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Amar e escrever à máquina

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Quem não se arrisca não pode berrar

“Leve um homem e um boi ao matadouro.
O que berrar mais na hora do perigo é o homem, nem que seja o boi”.

(Torquato Neto)

Duas pré-estreias marcaram a reabertura do Museu da Imagem e do Som de Teresina no último sábado. Dois curtas, duas mulheres cineastas, duas sessões repletas de gente e um mesmo universo cênico: a tradição piauiense do bumba-meu-boi. 

Milena Rocha (de quem já vi o lindo “Álbum de Família – carta 1”, de 2021) segue no gênero documentário, desta vez desbravando dois elementos tão característicos do Nordeste: a cultura e a religião. “Boi Romeiro” acompanha o mestre de boi Juninho e sua família em busca de pagar uma promessa feita por seu pai: levar o Boi Mimo de Santa Cruz de volta a sua casa, a cidade de Santa Cruz dos Milagres. 

 

Famosa por seu turismo religioso, a cidade piauiense é palco de romarias e procissões ao Santuário de Santa Cruz. Promessas, ex-votos e relatos de milagres levam fiéis a formarem a terceira maior romaria do Nordeste. Santa Cruz é também a terra da família de Milena, talvez por isso sua câmera se sente tão à vontade ao acompanhar Juninho e sua peregrinação.

O filme é feliz em captar o sentimento de comunidade e pertencimento dos brincantes, inclusive jovens e crianças, futuros responsáveis por manter acesa a chama da tradição. É também curioso ver o cruzamento dos símbolos folclóricos do bumba-meu-boi com o universo do catolicismo – por anos, em algumas regiões, a festa do boi foi proibida por ser uma manifestação de negros e indígenas. 

O boi tem simbolismos diversos do lado de cá do país. A relação do homem com a natureza, superstição e crenças sertanejas, resiliência e esperança. Tudo isso pode ter estado no radar de Tássia Araújo, cineasta e artista visual, quando lá em 2012 idealizou o roteiro do que viraria sua primeira produção em ficção, o curta “Boi de salto”. Antes, em 2023, ela estreou seu longa documental “Comigo Num se Pode”.

O enredo popular inspira o roteiro: para satisfazer o desejo da grávida Catarina, pai Francisco mata o boi mais bonito da fazenda onde trabalha para extrair a língua, devorada com prazer pela mulher. Ao constatar a ausência do animal, o dono da fazenda sai em busca do casal, que foge para Teresina. 

 

O filme traz ótimas atuações, como a do pernambucano Pedro Wagner (o traidor Pente Fino de Guerreiros do Sol, exclusivo Globoplay) e do estreante Mikael Costa, no papel de Abdias – na verdade, o filme é mais sobre ele e seu desejo de dançar de salto alto no grupo mais tradicional de bumba-meu-boi da cidade. Mikael é bailarino e nunca tinha atuado, revelando uma excelente preparação de elenco da equipe de Tássia. A direção de fotografia é de Maria Navarro (DAFB)

Real ou fictício, os personagens dos dois filmes encontram-se no desejo do impossível, nos sonhos nada convencionais, na reinvenção de si, no risco, nos corpos dissidentes, na busca por liberdade (de uma promessa? de uma regra?), na força de uma tradição – ainda que no caso de Abdias, ele mesmo tenha tido que inventar a sua, ao seu passo e no seu tempo. Porque do boi, tudo se aproveita: até o berro. 

 

*O curta “Boi Romeiro” teve, antes do MIS, uma exibição especial na sede da Associação Boi Mimo de Santa Cruz. O filme “Boi de salto” deve seguir para exibições em festivais pelo Brasil. Ambos ainda não têm data para exibições em Teresina. 

Museu, memória e esquecimento

O novo Museu da Imagem e do Som de Teresina foi (re)inaugurado no último sábado, 16 de agosto. Pegando a deixa do aniversário da cidade, um dia inteiro de programação foi pensado no espaço, incluindo oficinas, masterclass, exibições de filmes e noite cultural. Foi bonito ver o empenho da equipe do Núcleo Criativo Chagas Junior, trabalhando voluntariamente para que o MIS finalmente abrisse suas portas à população. Sem eles, o prédio que demorou mais de uma década para ficar pronto, permaneceria um elefante branco no meio do centro da cidade.

Para quem não lembra, a inauguração “oficial” do MIS aconteceu meio de qualquer jeito às vésperas do Natal do ano passado (2024). Foi um evento apagado, com meia dúzia de gente e pouca repercussão na imprensa. De lá para cá, no entanto, o prédio permaneceu fechado à visitação. A Fundação Municipal Monsenhor Chaves, responsável por sua gestão, alegava estar à espera de equipamentos e contratação de pessoal. A organização do novo espaço acabou ficando a cargo da nova gestão municipal que assumiria após a virada do ano.

Nada aconteceu. O prédio centenário, construído em 1920, e cuja obra de reforma custou cerca de oito milhões de reais, mal tinha sido inaugurado e já estava parado e se deteriorando – quem passava na rua, além de dar com a cara na porta, também podia ver pintura descascada e infiltrações no teto do rooftop. 

O Núcleo Chagas Junior, formado por realizadores do audiovisual no Piauí, mobilizou-se para ocupar o lugar e proporcionou uma programação diversa. A sociedade civil fazendo funcionar um aparelho cultural público, no aniversário da cidade, que não teve nenhuma celebração organizada pela prefeitura, alegando crise financeira.

O espaço conta com quatro andares, sendo um deles ocupado pela exposição permanente sobre o poeta Torquato Neto. Aliás, o museu leva o nome dele, a despeito das promessas feitas ao Coletivo Salve Rainha, que entre 2015 e 2016 ocupou espaços públicos chamando atenção para o descaso e abandono. Um requerimento para que o MIS levasse o nome de Francisco das Chagas Junior, líder do movimento morto drasticamente em um acidente de trânsito, chegou a ser aprovado na Câmara Municipal, fato que não aconteceu.

A exposição de Torquato é de posse da FMC por dez anos e custou mais de 1 milhão de reais. A exposição, aliás, não condiz em nada com o que se espera de um Museu da Imagem e do Som. Em todo o país, os MIS são espaços de preservação de produções audiovisuais e sonoras, e podem ter exposições imersivas, com foco especialmente nestas linguagens.

A exposição “Vida e obra de Torquato Neto” traz apenas prints, fotografias e cartas enquadradas, livros dispostos em mesas, aparentemente sem nenhuma curadoria. Torquato foi um artista tão múltiplo, tão versátil, expressou-se em tantas linguagens que a exposição parece pobre diante de uma obra que, apesar de curta, é densa e diversa. Não há uma TV, uma projeção, nada em audiovisual, mesmo Torquato sendo um dos grandes nomes brasileiros do cinema marginal. 

Coletivo Salve Rainha em ocupação no antigo prédio da Câmara Municipal, hoje, MIS.

Verdade seja dita, sem muito apoio governamental, o coletivo Salve Rainha conseguia fazer instalações mais interessantes, com diversidade artística e curadoria, levando o povo a acessar estes espaços. Não há no prédio nem uma sala, nem uma menção, nada referenciando a história e o legado dessa galera que marcou a efervescência cultural no centro num período de total escassez.

E, para não dizerem que eu só reclamo, a programação de estreia do Cineclube foi excelente. A “Noite das boiadas” teve duas sessões lotadas dos filmes “Boi de Salto” (Tássia Araújo, 2025) e “Boi Romeiro” (Milena Rocha, 2025), dois curtas dirigidos por mulheres e sobre temas tão pertencentes a cultura nordestina, nossas crenças e tradições. Foi lindo de ver. E sobre os filmes escrevo mais aqui

***

Atualizada em 19 de agosto, às 18h13

Em nota enviada para Revestrés, a equipe do MIS esclarece que as ações no local resultaram de uma parceria do Núcleo Criativo Chagas Jr e da FMC, órgão responsável pelo prédio. Também afirma que a prefeitura teve uma programação cultural no dia 16 de agosto em diversos pontos da cidade.

Se eu quiser falar com Gil

 

Eu vi o Gil. Mas, talvez, pode ter sido deus. E, tal qual se espera diante daquilo que é infinito e eterno, paralisei. “Ele caminha meio tropeçando no seu próprio andar”, diria depois, tentando dar um verniz de verdade a um fato mais ou menos turvo. 

“Não seria alguém bem parecido?”, perguntaram. Não, não. Era o Gil. Eu vi com esses olhos que a terra não há de comer, porque vou doá-los. Vi com o espanto de quem se aproxima de tudo o que é sagrado: era o Gil. E a gente fica meio sem jeito, sem saber onde botar as próprias mãos, cara a cara com deus. Carregando a sua própria malinha de mão, além de toda a imensidão de ser sublime.

Mas bem que poderia ser deus. A gente não sabe como se comportar diante de um deus, afinal. Estava ali meio apressado, meio a seu tempo, com a cabeça de algodão, talvez cheirando a bumbum de bebê. A barba clara sobre a pele escura. Seguia rumo a bonsucesso? Eu não sei, mas era sim o Gil. Ali na minha frente, respirando o mesmo oxigênio, dividindo o mesmo tempo e espaço e sob a mesma atmosfera que eu.

Sim, agora tenho certeza. Era o Gil. Ou, talvez, uma entidade, uma força oculta, um preto velho a passear pra depois do ano dois mil. Era sim um pouco estranho que a voz no alto falante do aeroporto, com a sensação do brilho, não clamasse pela plena atenção de todos àquele fato. Que ninguém – nem mesmo eu, que vi o Gil – abrisse caminho com a cor-do-veludo, com amor, com tudo, para ele, ali, entre nós, meros mortais. Gente estúpida.

Pois é, eu vi o Gil. E foi até que nem tanto esotérico assim. Ele anda com fé, confiante no futuro. Foi sumindo pela escada rolante, num instante que, afinal, passou depressa como tudo tem de passar. De repente me encheu de paz. Era mesmo o Gil. Mas, talvez, pode ter sido deus. E, você sabe, a gente fica meio sem saber o que fazer diante de um deus.

(Arte de Aline Santiago)

A grande incerteza de tudo

Eu ainda me lembro quando a pessoa mais velha no rolê tinha perto de 20 anos. Passar da maior idade, para a maioria de nós, era sinônimo de muitas coisas como pegar o carro dos pais, pedir a própria breja no balcão sem julgamentos, ter finalmente barba no rosto e perder a cara de virgem como se a aparência mudasse magicamente com a simples virada de um número.

 

Entrar na segunda década de existência para mim era como acessar a terceira idade. Eu queria poucas coisas aos vinte e poucos anos, mas eu as queria muito. Sair de casa, trabalhar com algo divertido, ter algum tipo de liberdade e quem sabe algum dinheiro. Eu invejava coleção de discos, casas com ladrilho hidráulico, pessoas que tocavam gaita e gente que andava de salto com desenvoltura.

Tudo era sólido aos vinte e poucos. O apartamento alugado, a carteira de trabalho assinada, a rotina com horário de almoço, um amor abissal em banho brando. Eu odiava gatos, usava sapatilha, tomava suco pronto de caixinha e sabia que ia ter copa e ia ter golpe – porque eu sabia de muitas coisas e sempre com muita convicção.

Não existia nada fluido, nada, nada líquido além da champanhe que espumava no meu copo na virada de 2014 para 2015. Dali a cinco anos eu faria 30 mas isso era algo tão fora de minhas preocupações e mini certezas que nem me lembro de efetivamente projetar o que ou quem eu gostaria de ser, mas, desconfio agora que qualquer tentativa de fazê-lo jamais teria sequer esboçado o script do que sucedeu.

Passei esse 2020 todo (faltam 3 menstruações pro ano acabar) repetindo para mim mesma e também em forma de piada velha de twitter que não o incluiria na contagem dos meus anos nessa existência. Aparentemente o único consenso possível na atualidade é que o bug do milênio chegou aí com uns 20 anos de atraso e tudo bem, a gente até compreenderia, não fosse os danos causados parecerem propositalmente acumulados para despencarem todos, de uma vez, em nossas cabeças.

“Em dezembro vou trintar de novo”, repeti para mim em forma de deboche e convicção o ano inteiro. Que ironia pretender retardar o tempo quando tudo que a gente quer, no momento, é que isso tudo passe – não havendo outro jeito de passar se não perdendo esse pouco de vida e vendo o efeito do oxigênio e da gravidade agir sobre nosso corpo.

Aos 26 anos Caetano já tinha tretado com a censura e estava preso na cela de uma cadeia. Leopoldina aos 25 assinava o documento de independência brasileira, deixando para o marido o papel de dar um grito patético e virar meme quase dois séculos depois. Maria das Graças despontava com “Meu nome é Gal” aos 24, da Bahia para os palcos e Maisa (não a cantora, a do Silvio Santos), se assim quisesse, poderia ter se aposentado antes dos 15.

Eu, vou por aqui, fazendo conta de miçanga, desistindo hoje daquilo que comecei ontem, comprando os primeiros cremes anti-idade, doida pra usar o cabelo a la Debora Diniz e mais certa do que nunca de que toda, toda certeza mesmo, só serve para duvidar.

Aquele abraço

Há pouco mais de 15 dias, boa parte das pessoas de quem vale a pena se dizer amigo hoje completou cem dias de solidão. 100 fucking dias confinado. Se lembra quando a gente chegou um dia a acreditar que a quarentena seria quarenta dias? Logo depois começamos a trabalhar com a ideia de que, bom, talvez durasse até o fim do semestre – mas o semestre parecia algo ainda muito longe também de acabar. E fomos todos aprendendo a repetir que, tudo bem, “isso tudo vai passar” – sem se tocar, talvez, que, o que vai passando enquanto a gente espera tudo isso passar é também um pouco de vida.

Você não tá quarentenando bem se ainda não pintou uma parede, tentou fazer pão ou cortar o próprio cabelo. Acreditou que teria audiência se, why not?, começasse a usar o IG TV – os casos mais críticos se atreveram a baixar o oriental TikTok. Virou o louco do skincare, achou uma caixa de fotografias, intitulou-se mãe de planta, tentou vestir o pet, pediu um delivery totalmente dispensável na madrugada e depois ficou se remoendo de remorso porque, afinal, morte ao capitalismo e a exploração da mão de obra precarizada – fica tranquilo, amanhã acontece o #ApoioBrequeDosAPPs e você pode postar isso nas suas redes e ser absolvido de sua tão grande culpa. Será o seu canudinho no oceano, fica só aqui entre nós.

Fomos lançados a um confinamento compulsório. É tipo um BBB, mas sem prêmio, sem liderança e sem desejo algum de sair lá fora porque, tal como o leão do Roberto Carlos, o corona está solto nas ruas. Quem, durante este confinamento, obrigado a sair para serviços essenciais não sentiu um misto de pânico e prazer, que atire a primeira pedra. Não negue que no fundo, bem no fundo, ali depois do calafrio e da sensação de quase morte ao ter que topar com pessoas amontoadas na fila da padaria ou batendo um pão de queijo com as mãos dentro do supermercado, sentiu uma mini felicidade por estar de volta a uma cena cotidiana da qual um dia fizemos parte. O drama é que meio segundo depois dessa sensação, o prazer dá lugar a certo desespero – estou me arriscando no meio de uma pandemia por um pedaço de queijo fresco, é isto mesmo, Brasil? – e a luz da razão que geralmente gira em meia fase se acende e você quer correr, chorar, gritar, sei lá, dar três tabefes em um bolsominion. A frustração invade todo o ambiente.

A geração da conexão tornou-se também a única capaz de promover o descontato humano. Você consegue lembrar a última vez que deu aquele abraço?

Estamos – nós, os privilegiados – isolados, confinados, hiperconectados. Será? No 4º mês somente cedi as lives – não sei ainda se gosto, mas tal qual Caetano já aprendi a mandar corações e me sinto “vivo, muito vivo”. O que não quer dizer, no entanto, que não sejam tristes, muito embora se pretendam alegres. Especialistas pipocam em telas o tempo todo e de repente a angústia do não saber se estamos aproveitando tudo se transfere do real pro virtual – se é que se pode dizer que havia, ainda, ao menos uma só pilastra de sustenção nessa pretensiosa divisão. Outro dia perdi a live muito interessante de um amigo porque estava eu mesma presa em minha própria live. Segmentados, juntos, distantes, próximos e separados. Excesso também pode ser escassez.

Talvez você esteja preso com pessoas que escolheria levar pra Lua se possível fosse se mudar pra lá. Talvez esteja a um passo de jogar sua companhia pela janela porque ela nem de longe seria alguém com quem você escolheria passar o resto da vida trancado. Talvez sozinho esteja lidando tão bem com a solidão – que não significa estar solitário: cedeu aos encontros online, as festas no zoom, as videochamadas (você lembra que isso um dia foi um recurso que a gente abominou?) – que nem se deu conta de que houve um tempo em que considerávamos importante e defendíamos a coisa do contato humano. Paradoxalmente, a geração da conexão tornou-se também a única capaz de promover o descontato humano. Você consegue se lembrar a última vez que deu aquele abraço? Desculpa ser eu aqui, do nada, te trazendo essa verdade, viu. A live do Gil me destruiu.