Por Heraldo Aparecido Silva
Nos primórdios das histórias em quadrinhos, na primeira metade do século XX, os heróis eram conhecidos por suas respectivas áreas de atuação ou contextos, que eram de três tipos: a selva, a cidade ou o espaço sideral. Alguns dos principais representantes de cada um desses ambientes foram Tarzan e Fantasma (selváticos), Dick Tracy e Mandrake (urbanos) e, ainda, Buck Rogers e Flash Gordon (espaciais). Posteriormente, com a criação do Superman, o arquétipo do super-heróismo dos quadrinhos, foi estabelecida uma nova distinção, agora entre heróis e super-heróis; além de seus respectivos antípodas, os vilões e supervilões. Exemplos de super-heróis e super-heroínas são amplamente difundidos nas produções das principais editoras norte-americanas, como a Marvel, DC, Image, WildStorm e Top Cow, dentre outras.
Essa distinção tradicional perdurou até a segunda metade do século XX quando, entre as décadas de 1970 e 1980, paulatinamente, são criados ou ganham destaque personagens que não podem ser descritos ou classificados como heróis/super-heróis ou como vilões/supervilões. Tais personagens são chamados de anti-heróis.
Os anti-heróis têm as seguintes características básicas ou distintivas principais: a transgressão proposital do código moral heroico/super-heróico (sem, necessariamente, agir como vilões/supervilões); o uso de violência extrema para a realização de seus objetivos; o erotismo ou sexualidade exacerbados como instrumentos explícitos de sedução; uma abordagem mais sombria, assustadora e amargurada da realidade; além da apresentação de algum tipo de distúrbio psíquico ou parafilia. São exemplos de anti- heróis, os seguintes personagens: a Patrulha do Destino, de 1963; OMAC, o exército de um homem só, de 1974; Juiz Dredd (1977), Elektra (1981), Dreadstar (1982), Lobo (1983), Gladiador Dourado (1986), Demolidor (1986), Legião Alien (1987), Marshall Law (1987), Orquídea Negra (1989), Spawn (1992), etc. Dentre as obras características do anti-heroísmo, destacamos as sagas: Batman, o Cavaleiro das Trevas, A Piada Mortal. Watchmen (1988), V de Vingança (1982), A queda de Murdock (1986).
Entre o final do século XX e o limiar do século XXI, em decorrência da demasiada exploração da temática sombria do anti-heroísmo nos quadrinhos, chegamos a uma nova situação na qual constatamos personagens que não podem ser simplesmente definidos como heróis, super-heróis ou anti-heróis. Descrevemos tais figuras a partir de duas subcategorias inéditas: a do over-heroísmo e a do poser-heroísmo.
De modo geral, o over-herói caracteriza o desprezo extremo ao super-heroísmo e se distingue em três tipos de modalidades ou formas de atuação: a) pela confrontação (gládio) na qual eles aleijam ou destroem seus opositores heroicos/super-heróicos (e também os vilanescos/supervilanescos); b) pela superação (obsolescência) na qual suas próprias atitudes tornam ultrapassado ou ineficiente o modus operandi heróico/super- heróico; e, c) pela simulação (paródia) na qual a figura heróica/super-heróica é ridicularizada de modo intencional ou não. Sua relação é de extremo desprezo em relação à figura do herói/super-herói e aquilo que ela representa. Não há hierarquia ou exclusão entre as três formas de atuação citadas. Embora o over-herói geralmente priorize uma delas, ele pode oscilar entre as demais ou, simultaneamente, confrontar, simular, superar e simular o super-heroísmo.
Exemplos diversos são: Reino do Amanhã (1996), por Mark Waids; Hitman (1993); The Authority (1999) e Planetary (1999), ambos de Warren Ellis; Sixpack (1997), The Boys (2006) e A Pro (2012), todos idealizados por Garth Ennis; Foolkiller (2008), por Gregg Hurwitz; Esquadrão Supremo (2003), por J. Michael Straczynski; Zumbis Marvel (2005), por Robert Kirkman; Freshmen (2007), por Hugh Sterbakov; Os Supremos (2002), Velho Logan (2008) e Kick-Ass (2008), os três escritos por Mark Millar; O Sentinela (2005) por Brian Michael Bendis; e Halcyon (2010) por Marc Guggenheim e Tara Butters.
Por sua vez, o poser-herói, caracteriza o falseamento dos modelos heroico/super- heróico, ou seja, ele ou ela possui super-poderes, traja vestes heroicas, mas não compartilham do mesmo código moral heroico/super-heróico e tampouco agem como tal. Assim, o poser-herói finge ser alguém que realmente não é, a despeito de suas elaboradas tentativas visuais, linguísticas e comportamentais de tentar parecer como se fosse. Sua relação é ambivalente, pois oscila entre a admiração e a aversão acerca da figura heroica/super-heróica e seu legado.
Exemplos de poser-heroísmo são: algumas fases alternadas do Gladiador Dourado (1986) que antecederam sua participação na saga Contagem Regressiva para a Crise Infinita; o Conglomerado (1990), por Sprouse, Dematteis e Giffen; as personagens Ashley (Mulher-Aranha), Justiceiro e Demolidor, todos na saga O Velho Logan; diversas versões alternativas hipsters dos descendentes dos principais super-heróis e vilões do universo DC, no episódio The Just, da saga Multiversity (2014), por Grant Morrison; vários personagens na saga O Legado de Júpiter (2013), por Mark Millar; a jovem equipe na saga Danger Club (2015), por Eric Jones e Landry Q. Walker.
De tempos em tempos, a sociedade apresenta algum tipo de mudança cultural significativa ou ainda, subgrupos transformam radicalmente seu padrão comportamental, de uma maneira que ainda não pode ser classificada pela terminologia crítica vigente. Assim ocorre no campo das revoluções científicas e no âmbito das ações afirmativas, na área dos direitos humanos, etc. A dinâmica é invariavelmente a mesma: primeiro é criada provisoriamente uma nova perspectiva ou novo padrão atitudinal (de linguagem ou ação). Esse ineditismo gera uma demanda, ou seja, o novo fenômeno já existente precisa ser nomeado, pois é fato incontestável que o mesmo passou a integrar a realidade. Assim, surgem novos termos para designar algo cuja existência é irreversível.
Similarmente, no campo das histórias em quadrinhos, quando surgiram a Patrulha do Destino (1963), Conan (1970), Red Sonja (1973), Justiceiro (1971), Homem-Coisa (1971), Monstro do Pântano (1971), OMAC (1974) e Wolverine (1974), só citar alguns exemplos, eles foram considerados anômalos porque não podiam ser classificados literalmente como heróis/super-heróis ou vilões/supervilões. Entretanto, como essa era a terminologia disponível na época, eles foram incomodamente conformados ao rigor estrito dessa nomenclatura dualista e que já indicava sinais de esgotamento e exaustão. Posteriormente, nas décadas subsequentes, com a inserção da subcategoria do anti-heroísmo, eles foram devidamente compreendidos e assimilados pela historiografia da arte sequencial. Da mesma forma, atualmente, muitos over-heróis e poser-heróis ainda são chamados de anti-heróis por falta de uma denominação adequada. A proposição das duas referidas subcategorias consiste numa alternativa para lidar com situações como essa, pois conforme acreditamos, a nona arte seguirá com a intensa produção de novos personagens que também não poderão ser definidos como anti-heróis (e, futuramente, nem como over-heróis ou poser-heróis).
Diante do exposto, da mesma forma que o gênero do heroísmo nos quadrinhos amealhou infinitas possibilidades temáticas com a gênese do super-heroísmo, posteriormente, o super-heroísmo também expandiu consideravelmente suas fronteiras temáticas a partir do advento do anti-heróismo. Assim, nessa mesma linha de raciocínio, sustentamos que as circunvoluções paradigmáticas estão longe de encerrar seu ciclo criativo e que, por isso, as novas subcategorias do over-heroísmo e do poser-heroísmo, representam uma modesta, porém relevante contribuição para esse fértil campo de estudos, pesquisas e produção de experiências teóricas, práticas e poéticas no âmbito das histórias em quadrinhos.