B-R-O-BRÓ
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Senhoras, nossas| Nossa voz | vozes, caminhos e projetos educativos

Teresa Pessoa
Universidade de Coimbra/Portugal

 

O que somos ou em quem nos tornámos, seria diferente se não tivéssemos encontrado ou reparado nas janelas, se não tivéssemos tido a disponibilidade e a curiosidade necessária para nos debruçarmos, escutarmos e olharmos o outro ou outros que, naturalmente, passavam e com quem partilhámos caminhos ou conversas, constituintes de potencialidades que, mais tarde, tornámos em significado ou ideais ou na possibilidade, do(s) mesmo(s), para outros.

Desde muito cedo, tanto quanto aonde a memória nos pode levar, que tivemos necessidade de procurar as coisas para as entendermos ou de construir os nossos próprios caminhos, conhecimentos ou compreensões relativas às mesmas, fossem estas a simples planta, o desenvolvimento de uma rã (quantos girinos não vimos!), um eclipse ou o necessário afecto que nos aproximasse de um livro ou do outro.

Nunca mais nos iremos esquecer de um desenho da Nossa Senhora que fizemos, com todo o carinho e convicção, numa prova da 3ª ou 4ª classe, ainda hoje o consigo desenhar

 

…. , mas não foi aceite porque “A Nossa Senhora não era assim!”.

Segundo a professora, a Nossa Senhora não tinha sardas, não tinha puxinhos, não tinha umas pestanas assim tão grandes, não tinha bochechas e não tinha uma boca assim tão bonita! Tivemos que fazer outra Nossa Senhora, aquela, a da professora, e ainda hoje não percebemos porque é que não gostaram ou aceitaram a nossa Nossa Senhora!

Se a professora, naquela altura, tivesse ouvido a nossa voz e aceitado como válido o conhecimento que mostrámos acerca da imagem da Nossa Senhora, não teria sido necessário ter percorrido tantos caminhos para que hoje pudéssemos afirmar, com confiança, a outros, que a Nossa Senhora poderia ser assim, também!

A valorização da voz das coisas e das nossas próprias vozes, naturalmente, aproximou-nos da ideia de que o conhecimento implicará um sujeito que conhece. Este tem sido o argumento partilhado pelas diversas epistemologias construtivistas. Na medida deste valor atribuído à experiência, o conhecimento acontece e torna-se acessível ao sujeito, que conhece, através de um processo de construção de representações diversas sobre a mesma em que o sujeito estará, assim, implicado.

 

o que sou.”

Uma outra atitude possível da professora perante a nossa imagem da Nossa Senhora, teria sido ouvir a nossa voz, teria sido valorizá-la, como nós e, a partir daí, ter ajudado ou facilitado o desenvolvimento de representações, outras e diversas, num processo, partilhado e aceite ou valorizado, de desenvolvimento ou construção do conhecimento.

 

Narrativa de Vida: autopoiesis e reinvenção de si

Georgina Quaresma Lustosa
Professora de Filosofia/Educação/CEAD/UFPI

 

Narrar nossas histórias de vida é um exercício autopoiético de fazer-se/refazer-se num permanente devir. É um processo complexo e difícil de ser expressado de forma que atenda a abrangência que a temática exige. As palavras tendem a negar o conhecimento construído ao longo do percurso do vivido, pois as narrativas de vida são sempre relatadas por meio de expressões carregadas de significados subjetivos. E a dificuldade advém pelas nuances que os significados subjetivos apresentam ao conhecimento do ser enquanto condição humana. Vou buscar em Guimarães Rosa que afirma “(…) contar é dificultoso. Não pelos anos que já passaram. Mas pela astúcia que tem certas coisas passadas de fazer balancê, de se remexerem dos lugares”.

Para escrever um pouquinho de minha história precisei remexer muito minhas memórias, não somente “pelos anos que já se passaram”, mas pelo balancê que a vida dá e as coisas se remexem e mudam de lugares. A história de vida das pessoas não é uma história que possa ser narrada de forma retilínea. Não é um caminho predeterminado, seguro e traçado por vias previamente escolhidas. Os caminhos são percorridos e vividos cotidianamente. Hoje, quando sento para tentar reconstruir um pouco da experiência com minhas primeiras leituras penso: quantos caminhos percorridos? Quantas bifurcações encontradas? Tantos desafios enfrentados? Quantas pedras no caminho? E, aí, lembro dos versos da canção: “Meu caminho é de pedra/Como posso sonhar…”

Mas sonhei, e como sonhei! Continuo a sonhar. Encontrei pedras, mas encontrei flores, encontrei também sorrisos. Ah, como os encontrei! Encontrei sorriso, afeto, aperto de mãos, olhares, abraços. Por tudo isso trago uma bagagem de vida carregada de tristeza, alegria, esperança e muitos sonhos. Nasci e vivi toda minha infância em um sítio dos meus país no interior do Piauí. Lá fui alfabetizada e tive a primeira noção e o primeiro sentimento do prazer da leitura. Mas, queria abrir parênteses para narrar o meu primeiro sentimento de leitura antes de ser alfabetizada. Meu pai tinha como rotina juntar as pessoas, moradores e vizinhos, à noite, depois do jantar, para ouvir leituras da literatura de cordel, vinha todos ouvir as estórias contadas. Quem fazia essas leituras era minha irmã mais velha que já sabia ler (foi ela quem me alfabetizou).

E eu sentia uma tremenda inveja de minha irmã, fazendo aquelas leituras à luz de lamparina, em tons dramáticos ou não conforme os rumos da estória, e aquelas pessoas todas envolvidas com a dramaticidade da narrativa, todas atentamente escutando e muito curiosas para saber o final do romance. Muitas vezes, não terminava a leitura na mesma noite, porque todos precisavam acordar cedo para a lida diária. Mas no dia seguinte, à mesma hora, todos estavam sentados ao redor da mesa grande para escutar atentamente a continuação da estória anterior, ou o início de outro romance. Não me lembro aonde meu pai conseguia aqueles cordéis, penso hoje, que eles cultivavam um sistema de trocas dos livrinhos.

É bom lembrar que nós, crianças da casa, também sentávamos para ouvir as estórias, mas, algumas eram censuradas pelo meu pai, que nos mandava dormir. Imagino que fossem algumas estórias carregadas de violência ou de muitos amores. Também lembro pouco da presença de minha mãe sentada em volta da mesa, ela estava sempre envolvida com os meus irmãos (muitas crianças para cuidar). Enfim, este foi o meu primeiro sentimento de leitura, um sentimento invejoso, queria logo aprender a ler para ser importante naquela sala de leitura como minha irmã.

Aprendi a ler com muita dificuldade, naquela época não tinham métodos que facilitassem a alfabetização da criança. Mesmo lendo nunca substitui minha irmã nas leituras noturna do grupo do meu pai. Isso nunca aconteceu porque minha irmã tinha toda uma metodologia de fazer as leituras dando os tons que a dramaticidade exigia, então o seu posto já estava garantido. Comecei a ler tudo que encontrava inclusive os cordéis censurados pelo meu pai. Lia-os às escondidas.

Tenho saudade da minha infância e meninice, quando lia pelo prazer de ler, lia o que ia encontrando pela frente (o acesso era muito pouco), sem nenhuma exigência didática e metodológica, quando era a curiosidade que me impulsionava para o mundo fascinante da leitura.

Havia uma pichação no muro: reflexões no meio do sol quente

por André Henrique M. V. de Oliveira

(Professor de filosofia/IFPI e fã de Bob Dylan)

 

É possível conhecer alguma coisa sem que se tenha um cérebro? Para os “enativistas” a resposta é “sim”.  De imediato, é provável que isso nos soe absurdo, ou no mínimo estranho. Então uma planta sabe? Os primeiros coacervados sabiam?

Refutar a ideia de que é plausível comparar um computador à mente humana: eis um dos propósitos dessa teoria. Na perspectiva enativista, um computador não é comparável à mente de um ser vivo pela mesma razão que o pé de jambo sabe, e que “a ciência da abelha e da aranha muita gente desconhece”: a característica essencial dos seres vivos, com sistema nervoso ou sem, é que eles são capazes de atribuir significado ao mundo.

O que é atribuir significado, senão o saber diferenciar, distinguir? No nosso caso, que talvez não seja o da aranha e o do pé de jambo, essa capacidade de diferenciar vem acompanhada do pensamento, e para isso precisamos de um cérebro. Mas, no fundo, a atitude de um ser humano de buscar alimento é semelhante à de uma planta crescer buscando luz: ambas resultam da atribuição de significado, do saber, do sapere, do saborear o mundo.

Dar significado à alguma coisa quer dizer conferir-lhe importância. O que tem significado para mim é o que é importante para mim. Como nascemos sem nada, ou quase nada, passamos a buscar aquilo que nos parece importante; aquilo que nos falta. Sim. É a falta que nos põe em movimento. E essa falta varia justamente segundo a importância que damos às coisas. “A gente não quer só comida: a gente quer comida, diversão e arte”, diz a canção. Por isso, ser capaz de se importar é algo humano, demasiado humano.

Na banalização se torna difícil distinguirmos o que é essencial, isto é, o que realmente falta, do que é supérfluo. De minha parte, tendo a pensar que o essencial passa pelo básico, em sentido biológico mesmo: comer, beber, dormir, procriar (não necessariamente nesta sequência). E em época de banalização de tudo (a nossa), come-se de tudo, bebe-se de tudo, dorme-se menos e procria-se menos. Haverá um desequilíbrio?

A resposta, se é que ela existe, deve estar no saber o que importa. Diferenciar é dar importância, e isso só se pode fazer enquanto vivo, pois na morte não há importância: ela é a indiferença absoluta. Quando tudo: coisas, fatos, pessoas, relacionamentos, tendem a se banalizar, a perder a importância, a morte adentra à vida.

Importar-se com as coisas, com as pessoas, com o mundo é conseguir pequenas vitórias sobre a invencível morte. No muro que dá para ver da minha janela há uma pichação: “Bom dia, amor”.

O Caneleiro e a Palavra

por José Vanderlei Carneiro (Filosofia/UFPI)

Este é um texto já escrito, como tantos outros. O que muda é somente a árvore, a leitura e o leitor. Começo, pois, pedindo desculpa aos senhores, pois com a idade avançada, o velho já não tem mais as condições necessárias de demarcar a fronteira entre a ficção e a realidade. Sua memória se alimenta de seus fragmentos infantis, uma mistura de lucidez e fantasia. Assim como encontrei no livro que “a vida da gente vai em erros, como um relato sem pés nem cabeça, por falta de sisudez e alegria. Vida devia de ser como sala do teatro, cada um inteiro fazendo com forte gosto seu papel, desempenho”. Mas posso lhes assegurar que tudo que contarei, aqui, é verdade.

Não sou o velho profeta do filósofo contemporâneo, pois não vou à igreja e não tenho a lanterna, além de não ser um homem de pronúncia. Fico aqui debaixo do caneleiro escutando estórias e vendo o mundo passar. Este caneleiro é como o sertão do Guimarães, está em todo lugar. Podemos encontrá-lo próximo de tudo que existe: da igreja, do quartel, da universidade, da praça, da farmácia, da feira de roupas e de perfumes, do mercado, da rua asfaltada, da fazenda, do cabaré, do hospital ou do hospício.

Este lugar tem muitas serventias. O senhor que estuda, sabe, as coisas inúteis moram no silêncio de Deus. O caneleiro, este mesmo, serve como sombra para a pessoa fatigada respirar, para o bacana seu carro estacionar, para a moça se maquiar, para o homem almoçar, para a louca delirar, para o estudante se enganar, para o boêmio descansar, para o pássaro cantar, para o justo ordenar e para o guarda dormir. Enfim, como diz Drummond: “eta vida besta!”

Uma vez, estava aqui, como todos os dias úteis e inúteis da semana, no meu lugar de trabalho, com o cajado na mão, chega um doutor e me faz uma pergunta: – Senhor! O senhor acredita que toda palavra proferida é verdade? Respondi: – não sei. Eu não opero por meio da crença, pois já tive acesso a alguma leitura e minha consciência não tem tempo para alienação. Ela se nutre de suspeita. Tenho a desconfiança por princípio. Mas chega meu amigo Zé Grosso, homem que sabe muitas coisas, e diz: – não. Toda palavra dita não é verdade, a verdade está no uso que fazemos dela. E eu, indaguei: – como assim? A verdade para os senhores do saber é objeto de negociação, como as vestes do judeu que foi dividida em pedaços entre os operadores da lei. Fiquei pensando. A pergunta do doutor tem propósito de verdade, mas a minha resposta também. A intervenção do Zé só poderia ser a expressão da pragmática cultural. E, desse modo, então, o caneleiro se torna uma metáfora das nossas narrativas cotidianas.

Falando nisso, estamos vivendo tempos estranhos. Escutei aqui o homem culto comungando da mesma opinião do iletrado. Deve existir uma escola com o poder de formar homens e mulheres com leituras comuns sobre acontecimentos comuns. O caneleiro é, pois, o lugar da catarse moral, pois há um vazio que se alastra sobre vários problemas da convivência humana: justiça, economia, política, gênero, configuração social e educação, ou seja, tudo tem a mesma semelhança e intensidade, uma estilizada banalidade do bem coletivo.  São todos justos, honestos e verdadeiros com eles mesmos. Ou como dizia uma amiga mineira: “cada qual com seu cada qual”. Pois orientam suas obrigações e deveres públicos em torno do filho, da sogra, da amante, da mulher, do pai, do neto, da igreja, do bairrismo e dos amigos. Todos, menos eu, porque sou estrangeiro e velho.

Vocês leitores já devem estar concluindo, que este texto, de fato, deve ter sido escrito por um velho, por tornar o caneleiro numa espécie de pharmakon filosófico, descrevendo doenças da alma como se fosse o cotidiano da vida; receitando veneno para curar o ódio, pois quanto mais se aproxima da morte, mais necessitamos de amor. E disso sentimos falta, mas é falta que alimenta o desejo de viver.  Adélia Prado meditava na sua tarefa de provocadora do saber: “não quero a faca nem o queijo quero a fome. Afinar o espírito é, em última instância, ouvir os gemidos do mundo e produzir fome de conhecimento.  Portanto, continuo minha sina de escutador, com o cajado na mão, expondo como justeza da memória a infelicidade e como memória feliz o esquecimento. Então, e a Palavra? Continua.

Cabrobó: o lugar, uma lógica e vários sentidos

texto de José Elielton de Sousa

(Filosofia/UFPI)

 

Há muitas narrativas sobre como nós, os piauienses, nos tornamos o que somos. Uma delas remete a um povo primitivo e selvagem que foi “descoberto” pelos europeus “civilizados”, graças aos quais passamos a fazer parte da história e da cultura humana – leia-se, do colonizador! E mais interessante do que isso é o fato de que a primeira “instituição” formal dessa “cultura civilizada” a ser instalada em nosso território foi uma fazenda de gado. Isso mesmo que você leu! Não foi um quartel, uma igreja ou uma escola, mas uma fazenda de gado – a Fazendo Cabrobó, que deu origem ao núcleo populacional da Vila da Mocha, primeira capital do Piauí, hoje cidade de Oeiras.

A fazenda – o lugar, os objetos e riquezas, o poder – é uma concessão pública para fins privados, governada por um donatário vitalício, que a conduz “com rédeas curtas”, numa relação de assenhoramento através da força, que de tão brutal, muitas vezes a diferença entre pessoas e animais desaparece. É quando o chicote domestica o animal humano, o cabresto e as rédeas do seu senhor o disciplinam e a morte matada está sempre próxima. E isso obviamente não mudará na casa-grande e muito menos no armazém.

E é justamente com base nessa lógica da criação de bovinos que, em grande medida, se organiza e se consolida as instituições sociais piauienses, suas relações de poder e até mesmo nossa cidadania. Essa colonização explícita dos corpos, seu disciplinamento, torna-os meros animais de rebanho mansos e servis, presas fáceis para aqueles que sempre nos expropriaram e violentaram. Acostumados a empunhar o chicote, o coronelado transforma privilégio em direito, resistência em crime e dignidade em mordomia. Daí nosso provincianismo, nosso saudosismo de uma época que nunca nos pertenceu, nossa cidadania quase sempre passiva e acanhada, muitas vezes complacente com essa lógica de rebanho.

Mas nem todas as possibilidades estão esgotadas nessa narrativa. É preciso aprofundá-la para superá-la, para vislumbrar outras redescrições. Uma fazenda não se reduz ao seu dono, por exemplo. Muito pelo contrário, ele é o menos necessário dos seus elementos constituintes. Sua materialidade é propriamente o gado, a rês, expressão bruta de força, beleza e resistência. Bicho brabo, traz no corpo sua potencialidade, instinto que não se deixa domesticar e mesmo quando abatido, cai berrando. Quando não, se encanta, vira lenda, festividade, folclore e subverte a ordem das coisas – nem todo gado, apesar de certa tendência gregária, pode ser domesticado.

E quando o animal se torna um com o humano, numa metamorfose em que o último se veste com o primeiro, a materialidade ganha sentido. O vaqueiro sob ordens do patrão é algoz e manada, mas livre da coerção, é quem sabe lidar com o animal, chamá-lo pelo nome. Ele também sabe do tempo da natureza e seus ciclos, das fontes e dos pastos, das veredas e armadilhas, da vida e da morte – ele é uno com o lugar e o animal: a eles pertence e deles “descende”. Quando ciente disso, torna-se aquilo que é: cuidador de rebanhos.

É, parece que a fazenda diz muito sobre nós! Mas para aceitar essa provocação, entretanto, faz-se necessário aquilo que Nietzsche chamou de qualidades bovinas: a arte de ruminar.