Por Nayara Barros – professora de Filosofia

 

Borges disse que é impossível ler, senão reler. O escritor argentino teve um período relativamente curto para reler, se admitíssemos que só se lê com os olhos: ficou cego aos 55 anos, tendo vivido até os 89. Ampliando um pouco a sua afirmação, posso reforçá-la dizendo que sim reler é um exercício fundamental, mesmo que sem os olhos. Borges relia com a memória e com o restante do corpo em ação no mundo, tendo viajado bastante. Eu, por acaso, releio também a partir dos pés. Pelo menos é o que andei concluindo desse meu percurso de 32 anos andando pelas ruas da cidade de Teresina, no Piauí.

Não tenho carro. Uso, mas não gosto do transporte público da cidade, que serve alegremente de carrasco da população, especialmente em tempos de b-r- ó -bró. Maltrata e mal conduz onde precisamos ir. Contudo, esse ensaio não é sobre transporte público, apesar dele ter sido peça fundamental da minha constante releitura sobre a cidade de Teresina.

Em meio ao chacoalhar do ônibus, em caminhos ordinariamente repetitivos desde os tempos de escola, os meus pés conduziram o meu olhar à medida que o tempo passava. Se quando eu era criança, acompanhada da minha mãe e dos meus irmãos, importava ver da janela as fontes da Frei Serafim e o rio Parnaíba, quando adolesci pude refazer esses caminhos sozinha e começar a expandir minhas sensações e pensamento sobre a cidade, ponto de partida para o mundo que eu conhecia pelos livros que estudava.

Eu fui uma criança e uma adolescente tímida, o que eu suspeito que tornou a experiência de solitude enriquecida (talvez em alguns pontos hipertrofiada) naquele meu caminhar um tanto quanto forçado. Caminhava da escola, no bairro ilhotas, até a parada de ônibus na Frei Serafim, ou suspirava chateada por ter que caminhar mais um pouco de lá até próximo da igreja São Benedito, porque havia perdido o ônibus- na tentativa de alcançar um outro.

No final da adolescência, fui presenteada com mais uma expansão do meu mundo geograficamente vivido: a zona leste e um outro lado da zona norte- o que eu não morava. O Universidade Circular me propiciou um outro tipo de vivência da cidade. Ele me (re)apresentou a pobreza da região mais tradicional da cidade, Poti, São Joaquim, Matadouro e Pirajá, simultaneamente ao isolamento da região mais nobre, a até então quase desconhecida: Ininga, Jóquei, Fátima. Foram anos experenciando com quem eu observava, a dinâmica da cidade e do mundo, a partir dos usuários dos ônibus e dos moradores dos bairros da cidade. Desde então meus pés procuraram sempre esmiuçar cada vez mais o que o percurso do ônibus me sinalizava.

E sempre foi incrível me permitir ser atravessada com o que lia nos livros e o que via do meu mundo. Muitas vezes coincidia, outras vezes me deixava com uma certa suspeita, que mais adiante se apresentava como um nó que, caso eu conseguisse desatar, desdobrava inúmeros caminhos outros, que eu ainda não havia pisado.

Em todos esses anos de deslocamento por exigência da vida, eu jamais fiz o mesmo caminho nessa cidade. Ela me perturbou a existência desde muito nova e me provocou a partir de suas dicotomias, tão óbvias para quem lhe sente sob os pés: seca e chuva, miséria e ostentação, amor e ódio, amizade sincera e bajulação, exploração e resistência, violência e acolhimento, espiritualidade e manipulação, criação e morte. Em todos esses anos, Teresina foi o meu grande tema de pensamento. Ela capturou meu corpo em percursos aparentemente repetitivos, mas que, de fato, são meu ponto de partida para começar a perceber e apontar o que surge do meio dos escombros do fantasma do século passado, cuja poeira termina de baixar. Se leio europeus, estadunidenses e mesmo brasileiros como exigência do doutorado que faço, é do chão de Teresina que meus questionamentos se alimentam. Essa terra dura e de excelentes exemplares de gentes difíceis e de gentes queridas, uma pura potência que se revela quando se tem a paciência de passar muitas e muitas vezes pelo mesmo caminho. As reflexões sobre o Mundo que trarei, fazendo companhia aos parceiros de coluna B-R-Ó-BRÓ, terão como pano de fundo o meu telurismo irremediável, meu leitmotiv. A cidade de Teresina e o estado do Piauí me parecem ser os melhores antídotos para um saber que costuma ser acusado de se refugiar em uma torre de marfim ou de se perder no meio das nuvens.