Luana Sena

Amar e escrever à máquina

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Se eu quiser falar com Gil

 

Eu vi o Gil. Mas, talvez, pode ter sido deus. E, tal qual se espera diante daquilo que é infinito e eterno, paralisei. “Ele caminha meio tropeçando no seu próprio andar”, diria depois, tentando dar um verniz de verdade a um fato mais ou menos turvo. 

“Não seria alguém bem parecido?”, perguntaram. Não, não. Era o Gil. Eu vi com esses olhos que a terra não há de comer, porque vou doá-los. Vi com o espanto de quem se aproxima de tudo o que é sagrado: era o Gil. E a gente fica meio sem jeito, sem saber onde botar as próprias mãos, cara a cara com deus. Carregando a sua própria malinha de mão, além de toda a imensidão de ser sublime.

Mas bem que poderia ser deus. A gente não sabe como se comportar diante de um deus, afinal. Estava ali meio apressado, meio a seu tempo, com a cabeça de algodão, talvez cheirando a bumbum de bebê. A barba clara sobre a pele escura. Seguia rumo a bonsucesso? Eu não sei, mas era sim o Gil. Ali na minha frente, respirando o mesmo oxigênio, dividindo o mesmo tempo e espaço e sob a mesma atmosfera que eu.

Sim, agora tenho certeza. Era o Gil. Ou, talvez, uma entidade, uma força oculta, um preto velho a passear pra depois do ano dois mil. Era sim um pouco estranho que a voz no alto falante do aeroporto, com a sensação do brilho, não clamasse pela plena atenção de todos àquele fato. Que ninguém – nem mesmo eu, que vi o Gil – abrisse caminho com a cor-do-veludo, com amor, com tudo, para ele, ali, entre nós, meros mortais. Gente estúpida.

Pois é, eu vi o Gil. E foi até que nem tanto esotérico assim. Ele anda com fé, confiante no futuro. Foi sumindo pela escada rolante, num instante que, afinal, passou depressa como tudo tem de passar. De repente me encheu de paz. Era mesmo o Gil. Mas, talvez, pode ter sido deus. E, você sabe, a gente fica meio sem saber o que fazer diante de um deus.

(Arte de Aline Santiago)

A grande incerteza de tudo

Eu ainda me lembro quando a pessoa mais velha no rolê tinha perto de 20 anos. Passar da maior idade, para a maioria de nós, era sinônimo de muitas coisas como pegar o carro dos pais, pedir a própria breja no balcão sem julgamentos, ter finalmente barba no rosto e perder a cara de virgem como se a aparência mudasse magicamente com a simples virada de um número.

 

Entrar na segunda década de existência para mim era como acessar a terceira idade. Eu queria poucas coisas aos vinte e poucos anos, mas eu as queria muito. Sair de casa, trabalhar com algo divertido, ter algum tipo de liberdade e quem sabe algum dinheiro. Eu invejava coleção de discos, casas com ladrilho hidráulico, pessoas que tocavam gaita e gente que andava de salto com desenvoltura.

Tudo era sólido aos vinte e poucos. O apartamento alugado, a carteira de trabalho assinada, a rotina com horário de almoço, um amor abissal em banho brando. Eu odiava gatos, usava sapatilha, tomava suco pronto de caixinha e sabia que ia ter copa e ia ter golpe – porque eu sabia de muitas coisas e sempre com muita convicção.

Não existia nada fluido, nada, nada líquido além da champanhe que espumava no meu copo na virada de 2014 para 2015. Dali a cinco anos eu faria 30 mas isso era algo tão fora de minhas preocupações e mini certezas que nem me lembro de efetivamente projetar o que ou quem eu gostaria de ser, mas, desconfio agora que qualquer tentativa de fazê-lo jamais teria sequer esboçado o script do que sucedeu.

Passei esse 2020 todo (faltam 3 menstruações pro ano acabar) repetindo para mim mesma e também em forma de piada velha de twitter que não o incluiria na contagem dos meus anos nessa existência. Aparentemente o único consenso possível na atualidade é que o bug do milênio chegou aí com uns 20 anos de atraso e tudo bem, a gente até compreenderia, não fosse os danos causados parecerem propositalmente acumulados para despencarem todos, de uma vez, em nossas cabeças.

“Em dezembro vou trintar de novo”, repeti para mim em forma de deboche e convicção o ano inteiro. Que ironia pretender retardar o tempo quando tudo que a gente quer, no momento, é que isso tudo passe – não havendo outro jeito de passar se não perdendo esse pouco de vida e vendo o efeito do oxigênio e da gravidade agir sobre nosso corpo.

Aos 26 anos Caetano já tinha tretado com a censura e estava preso na cela de uma cadeia. Leopoldina aos 25 assinava o documento de independência brasileira, deixando para o marido o papel de dar um grito patético e virar meme quase dois séculos depois. Maria das Graças despontava com “Meu nome é Gal” aos 24, da Bahia para os palcos e Maisa (não a cantora, a do Silvio Santos), se assim quisesse, poderia ter se aposentado antes dos 15.

Eu, vou por aqui, fazendo conta de miçanga, desistindo hoje daquilo que comecei ontem, comprando os primeiros cremes anti-idade, doida pra usar o cabelo a la Debora Diniz e mais certa do que nunca de que toda, toda certeza mesmo, só serve para duvidar.

Aquele abraço

Há pouco mais de 15 dias, boa parte das pessoas de quem vale a pena se dizer amigo hoje completou cem dias de solidão. 100 fucking dias confinado. Se lembra quando a gente chegou um dia a acreditar que a quarentena seria quarenta dias? Logo depois começamos a trabalhar com a ideia de que, bom, talvez durasse até o fim do semestre – mas o semestre parecia algo ainda muito longe também de acabar. E fomos todos aprendendo a repetir que, tudo bem, “isso tudo vai passar” – sem se tocar, talvez, que, o que vai passando enquanto a gente espera tudo isso passar é também um pouco de vida.

Você não tá quarentenando bem se ainda não pintou uma parede, tentou fazer pão ou cortar o próprio cabelo. Acreditou que teria audiência se, why not?, começasse a usar o IG TV – os casos mais críticos se atreveram a baixar o oriental TikTok. Virou o louco do skincare, achou uma caixa de fotografias, intitulou-se mãe de planta, tentou vestir o pet, pediu um delivery totalmente dispensável na madrugada e depois ficou se remoendo de remorso porque, afinal, morte ao capitalismo e a exploração da mão de obra precarizada – fica tranquilo, amanhã acontece o #ApoioBrequeDosAPPs e você pode postar isso nas suas redes e ser absolvido de sua tão grande culpa. Será o seu canudinho no oceano, fica só aqui entre nós.

Fomos lançados a um confinamento compulsório. É tipo um BBB, mas sem prêmio, sem liderança e sem desejo algum de sair lá fora porque, tal como o leão do Roberto Carlos, o corona está solto nas ruas. Quem, durante este confinamento, obrigado a sair para serviços essenciais não sentiu um misto de pânico e prazer, que atire a primeira pedra. Não negue que no fundo, bem no fundo, ali depois do calafrio e da sensação de quase morte ao ter que topar com pessoas amontoadas na fila da padaria ou batendo um pão de queijo com as mãos dentro do supermercado, sentiu uma mini felicidade por estar de volta a uma cena cotidiana da qual um dia fizemos parte. O drama é que meio segundo depois dessa sensação, o prazer dá lugar a certo desespero – estou me arriscando no meio de uma pandemia por um pedaço de queijo fresco, é isto mesmo, Brasil? – e a luz da razão que geralmente gira em meia fase se acende e você quer correr, chorar, gritar, sei lá, dar três tabefes em um bolsominion. A frustração invade todo o ambiente.

A geração da conexão tornou-se também a única capaz de promover o descontato humano. Você consegue lembrar a última vez que deu aquele abraço?

Estamos – nós, os privilegiados – isolados, confinados, hiperconectados. Será? No 4º mês somente cedi as lives – não sei ainda se gosto, mas tal qual Caetano já aprendi a mandar corações e me sinto “vivo, muito vivo”. O que não quer dizer, no entanto, que não sejam tristes, muito embora se pretendam alegres. Especialistas pipocam em telas o tempo todo e de repente a angústia do não saber se estamos aproveitando tudo se transfere do real pro virtual – se é que se pode dizer que havia, ainda, ao menos uma só pilastra de sustenção nessa pretensiosa divisão. Outro dia perdi a live muito interessante de um amigo porque estava eu mesma presa em minha própria live. Segmentados, juntos, distantes, próximos e separados. Excesso também pode ser escassez.

Talvez você esteja preso com pessoas que escolheria levar pra Lua se possível fosse se mudar pra lá. Talvez esteja a um passo de jogar sua companhia pela janela porque ela nem de longe seria alguém com quem você escolheria passar o resto da vida trancado. Talvez sozinho esteja lidando tão bem com a solidão – que não significa estar solitário: cedeu aos encontros online, as festas no zoom, as videochamadas (você lembra que isso um dia foi um recurso que a gente abominou?) – que nem se deu conta de que houve um tempo em que considerávamos importante e defendíamos a coisa do contato humano. Paradoxalmente, a geração da conexão tornou-se também a única capaz de promover o descontato humano. Você consegue se lembrar a última vez que deu aquele abraço? Desculpa ser eu aqui, do nada, te trazendo essa verdade, viu. A live do Gil me destruiu.

 

 

Um texto pro centro

O centro tem, ele todo, um charme especial. Ele está para a cidade como os velhinhos estão para a praça. O tempo corre sem pressa, ignora o novo, constrange o modernoso. Entra o concreto, passa um novo asfalto, mas ninguém consegue tocar no ar – as ruas tem o mesmo cheiro que eu sentia ao voltar da escola, subindo a Paissandu até a casa de vovó, uma portinha com janela a sombra da bela figueira. A rua de minha avó era para mim o nosso mundo.

A um quarteirão comprávamos leite na casa do seu Almeida, esquina da Rua Olavo Bilac – que eu nem sabia ser o poeta que ouvia estrelas. Aquela altura as únicas estrelas que eu via eram as que brilhavam pelas brechas do telhado à noite e, sim – às vezes eu conversava mesmo com elas.

Na Magalhães Filho a gente sentava no chão da calçada, brincando de tomar como nossos os carros que apontando lá em cima, virando na nossa rua-mundo. Ora você podia ser um fusca, ora ganhava um opala, numa disputa tão cruel quanto animada dentro da imaginação. Nosso prestígio de criança, bem como nosso destino, jogado assim, a própria sorte.

Foi nesta mesma calçada que meu pai fingiu lançar minha chupeta ao longe sem que ela nunca tivesse saído da sua mão. Eu, tola, acreditei, mas não chorei porque chorar era coisa de criança e não combinava com a adulta que eu me tornara ali, pelos 3 anos, ao tomar uma importante decisão – mal sabia que adultos são represas de lágrimas frequentemente tomando estúpidas decisões.

Íamos na quitanda do seu Luís, explorávamos as casas com quintais enormes numa espécie de curadoria de propriedade para ser feliz – alguns tinham balanço, outros merenda – aliás, foi num desses territórios que elaboramos um sofisticado plano de assalto a delicatesse da Rua São Pedro. Fomos bem sucedidos, não fosse o fato de sermos todos traídos por nossos próprios pais, pífios pagadores de dívidas. Comprar não tinha a menor graça se a moeda vigente não era de chocolate.

 

O centro tem a mesma cor e o mesmo cheiro que pelejo para não esquecer enquanto caminho pelas ruas hoje, apertando os olhos, no esforço de lembrar. Cada árvore a menos, cada muro indo ao chão, é um quadro arrancado a força da parede de memórias do meu coração.

Na Félix Pacheco, 1511, quase esquina com a 24 de Janeiro, passam carros, passam ônibus e eu também vou passando vendo a casa me vê passar. Dali, meu avô via meu pai, meu pai avistou minha mãe, e agora a casa toda parece uma pessoa a me observar. Seus janelões, imponentes, magistrais, parecem dois olhos a me espiar. A porta entreaberta faz as vezes de boca que eu quase consigo ouvir cochichar: “Ela quis explorar o mundo, ser global”, ri de mim: “Mas a verdade é que nunca saiu de seu quintal”.

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Não perde por esperar

para ler ouvindo

Não faz tanto tempo assim o Piauí foi excluído do mapa por uma publicação editada no Paraná. 251.529 quilômetros quadrados de área simplesmente extintos por um livro de geografia. O Piauí, e o Nordeste como um todo, é Bacurau.

 

O filme de Kleber Mendonça Filho e Juliano Dornelles – premiado em Cannes, Munique e Lima e visto por 20 mil brasileiros só na pré-estreia – vai te fazer sair do cinema tudo, menos do mesmo jeito. Para mim, que gosto muito de Aquarius mas acho O Som ao redor só ok, é o filme mais maduro do diretor pernambucano até aqui.

Na trama, Bacurau é um vilarejo perdido a oeste de Pernambuco, concentrador de todos os problemas que assolam o sertão: escassez de água, falta de assistência médica, descaso dos governantes, hibridização da cultura e a chegada das ferramentas de comunicação, também. Não estamos – nós, nordestinos – tão tecnicamente desconectados do mundo o quanto se ousa julgar.

Naquele lugar, onde quase nada chega e onde quase tudo falta (as cenas do prefeito Tony Júnior poderiam ser cômicas se não fossem tão dolorosamente reais), a comunidade encontrou um jeito de se auto organizar: quem faz as vezes de Estado são alguns dos moradores cujos poderes foram conquistados seja pelo respeito à idade, ao conhecimento, à intransigência ou mesmo ao uso da força.

São eles: o sábio professor Plínio – que numa das cenas mais bonitas tenta ensinar geografia a crianças com autoestima sabotada pela inexistência de Bacurau no mapa -, o veterano Damiano, um tipo curandeiro que concentra a sabedoria ancestral da aldeia; Acácio/Pacote, o ex-bandido redimido; Lunga, espécie de cangaceiro trans, o filho pródigo ou líder do morro; e a controversa médica Domingas, perfeitamente vivida por Sônia Braga.

 

Num primeiro momento, ao misturar disco voador e sertanejo, o enredo pode até parecer sem sentido – somos levados a crer que o foco está na personagem Teresa, chegando a Bacurau para o enterro da avó. Mas leva pouco tempo para entender que o personagem principal de Bacurau não é apenas um: é a comunidade, é o comum.

Já nos primeiros minutos de projeção, a cena da mala vermelha – que Teresa arrasta por uma estrada de terra até chegar em casa – é a que melhor descreve essa personagem “comum”: de mão em mão, a mala é conduzida pelos moradores de Bacurau até chegar ao quarto, num trabalho sincronizado e coletivo que resume com precisão o espírito daquela comunidade.

Mortes estranhas e brutais começam a atormentar a pacata Bacurau, num misto de faroeste hollywoodiano com cinema novo – Kill Bill fica no chinelo perto do iminente extermínio proposto pela distopia de Kleber Mendonça. Enquanto cabeças rolam sem nenhum resquício de piedade, os moradores desencanam de tentar descobrir quem é, afinal, o seu algoz, e partem para uma surpreendente estratégia de guerrilha.

Mesmo com toda a tecnologia da informação disponível, os gringos exterminadores (que aqui podem ser interpretados como o Estado, os políticos, a polícia e, se voltarmos um pouco mais na história, os próprios colonizadores do Brasil) não contavam com a força da união e, é claro, do “poderoso psicotrópico” que, ao invés de paliativo para transtornos contemporâneos como ansiedade e solidão, serve como pílula de coragem para aquela região.

Fica todo mundo doidão, com a droguinha do seu Damiano – convencidos de que excluídos de seus direitos estão também isentos de suas obrigações. Não faz nenhum sentido um dilema moral aqui – não há o básico sendo ofertado àquela comunidade, e não estou falando de água.

Os moradores de Bacurau são desprezados e subestimados – destaque para a resposta pontual que o guri dá ao menosprezo disfarçado de interesse da “turista”: “quem nasce em Bacurau é o quê?” – “é gente, ué” – Os princípios éticos não são cobrados dos matadores forasteiros que, aliás, não perdem a chance de eliminar os discordantes – é um casal de motoqueiros não-estrangeiros, mas podia ser a classe média brasileira sem a menor consciência de classe – e, na tentativa ridícula de igualar-se, atentam contra o seu próprio povo. Se não é a melhor cena, a reunião da dupla brasileira com a equipe gringa traz, sem dúvida, um dos melhores diálogos.

 

É curioso aqui no sudeste, durante as cenas de combate, perceber a sala de cinema torcendo pela vitória e resistência dos moradores de Bacurau. Ora, Bacurau é a Batalha do Jenipapo do – um dia também esquecido – Piauí, os jovens da periferia, o estudante que você quer ver fora da universidade, a bicha que te causa repulsa, os indígenas, os negros, as mulheres e os “paraíba”. De repente, explanada numa lógica mocinhos X vilões, lhe parece uma batalha cruel?

Numa guerra com condições tão desleais e injustas, a luta pela sobrevivência não pode ser vista como barbárie – a opção contrária a isso é morrer, não sei se ficou claro. O Nordeste pode ser sedutor como Domingas oferecendo guisado com suco de caju a Michel – mas não se engane: no minuto seguinte estamos a postos com nosso jaleco, vermelho de sangue, prontíssimos pra lutar. É Lampião que não nos deixa arregar.