Consciência de classe
A vida naquela casa luxuosa era tudo o que ela tinha pedido a Deus. E graça ao amor de seu Fabrício, um setentão carinhoso e de mão aberta, as coisas para ela tinham mudado radicalmente. Ontem, a zona e a comercialização das carícias. Hoje, o conforto e a segurança do lar. Mas, com o passar dos dias, a inquietação foi apoderando-se dos olhos meigos da rapariga. A casa, antes espaçosa, tinha ficado pequena demais para o tráfego de suas dúvidas. Nada mais a satisfazia ali. Até mesmo os antigos palavrões sussurrados ao pé do ouvido, por seu Fabrício, não provocam mais arrepios. Não pensou duas vezes. Abandonou o sossego do monopólio capitalista pela socialização das coxas e gozos, na zona.
Cicatrizes da beleza
Tenho uma filha com cicatrizes horríveis no rosto. A navalha cortou fundo sua tez morena. Ela explicou que fez isso porque os homens só viam nela apenas a beleza física, ignorando sua beleza interior, mais importante segundo sua opinião. Mas agora, quando homem nenhum lhe dirige sequer um olhar, ela fica triste, num choro extremamente penoso. Eu, como pai, estou com as mãos completamente atadas, pois não sei como proceder para acalmar o sofrimento de milha filha. Afinal, o que se faz quando se tem uma filha com extraordinária beleza interior e nenhum homem é capaz de perceber isso?
Descanso na loucura
Amar é bom, pensou Isaura, difícil é não ser correspondida. Ainda mais por se tratar de um amor platônico, daqueles que se curte à distância, sem o dito cujo sequer desconfiar. Quem mandou se apaixonar logo por Benjamim, diretor da escola de línguas e com idade de ser seu pai. Mais grave ainda, esposo da professora de inglês, a quem adorava. O coração da gente, falava pra si, sempre aprontando belas surpresas. Mas quem pode domá-lo quando a paixão surge inesperada e devastadora? Agora era sangrar calada, no cantinho da sala, suspirando quando ele aparecia para dar algum aviso. Nem para a melhor amiga, a quem confessava quase tudo, podia abrir o jogo. Ficava apavorada com a ideia de alguém saber e espalhar para todo mundo. As redes sociais viviam guilhotinando vidas e reputações. Diante do precipício, agarrava-se, buscando acalmar seu desassossego interior, à tirada genial do mestre Guimarães Rosa: “Qualquer amor já é um pouquinho de saúde, um descanso na loucura.”
Deixe de frescura!
Dava pena ver o “velho” naquela situação, triste e perdido, depois que mamãe resolveu trocá-lo por outro. Nem parecia o mesmo homem de antes, feliz com a vida e dono do próprio destino. Agora vivia trancado no apartamento e excluído do convívio social, sem querer conversar com ninguém. Morria de vergonha de todos, ainda mais dos amigos, que zombavam de sua cara por trás. No íntimo, eu tinha medo que meu pai fizesse uma besteira, matando os dois num típico crime passional. Não esqueçamos que a mão que afaga, como expressou certo poeta, é a mesma que apedreja. Quando menino cheguei a pensar, tomado de ingenuidade, que o amor deles estava impregnado de eternidade. Mas não suportando vê-lo arrasado daquela maneira, já por uns três anos, o jeito foi espantar de vez tamanha covardia: “Deixe de frescura, paizão, levante essa bunda do sofá e procure outra mulher, produto bastante farto em Teresina”. Não tardou muito para a felicidade aparecer outra vez naqueles olhos tímidos.