Numa dessas noites, o frio chegou lá em casa, na ladeira do Uruguai, mais alegre e convidativo do que nunca. Como se quisesse, no fundo, me recompensar pelos transtornos do calorzão da tarde. Daqueles de matar, de fritar miolos até na sombra, acabando de vez com o nosso reduzido estoque de paciência. A natureza tem, felizmente, dessas coisas: castiga impiedosamente durante o dia, mas à noite acaricia com delicadeza. Na hora da reconciliação, como naquele momento de lua cheia, nada melhor que uma rede na varanda, sem falar de um cobertor cheiroso e quentinho. Para aquecer o peito, umas duas ou três taças de vinho, tomadas devagar e saboreadas com prazer. A música, que aquieta o sentido de meus erros, escorre pelo ambiente ocupando vazios, embalando sonhos, sobretudo, quando dou ouvidos à produção local, de melodias e letras extraordinárias, já tatuadas na pele e nos ossos da gente, tanto as de ontem como as fresquinhas de agora, mais recentes.

 Abro o repertório com Morena, um clássico do cancioneiro piauiense, de autoria do grande Naeno, um dos mais talentosos compositores da terrinha, ouvindo estes versos iniciais que costumam emocionar a cachola: “Olha, morena / se você quiser que eu seja / um homem livre / pra poder te merecer / eu rompo já todos os laços que me prendem / e nos teus braços vou cair como pingente”. Dele também, aproveito para assuntar Incelença, em parceria com Climério Ferreira, música que dá vontade de repetir um montão de vezes, de tão gostosa de boa. Fechando os olhos, e em paz comigo e o mundo, viajo espiritualmente no CD Entre nós, produzido por ele e um grupo de músicos da melhor qualidade, quando sou tomado por um forte sentimento de amor e agradecimento ao Homem lá de cima, bem como aos daqui de baixo, em especial a esses que foram capazes de fazer coisas tão belas e arrebatadoras.

Outra que boto sempre para tocar é Quando a gente quer, do Edvaldo Nascimento, um rock maneiro, feito a quatro mãos com Machado Júnior, que celebra a paixão repentina por alguém muito especial, dando uma vontade lascada de lhe sapecar milhões de beijos na boca apetitosa: “Dentes e língua / língua nos dentes / morrendo à míngua / quando a gente quer / a gente sente”. Mas de todas, a que dele mais curto e mexe fundo comigo é Poemas e carícias, com letra de Cruz Neto, evocando as corajosas lutas políticas na Ufpi, quando a estudantada universitária gritávamos pelo fim da ditadura militar. Em coro bonito de lembrar até hoje, com três a quatro mil vozes, soltávamos as gargantas com paixão e revolta: “A tua presença / me deixa assim legal / desde os tempos da universidade / enquanto a rapaziada / discutia a conjuntura nacional / eu e você / trocamos mil beijinhos / no meio da greve geral / meu amor / a UNE nos uniu / e fomos pra um motel / e eu te fiz poemas e carícias / e você cheia de malícia / cobriu meu corpo de mel”.

Das muitas guardadas no peito, uma não pode faltar de jeito nenhum, nem que a vaca tussa, até porque traz um pedacinho do litoral para dentro de mim, a envolvente Pedra do Sal, uma composição e tanto de Teófilo Lima, que deixamos tocar infinitamente como a querer mergulhar e não sair nunca daquele marzão azul de meu Deus: “Ouvi dizer de uma bela ilha / de um pedaço pedra do sal / com tesouros escondidos e um farol / pedaço de uma maravilha líquida / se debatendo contra a pedra / e o sol fazendo desse casamento o sal. / Assim se fez / Assim nasceu Pedral”.  De seu primeiro CD, não canso de escutar também A volta do Zorro, Beijos e cacos e a danada de linda Compreendi. Do segundo trabalho, vem o refrigério para o desassossego da alma no belíssimo blue de Flores e línguas e no eletrizante remix de Cabeça de Cuia.

Mas como deixar de ouvir, criatura, em noite frienta e marcante, o somzaço da Validuaté, banda que nos faz levitar de tanta emoção, o talento escorrendo em suas letras e sonoridades, a exemplo de A onda, com “teu cheiro agorinha veio e me acertou em cheio/ e me completou o vazio no peito/ que não se aguentava mais de te querer/ de novo, aqui e assim pra sempre”. E o que dizer da versão que fizeram do grande sucesso de Márcio Greyck, Eu preciso é de você, levando as novas gerações (e as velhas também) a cantarolar o inesquecível estribilho da canção: “Por que, todo mundo precisa de alguém?/ E eu preciso é de você./ Pra comigo andar e para me entender/ Eu preciso é de você/ Pra continuar e pra não me perder”.

Nessa altura do campeonato, já completamente embriagado de sensações e linguagens acústicas, deixo as músicas galoparem livres na vastidão de minhas reminiscências: Freak lagarta, de Mirton e Galvão; O peru rodou, de Maria da Inglaterra; Bem melhor, da Mano Crispin; Espelho, da banda Acesso; Maquetes loucas, da Narguilé Hidromecânico; Passado, de Erisvaldo Borges; Poemeto Erótico, de Os Caipora, em cima de texto de Manuel Bandeira; Agora é tarde, de Lázaro do Piauí; Brasileiro, de Machado Júnior eCaleidoscópio, de Wilker Marques. Mas de todas, digo e não peço segredo, a que me faz sangrar é Coração sem jeito, de Roraima e Paulo Moura, cantada na voz suave e terna de Ronaldo Bringel. Diante dessa estupenda fartura melódica, as dores da vida perdem importância, lamentável apenas nem todos terem se tocado ainda para o nosso riquíssimo cancioneiro musical. Até quando?