calçadas. Depois do seu projeto, Hanna garante: a vista é outra, e as pessoas também. 

INOVAÇÃO E SANEAMENTO JUNTOS

O ano em que Hanna venceu a edição nacional do Pioneiros foi marcado pela pandemia. Por conta disso, não pode viajar até São Paulo, conhecer a sede da Aegea e viajar de avião – um dos seus outros sonhos. Essa realização aconteceu cerca de um ano depois, em uma viagem corporativa que fez durante o contrato de menor aprendiz. E voltou a se repetir em 2023, quando “Mude os Hábitos, Mude o Mundo” ganhou outra competição: uma vaga na final do ExpoFavela Innovation – feira nacional de negócios, empreendimentos e startups criados em periferias. Ela e outros dez negócios piauienses embarcaram para São Paulo para expor seus trabalhos na etapa nacional do evento. “Acabei realizando outros sonhos pelo caminho: andei de metrô, conheci o Ibirapuera (parque) e a Rua 25 de Março”, conta a jovem. “Se alguém falasse para aquela menina que limpava as ruas e esgotos da Palitolândia que as coisas que vivi estariam acontecendo, eu não acreditaria”. 

Um dos critérios inovadores para o projeto de Hanna ter chegado à maior feira de inovação da periferia do Brasil  foi considerado pelo júri como bioeconomia, que é quando uma ideia ou projeto usa recursos naturais para criar serviços ou produtos mais sustentáveis e mudar a realidade a sua volta. A história desse projeto tem uma particularidade comum a de projetos nascidos em outras comunidades: surgem para aplacar alguma carência das regiões em que vivem. No caso de Hanna, o lixo à céu aberto. 

Foto | Vitória Pilar

Quando se fala no surgimento de negócios e empreendimentos inovadores, quanto mais abastecimento de água, saneamento e esgotamento pode existir neste lugar, maior é o potencial de inovação, “Uma cidade com saneamento tem menos doentes, mais educação e mais qualidade de vida”, explica o gerente de Responsabilidade Social da Águas de Teresina, Gabriel Barbosa. “O mesmo acontece com o ecossistema de negócios, que por sua vez, podem ser inovadores. É o que ocorre também com o fenômeno da valorização imobiliária, onde cerca de 15% dos imóveis em regiões saneadas são mais valorizados que áreas onde ainda não há”, complementa. 

Gabriel explica que, hoje, talvez, ainda não seja possível cravar quanto seja necessário investir em saneamento básico para garantir que a inovação em negócios locais possa ser garantida. Por outro lado, é indiscutível a presença de saneamento e esgotamento sanitário para o desenvolvimento econômico de qualquer lugar. “Quando falamos de saneamento básico, estamos falando de uma melhoria abrangente na qualidade de vida, com negócios prosperando e uma predisposição para o desenvolvimento. À medida que as cidades se desenvolvem, o saneamento passa a ser mais prevalente e necessário.”, complementa o gerente de Responsabilidade Social da Águas de Teresina. “É dessa forma que sonhos como o de Hanna podem passar a ser cada vez mais reais na vida de outras pessoas”. 

QUANDO O ESGOTO É PRIVILÉGIO

Realidades na falta de acesso à rede de esgoto vividas na Palitolândia de Daniela, por exemplo, se repetem na vida de 35 milhões de brasileiros. Dados alarmantes, exposto no relatório final da equipe de transição do governo Lula (PT), alertaram para situações comprometedoras para as soluções destinadas a este setor nos próximos anos. Isso porque, durante o governo Bolsonaro, a gestão reduziu em 99,5% o orçamento para a área de saneamento em 2023. Esses números impactam o futuro: se antes estava previsto pelo Plano Nacional do Saneamento (PlanSab) atingir 90% de cobertura com rede de esgoto até 2033, a estimativa agora é que esse nível de cobertura só aconteça em 2057. Uma estimativa nada animadora, principalmente quando em 2021, o país chegou a despejar 1,1 bilhão de m³ de esgoto não tratado, equivalente a 220 Lagoa do Portinho, um dos principais pontos turísticos do litoral do Piauí.

Para aplacar os desafios de esgotamento sanitário de Teresina, a cidade hoje tem 25 estações de tratamento de esgoto e 67 estações elevatórias de esgoto. Essa estrutura viabiliza o tratamento de quase 40 milhões de litros por dia, chegando a quase 14,5 bilhões de litros por ano. Em outras palavras, são quase 5.825 piscinas olímpicas de esgoto tratado em doze meses. Um investimento, segundo a Águas de Teresina, que chega a R$300 milhões. 

Quando a concessionária chegou em Teresina, em 2017, somente 19% da cidade possuía cobertura de esgotamento. Em 2023, a ampliação desse serviço já chegava a 49%. E agora, até dezembro de 2024, a meta é que a cobertura chegue a 59%, principalmente nas zonas rurais e periféricas da cidade. 

Um dos grandes desafios para a ampliação de obras de esgotamento sanitário na cidade envolve as obras desse processo, que conta com abertura de valas e rasgação de ruas. Essas atividades costumam levar tempo, podem causar transtornos no cotidiano das comunidades, que por se sentirem incomodadas, acabam não compreendendo inicialmente o que pode ser feito. E aí entra o papel dos agentes sociais para comunicar que os benefícios a longo prazo são importantes para o desenvolvimento daquela rua ou bairro. “Esses agentes estão nas três fases de qualquer obra: no começo, durante e depois das obras”, explica o  gerente de Produção da Águas de Teresina, Alexandre Oliveira. “Quando tudo acaba, voltamos para comunicar o prazo de conexão do esgoto domiciliar  à rede de cobertura. É a junção de todos os pontos de esgoto da residência (banheiros, pias, ralos), até o terminal que fica na calçada. Para que tudo funcione, é importante que possam aderir à rede”, complementa. 

As metas citadas pelo gerente da Águas de Teresina, se aplicadas em todo o país, podem mudar a rota da saúde pública do Brasil, uma vez que, segundo o IBGE, a cada mil mortes no país, nove foram causadas por doenças relacionadas ao saneamento inadequado, como disinteria, leishmaniose, esquistossomose, diarreia, doença de Chagas, etc. Alexandre é ainda mais otimista com a chegada dos índices de esgotamento chegando próximo da universalização: “Não vai demorar para ver gente tomando banho no Rio Poti”, brinca, se referindo a um dos principais rios da cidade, que é alvo de despejo de esgotos clandestinos na cidade. 

SANEAMENTO É ASSUNTO DE MULHER

Quem passa de carro, moto, ou até mesmo à pé, pela Avenida Celso Pinheiro não imagina que a entrada da estrada de chão improvisada no meio da via leva a uma comunidade quase às margens do rio Poti. No coração da Zona Sul, a comunidade Terra Prometida é como uma cidade invisível. Por lá, vivem cerca de 80 famílias desde 2014. Somente dois anos depois, após uma longa batalha judicial para evitar os despejos motivados pelo empresariado local, tornou-se uma ocupação registrada. Uma pequena caminhada entre as casas revela uma evidência: Terra Prometida é uma terra feminina. Mulheres e seus filhos são os rostos mais comuns na porta das casas e que movimentam a vida da comunidade. Muitas criam seus filhos sem a presença masculina, aumentando a estatística de mães solos. Uma outra configuração de família também chama a atenção da líder comunitária da ocupação: há uma quantidade quase igual de casais heterossexuais e LGBT’s. “Muitos vieram após serem despejados pela família ao revelarem sua sexualidade. Encontraram aqui uma forma de viver longe do preconceito”, analisa Benta Freire. 

As crianças e animais, correndo pelas ruas sem calçamento, precisam desviar a todo instante das poças de água que vem das cozinhas e banheiros das residências. Nos primeiros meses do ano, essa água se mistura com a chuva e causa transtornos: “Vira um lamaçal”, exclama Benta. No começo da ocupação, muitos moradores faziam suas necessidades em banheiros improvisados por lonas, taipas e palha. Demorou cerca de cinco anos para que todos moradores tivessem condições de construir seus banheiros próprios. Infelizmente, os transtornos não pararam por aí. Os vasos sanitários são conectados à manilhas de concreto e instaladas no fundo dos quintais. Porém, a depender de onde a moradia está, se perto do rio, enchem com facilidade e precisam chamar empresas especializadas no desgotamento de fossas. 

A falta de banheiros dignos no Brasil, um dos problemas principais da falta de saneamento básico, atinge cerca de cinco milhões de brasileiros. A Trata Brasil revelou, em 2019, que desse número, mais de 50% eram mulheres que viviam no Norte e Nordeste do país, em moradias como as da Vila Prometida. Outro dado escancara ainda mais o problema: segundo um relatório das Nações Unidas, também são elas que executam o triplo de atividades domésticas e de cuidados comparado aos homens. Dessa forma, acabam tendo suas vidas e saúde comprometidas, uma vez que estão mais expostas e afetadas com doenças relacionadas à falta de saneamento, esgotamento e higiene. 

Quando o assunto é esgotamento, são as mulheres o grupo mais suscetível às vulnerabilidades causadas pela sua ausência. Entre 2016 e 2019, segundo a Trata Brasil, o número de mulheres que moram em casas sem coleta de esgoto saltou de 26,9 milhões para 41,4 milhões, enquanto a população feminina prejudicada pela falta de água tratada passou de 15,2 milhões para 15,8 milhões. Ainda no estudo foi revelado que, caso o acesso aos serviços de água e esgotamento sanitário fossem plenos, tirariam mais de 18 milhões de mulheres da condição de pobreza. 

Para o esgotamento sanitário chegar na Terra Prometida, as dezessete ruas que compõem a ocupação precisam ser asfaltadas. Desde o ano passado, a população tem contado com emendas parlamentares destinadas para sanar esse problema e avançarem para o esgotamento sanitário. Uma seria do deputado Franzé Silva (PT), e outra do vereador Draga Alana (PSD). A do deputado chegou a ser aprovada, e pelo tempo que tramita, já deveria ter chegado à ocupação. No entanto, uma burocracia emperrou na Prefeitura Municipal de Teresina: os documentos que liberam a execução da obra precisam passar pelo órgão municipal, e até agora, não foram assinados pela gestão. O caso foi parar no Ministério Público. Agora, com ou sem assinatura do prefeito Dr Pessoa (Republicanos), a obra deve ter início até maio de 2024. 

Enquanto o asfaltamento não chega, Benta assiste diariamente a falta de esgotamento deixando a Terra Prometida mais suja e lamacenta. E se preocupa com a chegada dos meses chuvosos no primeiro trimestre do ano. Desde que chegou ao lugar, ela não conhece outra realidade. Lembra que já foi bem pior, numa época em que as pessoas sequer tinham dinheiro para comprar suas fossas. Os dejetos se misturavam com o lixo, que se misturava com a água na rua, que impregnava um cheiro forte na rua por semanas. “Podemos dizer que agora a gente está no céu, mas ainda pode melhorar”, deseja Benta. “Sonho com o dia que a rua vai estar limpa e os carros não tenham mais medo de passar pelos buracos de água suja que ficam por aqui. Até lá, seguimos com as promessas”. 

****