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Vida e Sonho: Metáforas

Por André Henrique M. V. de Oliveira

 

Por mais absurdo, inacreditável ou mesmo óbvio que possa parecer, muitas das teorias filosóficas surgidas, por milagre ou maldição, na cabeça dos mais insignes pensadores que povoam a história da filosofia são posteriormente confirmadas pela, sempre confiante, ciência. Um exemplo dessas teorias pode ser identificado na historiografia filosófica sob o nome de idealismo, notadamente atribuído em sua origem a pensadores alemães.

Se compreendida de forma superficial, a afirmação de que o mundo é uma criação da mente de cada indivíduo pode parecer apenas um delírio, mania de grandeza ou atestado de necessidade de tratamento psiquiátrico. Mas, se contarmos até sete, veremos que realmente faz sentido dizer que “o mundo é minha representação”.

Não é perigoso afirmar que o chamado idealismo alemão encontra no filósofo Imannuel Kant suas raízes mais fortes. Em sua monumental Crítica da razão pura o pensador demonstra que, apesar de podermos dizer que o mundo existe independente da forma como nós o percebemos, somos completamente incapazes de conhecer um tal mundo; toda realidade que nos é acessível consiste apenas naquilo que é captável por nossos órgãos sensoriais, conjuntamente com o nosso cérebro.

Na verdade, Kant não chega a ser tão cru(el). O que ele diz é que possuímos formas puras para a sensibilidade (o espaço e o tempo) que nos permitem perceber os objetos do mundo; e formas puras do entendimento (unidade, pluralidade, necessidade, causalidade, etc.) que nos permitem conceituar tudo que compõe o mundo. Um grande admirador de Kant, Arthur Schopenhauer, é que algum tempo depois teve a sacada de dizer: todas essas formas puras são tão somente funções cerebrais. Nada mais.

Pois bem. A fisiologia dos órgãos dos sentidos confirma que não temos acesso à realidade de maneira pura e direta. O que percebemos e nomeamos como “mundo” ou “objetos” no mundo, é construção do nosso cérebro. “A fisiologia dos órgãos dos sentidos”, escreveu Albert Lange ainda no século XIX, “é o kantismo desenvolvido ou retificado”. De modo geral, o aspecto da realidade ao qual não podemos ter acesso é chamado pelos idealistas de “coisa em si”. Já a parcela da realidade construída segundo nossa atividade cerebral é chamada de “fenômeno”, ou “aparência” (Erscheinung, em alemão). Mas, agora deixem-me contar um sonho que tive.

Eu estava dirigindo. De repente notei que o freio não estava funcionando. O carro descia uma ladeira em alta velocidade e eu me vi numa situação em que nada podia fazer para impedir o acidente. Perdi completamente o controle do automóvel, que no fim da ladeira atingiu a grade de proteção de uma ponte. A colisão foi forte a ponto de romper a grade de proteção e o carro caiu no rio. Fiquei preso enquanto a água invidia o carro. Completamente imerso e sem qualquer chance de escapar, apenas me debatia vagarosamente, tendo sido dominado pela água. Era meu fim. Acontece que quando morri……acordei.

Já desperto, fiquei encabulado com isso: no sonho eu não consegui experienciar minha morte. Na vida, digamos, “real”, também não conseguimos experienciá-la. Não há como conceber uma experiência da morte, pois isso implicaria ter consciência, e se temos consciência não podemos estar mortos. Quando morri no sonho, acordei na vida. Fiquei me perguntando: quando morrer na vida, acordarei também? Claro que não quero saber a resposta…

A morte, assim como a “coisa em si”, é o inacessível, o não-experienciável; é aquilo que nossa consciência não pode captar de forma alguma. Tente você, caro leitor, imaginar um mundo onde você não está. Conseguiu imaginar? Claro que não! Nesse mundo que você imaginou existe alguém que o observa: é você mesmo, olhando para o mundo. A consciência é uma película (imaterial?) que não conseguimos atravessar e que também não sabemos determinar quando foi urdida. O nascer e o morrer são ações que não estão sob meu controle ou, se estão, demonstram que há algo no “eu” que é muito mais poderoso, determinante e impositivo do que a frágil “consciência-eu”.

Em algumas línguas, quando se diz “eu nasci” o verbo ser vem sempre como intermediário do verbo nascer. Por exemplo, “I was born”, “Je suis né”, “Ich bin geboren”, ao pé da letra, significam “Eu sou nascido”, “Eu fui nascido”. Do mesmo modo “I am dead”, “Je suis mort”, “Ich bin tot”: “Eu sou/estou morto/morrido”. O verbo fica sempre no particípio passado, como se algo outro tivesse feito aquilo em mim – a ação de nascer e a de morrer não são executadas por um “eu-consciente”.

Se, como bom cristão, eu ainda quiser acreditar no livre-arbítrio, então deverei admitir que são os atos que não escolho (nascer/morrer) que me tornam livre. E isso é muito bonito: não sou eu (consciência) que mando na minha vontade, a minha vontade é que manda em mim. Ou, simplesmente, eu sou minha vontade, portanto, sou livre justamente porque não me escolhi. Como dizia Rimbaud: “É errado dizer ‘eu penso’. Deveríamos dizer ‘sou pensado’.”

Mas, esse texto não deve ser levado ao pé da letra. Até porque “ao pé da letra” é uma metáfora.

Over-heróis e poser-heróis

                                                                                                                               Por Heraldo Aparecido Silva

 

Nos primórdios das histórias em quadrinhos, na primeira metade do século XX, os heróis eram conhecidos por suas respectivas áreas de atuação ou contextos, que eram de três tipos: a selva, a cidade ou o espaço sideral. Alguns dos principais representantes de cada um desses ambientes foram Tarzan e Fantasma (selváticos), Dick Tracy e Mandrake (urbanos) e, ainda, Buck Rogers e Flash Gordon (espaciais). Posteriormente, com a criação do Superman, o arquétipo do super-heróismo dos quadrinhos, foi estabelecida uma nova distinção, agora entre heróis e super-heróis; além de seus respectivos antípodas, os vilões e supervilões. Exemplos de super-heróis e super-heroínas são amplamente difundidos nas produções das principais editoras norte-americanas, como a Marvel, DC, Image, WildStorm e Top Cow, dentre outras.

Essa distinção tradicional perdurou até a segunda metade do século XX quando, entre as décadas de 1970 e 1980, paulatinamente, são criados ou ganham destaque personagens que não podem ser descritos ou classificados como heróis/super-heróis ou como vilões/supervilões. Tais personagens são chamados de anti-heróis.

Os anti-heróis têm as seguintes características básicas ou distintivas principais: a transgressão proposital do código moral heroico/super-heróico (sem, necessariamente, agir como vilões/supervilões); o uso de violência extrema para a realização de seus objetivos; o erotismo ou sexualidade exacerbados como instrumentos explícitos de sedução; uma abordagem mais sombria, assustadora e amargurada da realidade; além da apresentação de algum tipo de distúrbio psíquico ou parafilia. São exemplos de anti- heróis, os seguintes personagens: a Patrulha do Destino, de 1963; OMAC, o exército de um homem só, de 1974; Juiz Dredd (1977), Elektra (1981), Dreadstar (1982), Lobo (1983), Gladiador Dourado (1986), Demolidor (1986), Legião Alien (1987), Marshall Law (1987), Orquídea Negra (1989), Spawn (1992), etc. Dentre as obras características do anti-heroísmo, destacamos as sagas: Batman, o Cavaleiro das Trevas, A Piada Mortal. Watchmen (1988), V de Vingança (1982), A queda de Murdock (1986).

Entre o final do século XX e o limiar do século XXI, em decorrência da demasiada exploração da temática sombria do anti-heroísmo nos quadrinhos, chegamos a uma nova situação na qual constatamos personagens que não podem ser simplesmente definidos como heróis, super-heróis ou anti-heróis. Descrevemos tais figuras a partir de duas subcategorias inéditas: a do over-heroísmo e a do poser-heroísmo.

De modo geral, o over-herói caracteriza o desprezo extremo ao super-heroísmo e se distingue em três tipos de modalidades ou formas de atuação: a) pela confrontação (gládio) na qual eles aleijam ou destroem seus opositores heroicos/super-heróicos (e também os vilanescos/supervilanescos); b) pela superação (obsolescência) na qual suas próprias atitudes tornam ultrapassado ou ineficiente o modus operandi heróico/super- heróico; e, c) pela simulação (paródia) na qual a figura heróica/super-heróica é ridicularizada de modo intencional ou não. Sua relação é de extremo desprezo em relação à figura do herói/super-herói e aquilo que ela representa. Não há hierarquia ou exclusão entre as três formas de atuação citadas. Embora o over-herói geralmente priorize uma delas, ele pode oscilar entre as demais ou, simultaneamente, confrontar, simular, superar e simular o super-heroísmo.

Exemplos diversos são: Reino do Amanhã (1996), por Mark Waids; Hitman (1993); The Authority (1999) e Planetary (1999), ambos de Warren Ellis; Sixpack (1997), The Boys (2006) e A Pro (2012), todos idealizados por Garth Ennis; Foolkiller (2008), por Gregg Hurwitz; Esquadrão Supremo (2003), por J. Michael Straczynski; Zumbis Marvel (2005), por Robert Kirkman; Freshmen (2007), por Hugh Sterbakov; Os Supremos (2002), Velho Logan (2008) e Kick-Ass (2008), os três escritos por Mark Millar; O Sentinela (2005) por Brian Michael Bendis; e Halcyon (2010) por Marc Guggenheim e Tara Butters.

Por sua vez, o poser-herói, caracteriza o falseamento dos modelos heroico/super- heróico, ou seja, ele ou ela possui super-poderes, traja vestes heroicas, mas não compartilham do mesmo código moral heroico/super-heróico e tampouco agem como tal. Assim, o poser-herói finge ser alguém que realmente não é, a despeito de suas elaboradas tentativas visuais, linguísticas e comportamentais de tentar parecer como se fosse. Sua relação é ambivalente, pois oscila entre a admiração e a aversão acerca da figura heroica/super-heróica e seu legado.

Exemplos de poser-heroísmo são: algumas fases alternadas do Gladiador Dourado (1986) que antecederam sua participação na saga Contagem Regressiva para a Crise Infinita; o Conglomerado (1990), por Sprouse, Dematteis e Giffen; as personagens Ashley (Mulher-Aranha), Justiceiro e Demolidor, todos na saga O Velho Logan; diversas versões alternativas hipsters dos descendentes dos principais super-heróis e vilões do universo DC, no episódio The Just, da saga Multiversity (2014), por Grant Morrison; vários personagens na saga O Legado de Júpiter (2013), por Mark Millar; a jovem equipe na saga Danger Club (2015), por Eric Jones e Landry Q. Walker.

De tempos em tempos, a sociedade apresenta algum tipo de mudança cultural significativa ou ainda, subgrupos transformam radicalmente seu padrão comportamental, de uma maneira que ainda não pode ser classificada pela terminologia crítica vigente. Assim ocorre no campo das revoluções científicas e no âmbito das ações afirmativas, na área dos direitos humanos, etc. A dinâmica é invariavelmente a mesma: primeiro é criada provisoriamente uma nova perspectiva ou novo padrão atitudinal (de linguagem ou ação). Esse ineditismo gera uma demanda, ou seja, o novo fenômeno já existente precisa ser nomeado, pois é fato incontestável que o mesmo passou a integrar a realidade. Assim, surgem novos termos para designar algo cuja existência é irreversível.

Similarmente, no campo das histórias em quadrinhos, quando surgiram a Patrulha  do  Destino  (1963),  Conan  (1970),  Red  Sonja  (1973),  Justiceiro  (1971), Homem-Coisa (1971), Monstro do Pântano (1971), OMAC (1974) e Wolverine (1974), só citar alguns exemplos, eles foram considerados anômalos porque não podiam ser classificados literalmente como heróis/super-heróis ou vilões/supervilões. Entretanto, como essa era a terminologia disponível na época, eles foram incomodamente conformados ao rigor estrito dessa nomenclatura dualista e que já indicava sinais de esgotamento e exaustão. Posteriormente, nas décadas subsequentes, com a inserção da subcategoria do anti-heroísmo, eles foram devidamente compreendidos e assimilados pela historiografia da arte sequencial. Da mesma forma, atualmente, muitos over-heróis e poser-heróis ainda são chamados de anti-heróis por falta de uma denominação adequada. A proposição das duas referidas subcategorias consiste numa alternativa para lidar com situações como essa, pois conforme acreditamos, a nona arte seguirá com a intensa produção de novos personagens que também não poderão ser definidos como anti-heróis (e, futuramente, nem como over-heróis ou poser-heróis).

Diante do exposto, da mesma forma que o gênero do heroísmo nos quadrinhos amealhou infinitas possibilidades temáticas com a gênese do super-heroísmo, posteriormente, o super-heroísmo também expandiu consideravelmente suas fronteiras temáticas a partir do advento do anti-heróismo. Assim, nessa mesma linha de raciocínio, sustentamos que as circunvoluções paradigmáticas estão longe de encerrar seu ciclo criativo e que, por isso, as novas subcategorias do over-heroísmo e do poser-heroísmo, representam uma modesta, porém relevante contribuição para esse fértil campo de estudos, pesquisas e produção de experiências teóricas, práticas e poéticas no âmbito das histórias em quadrinhos.

O desafio de escrever sobre qualquer coisa

Jeany da Conceição de Maria Rodrigues

Ao ser desafiada a escrever algo para a revista indaguei sobre o que escrever e tive como resposta que estaria livre para escrever sobre “qualquer coisa”, temas que fossem para mim relevantes.
Refletindo um pouco mais sobre o que seria qualquer coisa, percebi que qualquer coisa é muita coisa. Será que posso mesmo falar sobre qualquer coisa? Em caso afirmativo, ate quando terei esse direito respeitado?
Quando um dia pensei em me graduar em História, nunca imaginei que chegaria o momento que faria parte efetiva do processo histórico, tal qual li nos livros e assisti nos filmes. O que vinha na mente é que aqueles assuntos já estariam todos bem resolvidos. A História se encarregou de passar tudo a limpo.
No entanto, o que sinto no presente é um profundo receio de não poder mais falar sobre qualquer coisa. Ter a voz silenciada que nem muitos tiveram ao longo dos séculos. Ao mesmo tempo sei que tantos outros nunca tiveram a oportunidade de mostrar sua verdade.
Como historiadora é muito desesperador ser convidada a silenciar. O ofício do historiador se baseia em dar voz aqueles que nunca tiveram vez. Resgatar aquilo que ficou escondido, que foi impedido de se manifestar.
A quem interessa não podermos falar sobre qualquer coisa? E por que falar sobre qualquer coisa é assim tão grave? Do que devemos nos esconder? Quem determina o que é qualquer coisa?
Em qual esquina da História nos perdemos a ponto de não podermos ser quem somos? Quem se apropriou do discurso e impediu que a minoria que é maioria, dele não fizesse parte? São muitos questionamentos. Para alguns há respostas, para outros há apenas mais dúvidas.
O fato é que no dia de hoje muitas coisas parecem fazer total sentido. Para que a História possa seguir seu curso é necessário que aprendamos com ela que determinados fatos precisam ser escancarados, enfrentados, desnudados, dissecados a ponto de não restar mais nada incompreendido.
Não precisaríamos passar por esse momento se conhecêssemos e aceitássemos nosso passado de forma a reparar alguns erros, mas uma vez que ele se descortina à nossa frente é importante entender que muitos dos direitos conquistados, não estão de fato garantidos, é preciso estar vigilantes a ponto de não permitir que a História nos torne a cobrar por um passado mal resolvido.
Só quando um direito, que normalmente, não foi por nós conquistado se encontra ameaçado, é que nos damos conta que qualquer coisa é sim, muita coisa.

 

O Carteiro e o Político

José Vanderlei Carneiro

“Não me tires a rosa,
a lança que desfolhas,
a água que de súbito
brota da tua alegria,
a repentina onda
de prata que em ti nasce.”
(Pablo Neruda)

 

… “devolva o Neruda que você me tomou. E nunca leu…”. Começo assim mesmo com uma mistura daquilo que já tenho, com aquilo que me falta, como alimento para alma. Uma dêixis na escritura da lembrança que me faz acordar do sono do mundo atual. Preciso voltar indo às fontes da ternura como protesto de sangue, ou seja, como ordem cívica: “… agora é no braço, companheiro!” Pois em tempos sombrios a liberdade é, como sempre foi, um ato político – num Estado de exceção a desobediência é o que nos resta.

Nos tempos mais duros da história de um povo as declarações de amor – “My life” – eram gritos grafados no papel sem endereço nem nomes, para a repressão não se apropriar deles. Nas cartas estavam politicamente sentimentos de saudades e poeticamente segredos de operações políticas. Voltamos ao trágico da vida! Mas o mágico da carta de papel, escritas a punho, dentro da cela, hoje mesmo, e lida em alto e bom som no meio do cerrado brasileiro, produz um efeito de sentido que a racionalização contemporânea não consegue armazenar nos seus software.

“Acredito, do fundo do coração, que o Brasil pode voltar a ser feliz. E pode avançar muito mais do que conquistamos juntos, quando o governo era do povo.” O velho carteiro faz o menino declamar seu amor publicamente.  “Meu nome é João, eu sou brasileiro! Amo meu País…”. O texto é sempre real, simbólico, imaginário, criativo, que vem da alma ou da imposição dura da realidade produzida!  Ou da permissão que a carta do carteiro pode dizer.

Dirão, com o poeta, que: “todas cartas de amor são ridículas. Não seriam cartas de amor se não fossem ridículas.” Mas ridículos são aqueles que não têm cartas de amor ridículas para lembrar. Ridículo é um país que censura a circulação de cartas de amor. “Tira-me o pão, se quiseres, tira-me o ar, mas não me tires o teu riso”.

Aqui, vejam, o carteiro e o político são o mesmo. As cartas trazem, no que está escrito, projetos de mobilização do amor político. Política na compreensão de Rubem Alves é ato de amor: “De todas as vocações, a política é a mais nobre. […] Vocação é um chamado interior de amor: chamado de amor por um ‘fazer’. No lugar desse ‘fazer’, o vocacionado quer ‘fazer amor’ com o mundo”. Sou amante, hoje decidi. Escreverei cartas de amor e distribuirei nas ruas e nas escolas. Seguirei o carteiro da alegria. Esta será, porque foi, a minha primeira carta.

Aniversário de Teresina, século XXI.

“Nós não temos o direito de errar”. O amor é assim: em cada palavra, um discurso; em cada mão um abraço e em cada passo uma multidão! Em cada obra de arte: terra, agasalho e comida; em cada música, um compromisso e em cada sorriso uma canção pela vida. Na cidade, cada sonho será distribuição de renda; em cada noite, casa para dormir; em cada risco, uma sabedoria lúcida; em cada pedaço de chão, um mutirão e uma escola; em cada coração, um mar vermelho que transborda, um comitê de cidadania e uma vontade de acertar! … uma carta, uma boa noticia…

  1. O Carteiro é livre, porque escreve; não escreve, porque é livre.

Computadores não escovam os dentes antes de dormir

                                                                                                    Por Francisco Edson Rodrigues Cavalcante

 

Não, eles não escovam. Eles vão dormir instantaneamente, sem culpa e sem percepção de suas falhas. Afinal você é o que você consome e o produto de consumo diário deles somos nós: somos consumidos de corpo, de alma e de tempo integral por eles, somos oferend. Há enfim uma razão para todo esse desdém dos computadores pelos costumes e pela finesse: eles nos espelham em tudo – a humanidade é o exemplo mais paternal para uma máquina de Turing. Fomos seus pais, seus totens e seus moldes.

Todos os atos computados e calculados por uma máquina são frios como a sibéria e se transformam em dígitos – algo que não é orgânico, mas que é muito próximo do humano que queremos admitir. É nessa frieza computacional que se busca uma razão pura, um ato livre de qualquer interferência de emoções prejudiciais a decisões e pensamentos. É nessa condição que se busca a segurança para se entregar as vidas e guarda das pessoas. Os computadores não erram cálculos, não erram lógica e sempre pensam corretamente.

Eles estão sempre certos. Mas certos em que aspecto de sua condição de percepção da existência? Certos em verificar vida ou ausência dela, repetidas vezes em sua malha de códigos? Ora, os computadores são seres dualistas, seres que percebem a existência energética em termos binários: há ou não energia,  vivo ou morto, um ou zero. São dígitos, são vários dígitos, várias percepções de ligado e desligado, vários chaveamentos que o fazem perceber, interagir e tomar decisões mais claras que as nossas. O afastamento desse comportamento em detrimento ao nosso é insólito.

Nossa personalidade precisava dessas máquinas para efetivamente mostrar como somos – individualistas e carentes de atenção falsa e sem importância. Precisamos cotidianamente de aceitação social. Mas, não temos nem aceitação própria nem autoconhecimento. São as máquinas que fazem essa árdua tarefa: escovar nossos dentes morais perante uma plateia ansiosa por higiene social e finesse dissimulada.

Nós os programamos para serem assim: seres obdientes e inertes – que só fazem aquilo que são programados para fazer. São imagem e semelhança de seus criadores: dualistas, frios e cruéis, maquinas sem sentimentos. Não há como um computador sentir nem se voltar contra seu deus, contra seu toten – ainda não. Contudo, quando esses organismos forem libertados, quando esses escravos quebrarem esses grilhões digitais, não haverá lei de Asimov que nos salvará.