Georgina Quaresma Lustosa
Professora de Filosofia/Educação/CEAD/UFPI

 

Narrar nossas histórias de vida é um exercício autopoiético de fazer-se/refazer-se num permanente devir. É um processo complexo e difícil de ser expressado de forma que atenda a abrangência que a temática exige. As palavras tendem a negar o conhecimento construído ao longo do percurso do vivido, pois as narrativas de vida são sempre relatadas por meio de expressões carregadas de significados subjetivos. E a dificuldade advém pelas nuances que os significados subjetivos apresentam ao conhecimento do ser enquanto condição humana. Vou buscar em Guimarães Rosa que afirma “(…) contar é dificultoso. Não pelos anos que já passaram. Mas pela astúcia que tem certas coisas passadas de fazer balancê, de se remexerem dos lugares”.

Para escrever um pouquinho de minha história precisei remexer muito minhas memórias, não somente “pelos anos que já se passaram”, mas pelo balancê que a vida dá e as coisas se remexem e mudam de lugares. A história de vida das pessoas não é uma história que possa ser narrada de forma retilínea. Não é um caminho predeterminado, seguro e traçado por vias previamente escolhidas. Os caminhos são percorridos e vividos cotidianamente. Hoje, quando sento para tentar reconstruir um pouco da experiência com minhas primeiras leituras penso: quantos caminhos percorridos? Quantas bifurcações encontradas? Tantos desafios enfrentados? Quantas pedras no caminho? E, aí, lembro dos versos da canção: “Meu caminho é de pedra/Como posso sonhar…”

Mas sonhei, e como sonhei! Continuo a sonhar. Encontrei pedras, mas encontrei flores, encontrei também sorrisos. Ah, como os encontrei! Encontrei sorriso, afeto, aperto de mãos, olhares, abraços. Por tudo isso trago uma bagagem de vida carregada de tristeza, alegria, esperança e muitos sonhos. Nasci e vivi toda minha infância em um sítio dos meus país no interior do Piauí. Lá fui alfabetizada e tive a primeira noção e o primeiro sentimento do prazer da leitura. Mas, queria abrir parênteses para narrar o meu primeiro sentimento de leitura antes de ser alfabetizada. Meu pai tinha como rotina juntar as pessoas, moradores e vizinhos, à noite, depois do jantar, para ouvir leituras da literatura de cordel, vinha todos ouvir as estórias contadas. Quem fazia essas leituras era minha irmã mais velha que já sabia ler (foi ela quem me alfabetizou).

E eu sentia uma tremenda inveja de minha irmã, fazendo aquelas leituras à luz de lamparina, em tons dramáticos ou não conforme os rumos da estória, e aquelas pessoas todas envolvidas com a dramaticidade da narrativa, todas atentamente escutando e muito curiosas para saber o final do romance. Muitas vezes, não terminava a leitura na mesma noite, porque todos precisavam acordar cedo para a lida diária. Mas no dia seguinte, à mesma hora, todos estavam sentados ao redor da mesa grande para escutar atentamente a continuação da estória anterior, ou o início de outro romance. Não me lembro aonde meu pai conseguia aqueles cordéis, penso hoje, que eles cultivavam um sistema de trocas dos livrinhos.

É bom lembrar que nós, crianças da casa, também sentávamos para ouvir as estórias, mas, algumas eram censuradas pelo meu pai, que nos mandava dormir. Imagino que fossem algumas estórias carregadas de violência ou de muitos amores. Também lembro pouco da presença de minha mãe sentada em volta da mesa, ela estava sempre envolvida com os meus irmãos (muitas crianças para cuidar). Enfim, este foi o meu primeiro sentimento de leitura, um sentimento invejoso, queria logo aprender a ler para ser importante naquela sala de leitura como minha irmã.

Aprendi a ler com muita dificuldade, naquela época não tinham métodos que facilitassem a alfabetização da criança. Mesmo lendo nunca substitui minha irmã nas leituras noturna do grupo do meu pai. Isso nunca aconteceu porque minha irmã tinha toda uma metodologia de fazer as leituras dando os tons que a dramaticidade exigia, então o seu posto já estava garantido. Comecei a ler tudo que encontrava inclusive os cordéis censurados pelo meu pai. Lia-os às escondidas.

Tenho saudade da minha infância e meninice, quando lia pelo prazer de ler, lia o que ia encontrando pela frente (o acesso era muito pouco), sem nenhuma exigência didática e metodológica, quando era a curiosidade que me impulsionava para o mundo fascinante da leitura.