Wellington Soares

Coisas e outras

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4 histórias breves

Consciência de classe

A vida naquela casa luxuosa era tudo o que ela tinha pedido a Deus. E graça ao amor de seu Fabrício, um setentão carinhoso e de mão aberta, as coisas para ela tinham mudado radicalmente. Ontem, a zona e a comercialização das carícias. Hoje, o conforto e a segurança do lar. Mas, com o passar dos dias, a inquietação foi apoderando-se dos olhos meigos da rapariga. A casa, antes espaçosa, tinha ficado pequena demais para o tráfego de suas dúvidas. Nada mais a satisfazia ali. Até mesmo os antigos palavrões sussurrados ao pé do ouvido, por seu Fabrício, não provocam mais arrepios. Não pensou duas vezes. Abandonou o sossego do monopólio capitalista pela socialização das coxas e gozos, na zona.

Cicatrizes da beleza

Tenho uma filha com cicatrizes horríveis no rosto. A navalha cortou fundo sua tez morena. Ela explicou que fez isso porque os homens só viam nela apenas a beleza física, ignorando sua beleza interior, mais importante segundo sua opinião. Mas agora, quando homem nenhum lhe dirige sequer um olhar, ela fica triste, num choro extremamente penoso. Eu, como pai, estou com as mãos completamente atadas, pois não sei como proceder para acalmar o sofrimento de milha filha. Afinal, o que se faz quando se tem uma filha com extraordinária beleza interior e nenhum homem é capaz de perceber isso?

Descanso na loucura

Amar é bom, pensou Isaura, difícil é não ser correspondida. Ainda mais por se tratar de um amor platônico, daqueles que se curte à distância, sem o dito cujo sequer desconfiar. Quem mandou se apaixonar logo por Benjamim, diretor da escola de línguas e com idade de ser seu pai. Mais grave ainda, esposo da professora de inglês, a quem adorava. O coração da gente, falava pra si, sempre aprontando belas surpresas.  Mas quem pode domá-lo quando a paixão surge inesperada e devastadora? Agora era sangrar calada, no cantinho da sala, suspirando quando ele aparecia para dar algum aviso. Nem para a melhor amiga, a quem confessava quase tudo, podia abrir o jogo. Ficava apavorada com a ideia de alguém saber e espalhar para todo mundo. As redes sociais viviam guilhotinando vidas e reputações. Diante do precipício, agarrava-se, buscando acalmar seu desassossego interior, à tirada genial do mestre Guimarães Rosa: “Qualquer amor já é um pouquinho de saúde, um descanso na loucura.”

Deixe de frescura!

Dava pena ver o “velho” naquela situação, triste e perdido, depois que mamãe resolveu trocá-lo por outro. Nem parecia o mesmo homem de antes, feliz com a vida e dono do próprio destino. Agora vivia trancado no apartamento e excluído do convívio social, sem querer conversar com ninguém. Morria de vergonha de todos, ainda mais dos amigos, que zombavam de sua cara por trás. No íntimo, eu tinha medo que meu pai fizesse uma besteira, matando os dois num típico crime passional. Não esqueçamos que a mão que afaga, como expressou certo poeta, é a mesma que apedreja. Quando menino cheguei a pensar, tomado de ingenuidade, que o amor deles estava impregnado de eternidade. Mas não suportando vê-lo arrasado daquela maneira, já por uns três anos, o jeito foi espantar de vez tamanha covardia: “Deixe de frescura, paizão, levante essa bunda do sofá e procure outra mulher, produto bastante farto em Teresina”.  Não tardou muito para a felicidade aparecer outra vez naqueles olhos tímidos.

Noite frienta e musical

Numa dessas noites, o frio chegou lá em casa, na ladeira do Uruguai, mais alegre e convidativo do que nunca. Como se quisesse, no fundo, me recompensar pelos transtornos do calorzão da tarde. Daqueles de matar, de fritar miolos até na sombra, acabando de vez com o nosso reduzido estoque de paciência. A natureza tem, felizmente, dessas coisas: castiga impiedosamente durante o dia, mas à noite acaricia com delicadeza. Na hora da reconciliação, como naquele momento de lua cheia, nada melhor que uma rede na varanda, sem falar de um cobertor cheiroso e quentinho. Para aquecer o peito, umas duas ou três taças de vinho, tomadas devagar e saboreadas com prazer. A música, que aquieta o sentido de meus erros, escorre pelo ambiente ocupando vazios, embalando sonhos, sobretudo, quando dou ouvidos à produção local, de melodias e letras extraordinárias, já tatuadas na pele e nos ossos da gente, tanto as de ontem como as fresquinhas de agora, mais recentes.

 Abro o repertório com Morena, um clássico do cancioneiro piauiense, de autoria do grande Naeno, um dos mais talentosos compositores da terrinha, ouvindo estes versos iniciais que costumam emocionar a cachola: “Olha, morena / se você quiser que eu seja / um homem livre / pra poder te merecer / eu rompo já todos os laços que me prendem / e nos teus braços vou cair como pingente”. Dele também, aproveito para assuntar Incelença, em parceria com Climério Ferreira, música que dá vontade de repetir um montão de vezes, de tão gostosa de boa. Fechando os olhos, e em paz comigo e o mundo, viajo espiritualmente no CD Entre nós, produzido por ele e um grupo de músicos da melhor qualidade, quando sou tomado por um forte sentimento de amor e agradecimento ao Homem lá de cima, bem como aos daqui de baixo, em especial a esses que foram capazes de fazer coisas tão belas e arrebatadoras.

Outra que boto sempre para tocar é Quando a gente quer, do Edvaldo Nascimento, um rock maneiro, feito a quatro mãos com Machado Júnior, que celebra a paixão repentina por alguém muito especial, dando uma vontade lascada de lhe sapecar milhões de beijos na boca apetitosa: “Dentes e língua / língua nos dentes / morrendo à míngua / quando a gente quer / a gente sente”. Mas de todas, a que dele mais curto e mexe fundo comigo é Poemas e carícias, com letra de Cruz Neto, evocando as corajosas lutas políticas na Ufpi, quando a estudantada universitária gritávamos pelo fim da ditadura militar. Em coro bonito de lembrar até hoje, com três a quatro mil vozes, soltávamos as gargantas com paixão e revolta: “A tua presença / me deixa assim legal / desde os tempos da universidade / enquanto a rapaziada / discutia a conjuntura nacional / eu e você / trocamos mil beijinhos / no meio da greve geral / meu amor / a UNE nos uniu / e fomos pra um motel / e eu te fiz poemas e carícias / e você cheia de malícia / cobriu meu corpo de mel”.

Das muitas guardadas no peito, uma não pode faltar de jeito nenhum, nem que a vaca tussa, até porque traz um pedacinho do litoral para dentro de mim, a envolvente Pedra do Sal, uma composição e tanto de Teófilo Lima, que deixamos tocar infinitamente como a querer mergulhar e não sair nunca daquele marzão azul de meu Deus: “Ouvi dizer de uma bela ilha / de um pedaço pedra do sal / com tesouros escondidos e um farol / pedaço de uma maravilha líquida / se debatendo contra a pedra / e o sol fazendo desse casamento o sal. / Assim se fez / Assim nasceu Pedral”.  De seu primeiro CD, não canso de escutar também A volta do Zorro, Beijos e cacos e a danada de linda Compreendi. Do segundo trabalho, vem o refrigério para o desassossego da alma no belíssimo blue de Flores e línguas e no eletrizante remix de Cabeça de Cuia.

Mas como deixar de ouvir, criatura, em noite frienta e marcante, o somzaço da Validuaté, banda que nos faz levitar de tanta emoção, o talento escorrendo em suas letras e sonoridades, a exemplo de A onda, com “teu cheiro agorinha veio e me acertou em cheio/ e me completou o vazio no peito/ que não se aguentava mais de te querer/ de novo, aqui e assim pra sempre”. E o que dizer da versão que fizeram do grande sucesso de Márcio Greyck, Eu preciso é de você, levando as novas gerações (e as velhas também) a cantarolar o inesquecível estribilho da canção: “Por que, todo mundo precisa de alguém?/ E eu preciso é de você./ Pra comigo andar e para me entender/ Eu preciso é de você/ Pra continuar e pra não me perder”.

Nessa altura do campeonato, já completamente embriagado de sensações e linguagens acústicas, deixo as músicas galoparem livres na vastidão de minhas reminiscências: Freak lagarta, de Mirton e Galvão; O peru rodou, de Maria da Inglaterra; Bem melhor, da Mano Crispin; Espelho, da banda Acesso; Maquetes loucas, da Narguilé Hidromecânico; Passado, de Erisvaldo Borges; Poemeto Erótico, de Os Caipora, em cima de texto de Manuel Bandeira; Agora é tarde, de Lázaro do Piauí; Brasileiro, de Machado Júnior eCaleidoscópio, de Wilker Marques. Mas de todas, digo e não peço segredo, a que me faz sangrar é Coração sem jeito, de Roraima e Paulo Moura, cantada na voz suave e terna de Ronaldo Bringel. Diante dessa estupenda fartura melódica, as dores da vida perdem importância, lamentável apenas nem todos terem se tocado ainda para o nosso riquíssimo cancioneiro musical. Até quando?

 

 

Domínio público

Quem gosta de boas notícias na entrada de ano novo, esta não poderia ser mais alvissareira: Macunaíma, de Mário de Andrade, texto fundamental da ficção nacional, entrou em domínio público no início deste mês. Qual o significado de tal fato, cara pálida, deve alguém indagar? Simples, o livro poderá ser copiado, xerocopiado, reproduzido e adaptado livremente por qualquer pessoa. E o que é melhor, sem restrições ou necessidade de autorização e pagamento de direitos autorais. Isso ocorre porque, no Brasil, as obras ficam livres no 1º dia do ano seguinte em que se completam 70 anos da morte do autor – Mário faleceu em fevereiro de 1945. O restante de sua obra está liberado também, incluindo os vários livros de poesia, romance, carta e ensaio, merecendo destaque ainda Pauliceia desvairada e Amar, verbo intransitivo, textos consagrados de nosso modernismo.

Macunaíma 1Um dos líderes do movimento que revolucionou a cultura brasileira em 1922, através da Semana de Arte Moderna, realizada no Teatro Municipal de São Paulo, Mário de Andrade era um escritor de rara sensibilidade e um homem apaixonado pelo seu país. O legado da obra produzida é imenso, abrangendo da literatura à música, passando pela filologia e desaguando no estudo das tradições populares. Mas de todos os livros lançados, são as peripécias de Macunaíma que conquistam o imaginário dos leitores. Não à toa, pois as histórias do lendário “herói sem nenhum caráter” nos deixam bastante comovidos. Ele é filho de índios, mas nasce preto retinto e depois vira branco, síntese de nossa miscigenação. Desde cedo faz coisas de sarapantar, a começar passando mais de seis anos sem falar, decepando cabeças de saúvas, bolinando as cunhãs, cuspindo na cara dos marmanjos, mijando na mãe, dando pra ganhar dinheiro e, como se não bastasse, “brincando” com as cunhadas. Para enganar os outros, desde novo criou um bordão que o acompanharia ao longo da vida: “Ai! que preguiça!”.

Após a morte da mãe, que ele mesmo provocara, Macunaíma parte com os irmãos Maanape e Jiquê para conhecer o mundo. Nessas andanças, conhece Ci, guerreira amazona com quem casa, tornando-se Imperador do Mato Virgem, de quem ganha a muiraquitã, pedra mágica que proporciona fortuna. Ao perder o amuleto, que cai nas mãos do mascate peruano Venceslau Pietro Pietra, nosso herói parte para São Paulo a fim de recuperá-la. Para tanto, recorre a várias artimanhas até derrotar o Gigante Piaimã, comedor de gente – macumba, disfarce de francesa, engolir sapos -, resgatando o talismã recebido da saudosa Ci, falecida logo depois da perda do filho. Missão cumprida, Macunaíma volta à Amazônia, deparando-se com o fim do seu povo, a tribo Tapanhumas. Por desavenças com os irmãos, provoca a morte deles, ficando sozinho no mundo.

Num dia de calor insuportável, ele vai tomar banho na lagoa quando, seduzido pela Uiara, que se faz passar por uma cunhã muito bonitinha e fogosa, tem a perna e outras partes do corpo devoradas, numa vingança torpe da Vei, a sol, pelo simples fato de o nosso herói não ter casado com uma de suas filhas. Para completar, ainda perde a muiraquitã novamente. Sentindo-se muito sozinho e triste, bem como sem ter ninguém com quem “brincar”, Macunaíma parte para o céu e, chegando lá, depois de perambular de porta em porta, é transformado por um amigo na constelação Ursa Maior: “É mesmo o herói capenga que de tanto penar na terra sem saúde e com muita saúva, se aborreceu de tudo, foi-se embora e banza solitário no campo vasto do céu”.

“E num sofrer de gozo entre palavras”‏

Quando me perguntam se é interessante consumir a literatura erótica, respondo que não vejo problema nenhum. Desde que se leia, parafraseando Oswald de Andrade, com olhos livres. A cultura para ser bem digerida, aliás, costuma dispensar todas as formas de preconceito e moralismo. Sem falar, é óbvio, de qualquer pretexto que nos remeta à censura e ao patrulhamento artístico. Depois de certa idade, parece até brincadeira ou provocação uma instituição ou alguém determinar o que devemos ler ou não. Como pássaros, queremos voar longe, descobrindo novos horizontes e possibilidades infinitas. A maldade, como se sabe, existe somente na cabeça das pessoas, principalmente daquelas que abdicam do livre arbítrio e não acreditam na felicidade. Para quem ler bula de remédio, nada mais excitante do que correr os olhos por umas histórias mais envolventes e sedutoras. A maçã, desde sempre, despertou em nós um grande e saudável apetite.

casa-dos-budas-ditosos-joao-ubaldoDos textos lidos, merece destaque o estupendo A Casa dos Budas Ditosos, do escritor João Ubaldo Ribeiro, relato sincero e provocante da vida sexual de uma mulher de 68 anos, que, dentre outras experiências vividas, confessa ter tido como melhor amante o próprio irmão, a quem amou secreta e desesperadamente. “O único que soube ser tudo”, segundo ela, “macho, puto, fêmea, descarado, sádico, masoquista, mentiroso, verdadeiro, lindo, feio, disposto, preguiçoso, lindo, lindo, lindo, lindo, meu irmão Rodolfo”. Adaptado para o teatro em forma de monólogo, a peça ainda hoje é encenada no país. O público que assiste ao espetáculo vai ao delírio com as estripulias da senhora devassa, interpretada nos palcos pela talentosa atriz Fernanda Torres. João Ubaldo conseguiu nessa obra, com a mesma verve de Gregório de Matos e Jorge Amado, outros dois autores baianos que abordaram também o erotismo, falar de sexo sem tabu nem preconceito. E o melhor, com bastante humor. Texto simplesmente imperdível. Quanto ao monólogo, tomara que chegue por aqui um dia.

Outro livro muito interessante, que tem arrebatado não só leitores italianos como do mundo afora, é Cem Escovadas Antes de Ir para a Cama, da jovem siciliana Melissa Panarello. Cem escovadas antes de ir para a camaNa obra, escrita em forma de diário, ela relata as suas precoces e surpreendentes experiências no campo sexual, quando era apenas uma pura adolescente entre 15 e 16 anos. Em sua busca desenfreada pelo verdadeiro amor, Melissa se doa integralmente aos homens em práticas nada convencionais, transitando do sexo em grupo ao sadomasoquismo. Daí sempre em casa, ao retornar dessas prazerosas e frustradas aventuras, escovar sucessivamente os belos cabelos antes de dormir, num sofrido ritual de purificação. A tão almejada cara metade surgiu quando menos ela esperava, através de um simples e comovido olhar: “Estou chorando, diário, chorando de tanta alegria. Eu sempre soube que a alegria e a felicidade existiam. Algo que busquei em tantas camas, em tantos homens, até numa mulher, que procurei em mim mesma e depois perdi por minha própria culpa. E no lugar mais anônimo e mais banal eu encontrei. E não em uma pessoa, mas no olhar de uma pessoa”. Adaptado recentemente para o cinema, a película ficou aquém do texto literário.

Mas foi uma respeitada crítica de arte francesa, Catherine Millet, que publicou uma das obras mais polêmicas nesse gênero, ao tornar público os detalhes de sua movimentada vida sexual, marcada pela quantidade inacreditável de relações físicas com homens e, eventualmente, mulheres. Nesse relato, apresentado com inédita crueza e sem qualquer máscara, ela expõe o sexo desvinculado de laços afetivos, como plena realização de uma necessidade instintiva da carne, ao escrever: “Contentava-me em descobrir que este desfalecimento voluptuoso, experimentado no contato com a inefável doçura de todos os lábios estranhos ou quando uma mão se colava em meu púbis, podia se renovar infinitamente, pois confirmava que o mundo estava cheio de homens dispostos a isto. catherine-mO resto me era indiferente”.  Livro extraordinário e bem escrito esse, A Vida Sexual de Catherine M., no qual uma intelectual não tem pudor de se assumir como libertina, encarando o amor físico com a mesma naturalidade com que respira.

Destacaria ainda, na impossibilidade de mencionar todos, mais outros dois: O Doce Veneno do Escorpião, o best-seller de Bruna Sufistinha, e Amor Natural, do nosso consagrado Carlos Drummond de Andrade. No primeiro, temos as confidências de uma garota de programa de classe média que, ao deixar o conforto do lar, acaba caindo na “vida”, praticando sexo em troca de dinheiro e droga. Obra que revela o submundo da prostituição nas grandes cidades e que, nas lacradas páginas pretas, desvenda as taras do homem brasileiro. O título poético é um irrecusável convite à leitura. Quanto ao segundo, livro que o poeta itabirano só permitiu fosse lançado após a morte, receio de ser taxado de velho sátiro ou pornógrafo, encontramos belos poemas eróticos que, em linguagem desnuda, abordam o sexo como manifestação sublime do amor, expressa logo no texto que inicia a obra: “Amor – pois que é palavra essencial / comece esta canção e toda a envolva. / Amor guie o meu verso, e enquanto o guia, / reúna alma e desejo, membro e vulva”.  O doce veneno do escorpião

Mãos grávidas

Em termos de masturbação, pensei que já tivesse ouvido tudo, menos que seus praticantes, após a morte, teriam mãos grávidas. Foi o que sentenciou Mucahid Cihad Han, um extremista muçulmano, em programa ao vivo de TV. E ainda falam que ninguém supera os escritores em imaginação. Esses a utilizam, pelo menos, a fim de entreter seus leitores, criando um mundo mágico; enquanto os fundamentalistas religiosos, por razões absurdas, a impregnam de terrorismo, incapazes de encarar os desejos como algo natural. Até que a cena seria engraçada, convenhamos, o céu repleto de mãos barrigudas daqueles que aprontaram bastante com os cinco dedos por aqui. Marcados por pecado tão vil – difícil de negar – talvez a saída fosse relaxar e gozar, acatando sugestão da ex-ministra Marta Suplicy.

Os mitos espalhados outrora, notadamente pela igreja católica, não eram tão diferentes. Todos eles exageravam no medo a fim de coibir a prática solitária do sexo, mesmo quando a medicina reconheceu o onanismo como exercício saudável para o corpo e a mente. Mas quem não lembra os horrores espalhados na infância e adolescência dando conta do pecado mortal que a masturbação representava. Um desses chegava a afirmar que levava a perda do juízo, seu praticante doido de dar pena. Outro já dizia que nascia pêlo nas mãos, expondo a pessoa ao escárnio público. Tinha o que espalhava a acne e a palidez como sintomas inconfundíveis do deslize libidinosos, obrigando o jovem a andar de cabeça baixa. O mais terrível de todos, sem dúvida, garantia que seus adeptos perderiam a mão, aleijados de vez.

A repressão por motivos morais e religiosos surgiu com o advento da cultura judaico-cristã no Ocidente, uma vez que a masturbação antes era vista num misto de ato natural e prática salutar. Há registros que na Grécia Antiga, de moralidade sexual muito livre, a punheta, nome popular que recebe no Piauí, era encarada sem nenhum tabu, costume usual entre homens e mulheres. Já os Maias faziam questão de – além de a cultivarem no cotidiano – desenharem esses rituais em pedras que são encontradas em ruínas até hoje. A rigor, o grande medo por trás de tudo isso se chama prazer, a descoberta do gozo, o temor das pessoas encontrarem o caminho da felicidade no toque do próprio corpo, ao invés da incerteza de um paraíso.

Talvez fosse recomendável o radical mulçumano, bem como os que falam em nome de Deus, ler o Auto da barca do inferno, de Gil Vicente, tido como o “pai” do teatro português. Na peça, quase todos, exceto o Parvo (louco), são desmascarados em sua hipocrisia e levados à fogueira do inferno. Ainda mais quando agora estão envolvidos com pedofilia e enriquecimento à custa da boa fé dos fiéis. O troco às “mãos grávidas” aparece bonito em versos bem humorados de um poeta desconhecido: “Entre quatro paredes do meu teto / sufocando um desejo reprimido / sinto-me por falta de afeto / um escravo do sexo proibido / faço a imagem do corpo despido / deixar o meu ego mais quieto / ligo forte o chuveiro e vou direto / ao ponto sensível da libido / quando a mão oscilante intensifica / a saliva amornada lubrifica / o envolto do órgão genital / e após cada sessão de fantasia / reconheço que fiz com quem queria / a melhor relação sexual”.