Por André Henrique M. V. de Oliveira

 

Conta-se que certa vez o filósofo Wittgenstein interpelou uma colega pelos corredores de Cambridge e lhe perguntou: “por que será que durante muito tempo a humanidade acreditou que o sol girava ao redor da Terra?” Ao que ela teria respondido: “provavelmente, porque é assim que nos parece”. No entanto, a imaginação do filósofo não se satisfez e ele lançou nova pergunta: “Como seria se parecesse o contrário? Se parecesse que era a Terra girando em torno seu próprio eixo?”

Nem tudo é o que parece, mas os olhos não enganam. De onde vem o erro, então? Resposta: não dos olhos, mas do juízo que fazemos. É instigante notar como a linguagem “comum”, fonte da qual tiramos a maioria dos nossos juízos acerca do mundo, é um campo invisível no qual estamos imersos. É preciso ter um mínimo de curiosidade e uma atenção de caçador para desatar alguns nós do pano em que essa linguagem comum é urdida. Por isso o bom filósofo é sempre um cara desconfiado. “Como poderia uma coisa ter sua origem em seu contrário? Por exemplo, a verdade no erro? A ação desinteressada no egoísmo?”, perguntou um poeta da suspeita chamado Nietzsche.

O germe da contradição está sempre ali. A política e a sociedade brasileiras são exemplos emblemáticos disso. A esquerda “nutella” do PT, com seu medo de transformação radical e sua pretensão de agradar a dois (ou dez) senhores, deu origem à onda protofascista do governo atual, que quer fazer em 17 segundos uma transformação ultra neoliberal com a pretensão de agradar somente a si, isto é, a eles: homens, brancos, ricos, héteros, bois, balas e bíblias (mal traduzidas). A aspiração por justiça social efetiva só durou até a frágil bolha de sabão da economia do país estourar – e agora aguardamos pela guerra civil que o “nosso” presidente diz ser a solução para o país.

A política brasileira, em todos os níveis que compõem esse “estamento burocrático”, para usar a designação de Faoro, cria e alimenta os problemas sociais e depois se vende como a solução para os mesmos. O que faz um político senão propor soluções? Para isso é preciso que existam problemas. Ou seja, no fundo os políticos brasileiros (falo especificamente dos que fazem disso uma profissão hereditária e fisiologicamente garantida) sobrevivem dos problemas que prometem solucionar. O populismo da fome ajudou Lula a se eleger. O populismo do medo, do ódio e da violência foi determinante para a vitória de Bolsonaro, e consequentemente para a derrota do bom senso, já que o medo e a aversão ao diferente adoecem a racionalidade. A estratégia agora é: quanto mais desigualdade e injustiças sociais, mais “marginais”, mais violência. Quanto mais violência, melhor para um governo “machão”, que vai combater a violência com violência e perseguir os supostos inimigos da pátria, e para os programas policiais na tv, que também precisam que exista violência e medo (sem o que eles não teriam qualquer audiência). Em resumo: quando falta educação, sobra violência. Bibliotecas vazias, presídios lotados.

Outro exemplo é o recente (na verdade, antigo) ataque à filosofia e às ciências humanas – o chute não no gato, mas no cachorro de Schrödinger, que morde sem latir e vive morto. Esse ataque é necessário. Não pelos motivos aludidos, não pela “possibilidade de ir para o Japão num cargueiro do Lloyd lavando o porão”, mas talvez porque os estudantes precisem de um puxão de orelha. É o germe da contradição que atua mais uma vez. Neste momento, bem mais do que nos últimos dez anos, é hora dos estudantes e profissionais da área (educadores, escritores, docentes, etc.) mostrarem porque “meia dúzia de homens inteligentes assusta mais do que uma multidão de ignorantes”, como disse Aristócles (vulgo Platão). A filosofia e as ciências humanas passaram por um período de relativa cidadania no currículo escolar, e se acomodaram. Agora que estamos no período de anti-intelectualismo e fake news elas se veem ameaçadas. Mas, no veneno está o antídoto: é preciso aproveitar a adversidade para se fortalecer. Então, maninho e maninha de humanas, enfrentemos com coragem mais essa. Ao lado de todos os problemas estruturais que já existem na área da educação (baixos salários, infraestrutura ruim, falta de valorização profissional, etc.) teremos que mostrar para esses imbecis, nem que seja de forma inconveniente, que “um país se faz com homens e livros”, e que o sol não se põe – é a Terra que gira. Estudemos. Trabalhemos. Lutemos.