Wellington Soares

Coisas e outras

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Cinema nacional – I

O país em crise econômica das grandes, com mais de 13 milhões de desempregados, e a culpa recai, acredite se quiser, sobre o cinema nacional, justamente quando ele vive uma de suas melhores fases – tanto em termos de produção de filmes de boa qualidade quanto em faturamento, garantindo sustento a milhares de brasileiros. Sem falar ainda de várias premiações internacionais abocanhadas ultimamente, a exemplo de Bacurau (Prêmio do Júri) e A vida invisível de Eurídice Gusmão (Prêmio Um Certo Olhar), dos cineastas Kleber Mendonça Filho e Karim Ainouz, que brilharam no Festival de Cannes deste ano. Além da ameaça de extinção ou privatização da Ancine (Agência Nacional do Cinema), o presidente Jair Bolsonaro, talvez achando pouco, quer retomar a triste censura da época militar, batizada de “filtros culturais”, eufemismo usado pra designar proibição do que não agrada estética e ideologicamente aos atuais “donos” do poder. Diante de tal absurdo, não custa nada passear um pouco, de forma sucinta, pela sétima arte nacional.

Seu aniversário é celebrado no mês de junho, mais precisamente dia 19, tendo nascido, segundo os entendidos, pelas mãos do ítalo-brasileiro Afonso Segreto, que ao chegar da Europa a bordo do navio Brèsil, em 1898, resolveu filmar a “Vista da Baía da Guanabara”. De lá para cá muita coisa mudou e hoje a produção audiovisual brasileira, entre altos e baixos, conquistou o público local e ganhou o respeito no mundo inteiro. De uma simples produção no final do século XIX, lançamos atualmente no mercado mais de uma centena de filmes por ano. Em 2013, por exemplo, foram 127 ao todo, alguns atingindo público recorde, a exemplo de Tropa de Elite, com mais de 10 milhões de espectadores. Já Bruna Surfistinha, alvo da crítica do presidente, foi visto por 2.176.999 pessoas. Mas nosso cinema ainda padece, infelizmente, de alguns problemas graves: reduzido número de salas de exibição no país e o preconceito do qual é vítima por muitos brasileiros, inclusive do mandatário maior da nação.

Aos que resistem em ver filmes nacionais, seja lá por qual motivo, aproveito essa discussão para sugerir títulos fundamentais na evolução da produção local, não como especialista no assunto, mas um mero apreciador de nossa cinematografia. Comecemos pelos “clássicos”, filmes já incorporados ao inconsciente coletivo brasileiro: O Ébrio (1946), de Gilda de Abreu, visto por cerca de 12 milhões de pessoas; O Cangaceiro (1953), primeiro filme a conquistar as telas do mundo, escrito e dirigido por Lima Barreto, inspirado na lendária figura de Lampião; O Pagador de Promessas (1962), filme de Anselmo Duarte baseado na peça de teatro de Dias Gomes, ganhador da Palma de Ouro em Cannes; Deus e o Diabo na Terra do Sol (1964), de Glauber Rocha, considerado marco do Cinema Novo e tido como o melhor filme nacional de todos os tempos.

Após uma crise profunda, agravada no governo Fernando Collor de Melo, quando o então presidente extinguiu a Embrafilme, veio a “retomada” na década de 1990, com filmes que levaram o público a se entusiasmar novamente com o cinema brasileiro. Dentre outros, vale destacar os seguintes: Carlota Joaquina – Princesa do Brazil (1995), de Carla Camurati, uma bela sátira histórica sobre a vinda e as aventuras dessa espanhola, esposa de Dom João VI, ao desembarcar no Brasil em 1808; O Quatrilho (1995), dirigido por Fábio Barreto, filme baseado no livro homônimo de José Clemente Pozenato, escritor gaúcho; Central do Brasil (1998), o road-movie de Walter Salles, talvez nosso filme mais conhecido no exterior, com Fernanda Montenegro indicada ao Oscar de melhor atriz; Cidade de Deus (2002), de Fernando Meirelles, adaptação do livro de Paulo Lins, abordando o drama do crime organizado em favela carioca.

Da produção mais recente, que não deixa nada a dever aos filmes estrangeiros, enumero uns cinco que deixam nossa alma dando pulos e cambalhotas de tanta alegria: A Busca (2013), dirigido por Luciano Moura, um drama centrado na história de Theo Gadelha (Wagner Moura), médico, que ao tomar conhecimento da fuga do filho ganha a estrada na tentativa de reencontrar-se como pai, esposo e gente; O Cheiro do Ralo (2007), filme de Heitor Dhalia, retrata com humor negro o sadismo de Lourenço (Selton Mello), dono de uma loja de objetos usados, que explora e humilha pessoas em dificuldade financeira; Eu Receberia as Piores Notícias de seus Lindos Lábios (2012), dirigido por Beto Brant e Renato Ciasca, inspirado no romance de Marçal Aquino, uma fascinante love story com final surpreendente; O Céu de Suely (2006), com direção de Karim Aïnouz, a triste história de uma jovem que, sem dinheiro, resolve rifar o próprio corpo a fim deixar sua pequena cidade; e, finalmente, Contra Todos (2004), de Roberto Moreira, filme que nos remete à violência das grandes metrópoles, depois do qual dificilmente o espectador continuará o mesmo.

Olá, tudo bem?

 

Foi com esse bordão acima, repetido desde 2006 no Domingo Espetacular, programa dominical da Record TV, que Paulo Henrique Amorim despontou no cenário nacional, tornando-se um dos apresentadores mais conhecidos da televisão brasileira. A identificação era tamanha que, geralmente, as pessoas o cumprimentavam repetindo sua marca registrada. E melhor, com a mesma entonação inconfundível. A partir daí a empatia, com boas gargalhadas, brotava espontânea entre os interlocutores. Desde a madrugada da última quarta-feira (10), infelizmente, as coisas não amanheceram nada bem para seus familiares, amigos e admiradores. Fomos todos surpreendidos com a triste notícia da partida, após sofrer infarto fulminante, do grande jornalista carioca que dedicou a vida a cobrir fatos marcantes da história contemporânea, dentro e fora do Brasil.

Em novembro de 2015, tive o prazer de conhecê-lo pessoalmente. Ao vir lançar O quarto poder – Uma outra história, no Cine Teatro da Assembleia, fui convidado para dirigir os trabalhos, incumbência que aceitei com o maior prazer. Diante de um auditório lotado, PHA discorreu sobre os bastidores da grande imprensa, batizada ironicamente por ele de PIG – Partido da Imprensa Golpista –, sob um olhar crítico e demolidor, retrospectiva de quem conhecia a fundo esse fantasma que manipula, em parceria com as elites econômicas e políticas, o imaginário coletivo de nosso povo. Não tendo absolutamente nada, sobretudo a Globo, de imparcial nesse tabuleiro sujo do poder. Concluída a palestra e dados os autógrafos de praxe, que foram inúmeros, rumamos para um restaurante a fim de saborear um prato típico da culinária local e, claro, trocar ideias sobre a conjuntura da época. Da conversa, ficaram seu humor refinado, inteligência fora do comum e uma risada maravilhosa.

A partir daí passei a acompanhá-lo por meio das redes sociais, especialmente do Conversa Afiada, blog de notícias que mantinha no Youtube com o objetivo de fazer um contraponto à imprensa comercial, desafiando o coro dos rendistas contentes, dos que teimam em algarismar os amanhãs. Entre outras qualidades, despontavam nele o amor pelo Brasil, a defesa intransigente da democracia e o combate diário à ideologia fascista. Lutas que o levaram a ser perseguido, processado e demitido de vários órgãos de imprensa – seu afastamento do Domingo Espetacular, por exemplo, para ficarmos no último e mais recente caso. Dizia, magoado, PHA: “Tantas são as ressalvas previstas na própria constituição que os poderosos supostamente ofendidos acabam por prevalecer na justiça brasileira. E assim, pelo bolso e pelo constrangimento político e moral, funciona de fato no Brasil uma censura à liberdade de expressão, uma censura à palavra, uma censura ao pensamento.”

Andando na Praça Benedito Calixto em 2016, bairro Pinheiro/SP, não é que encontramos – eu e Lucíola –, naquele formigueiro humano, a figuraça do Paulo Henrique Amorim, a quem cumprimentamos felizes, pelo acaso, com seu famoso bordão de guerra: “Olá, tudo bem?”. De memória privilegiada, ele nos reconheceu de imediato, abriu um sorriso e foi logo dizendo: “O pessoal do Piauí, não é mesmo?”. E durante alguns minutos, uma vez que ele tinha compromisso agendado, papeamos ali mesmo, na rua, sobre diversos assuntos. Enquanto falávamos de nossa ida à Balada Literária, comandada pelo intrépido Marcelino Freire, ele queria saber da cajuína, do calorão bom de Teresina e do gostoso capote que havíamos degustado naquela inesquecível noite de novembro. E agora ficamos privados, quando mais precisávamos, de sua voz lúcida e mordaz contra o discurso de ódio e a ameaça de autoritarismo que ameaçam o estado de direito. PHA, presente!

Filmes que desnudam a escuridão

 

Se hoje respiramos a deliciosa fragrância da liberdade, com os partidos legalizados e eleições livres em todos os níveis, devemos esse feito a luta tenaz da maioria do povo brasileiro. Mas a democracia, infelizmente, não tem sido a tônica da história do nosso país. Ao contrário, tem vigorado mais como exceção do que regra geral. Daí o cuidado redobrado que devemos ter com a criança que ajudamos parir, sobretudo, quando setores da direita pregam o retorno dos militares ao poder. Para tanto, é recomendável assistir a filmes, justamente nestes tempos sombrios, que retratem essa época marcada pelo arbítrio e a tortura. Até porque o cinema nacional faz, a rigor, aquilo que os governos FHC, Lula e Dilma – os três, vítimas da ditadura – não foram capazes de fazer: abrir os arquivos da repressão política, cicatriz difícil de sarar.

O primeiro recomendado é PRA FRENTE, BRASIL, do cineasta carioca Roberto Farias, lançado em 1982, que mostra o drama de um pacato trabalhador de classe média confundido com um perigoso subversivo, sendo vítima de torturas físicas e psicológicas imagináveis. O filme, ambientado na década de 1970, reflete o dualismo entre a euforia patriótica da copa do mundo e os maus tratos dispensados aos presos políticos. Com um grande elenco, tendo à frente Reginaldo Faria e Cláudio Marzo, o filme ganhou várias premiações: o Kiko de Melhor Filme no Festival de Gramado e o Prêmio Ofício Católico internacional no Festival de Berlim.

Outra indicação é O QUE É ISSO, COMPANHEIRO?, filme de Bruno Barreto baseado em livro homônimo de Fernando Gabeira, que narra o sequestro do embaixador norte-americano (Charles Burke Elbrick) por grupos armados de oposição ao governo militar, soltando-o somente depois da libertação de vários presos políticos e da leitura e publicação de uma carta aos brasileiros. Lançado no final da década de 1990, tendo no elenco atores do porte de Fernanda Montenegro, Matheus Nachtergaele e Othon Bastos, recebeu uma indicação ao Oscar de Melhor Filme Estrangeiro em 1997.

LAMARCA é um registro imperdível daqueles tempos de chumbo, filme de Sérgio Resende que retrata a trajetória combativa de um dos mais destacados líderes da resistência armada no Brasil, capitão que deserta do exército para organizar a luta revolucionária. Encurralado no interior da Bahia, morre ao lado de José Campos Barreto, o Zequinha, amigo e companheiro das utopias socialistas. Dias antes, sem que tivesse tomado conhecimento, havia tombado, em Salvador, a paixão de sua vida: Iara, para quem escreveu belíssimas cartas de amor. O filme foi baseado na biografia Lamarca: o capitão da guerrilha, escrita em 1980 por Emiliano José e Oldack Miranda.

Em 2005, o assunto é retomado em CABRA CEGA, de Toni Venturi, thriller político que aborda a relação limite de Tiago e Rosa, dois jovens militantes da esquerda armada que, alojados em apartamento de um simpatizante da causa, acabam se envolvendo amorosamente, de maneira intensa e urgente, na iminência do cerco policial. Ele, comandante de um “grupo de ação”, ferido à bala em uma emboscada das forças de repressão; ela, filha de um operário comunista, a enfermeira encarregada de seu pronto restabelecimento físico. Filme contundente e de final inesperado.

Em ZUZU ANGEL, presenciamos a destemida luta da  grande estilista de moda, interpretada no filme por Patrícia Pillar, em busca  do filho Stuart Angel Jones, líder estudantil brutalmente assassinado em quartel da aeronáutica, no Rio de Janeiro.  Através dos desfiles que promovia, tanto no Brasil quanto no exterior, Zuzu fez questão de manifestar sua indignação diante da triste situação em que vivia o país, apresentando as roupas com motivos militares. Insatisfeitos com as denúncias, os militares trataram, segundo falam, de eliminá-la. Filme produzido para emocionar e guardar como reflexão.

Outros títulos que merecem ser vistos, fechando essa despretensiosa relação cinema/ditadura, são O ANO EM QUE MEUS PAIS SAÍRAM DE FÉRIAS, filme poético de Cao Hamburger, que relata o sufoco da época pelo olhar puro de um adolescente forçado a viver com o avô materno devido a fuga dos pais para não serem presos. BATISMO DE SANGUE , inspirado em livro homônimo de Frei Betto adaptado para a telona por Helvécio Ratton, cuja história resgata a participação dos dominicanos  na luta armada ajudando o grupo guerrilheiro de Carlos Marighella. Dos mais recentes, destacaria ainda BARRA 68, de Vladimir Carvalho; JANGO, de Sílvio Tendler; O DIA QUE DUROU 21 ANOS, de Camilo Tavares; ARAGUAYA – A CONSPIRAÇÃO DO SILÊNCIO, de Ronaldo Duque; EM BUSCA DE IARA, de Flávio Frederico, sobre o cerco e morte da companheira de Lamarca; e, por fim, MARIGUELLA, filme dirigido por Wagner Moura e adaptado do livro de Mário Magalhães, a estrear nacionalmente no dia 20 de novembro deste ano, data comemorativa do Dia da Consciência Negra.

 

Pai de santo fajuto

 

Às vezes que levei mamãe ao macumbeiro, coisa que ela fazia com frequência na época, ficava eu lá fora do terreiro, dentro do carro, ouvindo música, de preferência as cantadas por Belchior, trovador cearense de tiradas filosóficas e melodias inesquecíveis – pena ter se encantado de forma tão repentina. Sempre fui avesso, talvez por desinteresse ou ceticismo, das crendices de um modo geral. Ao surgirem intermediadas por terceiro, quando prefiro o diálogo livre e direto, a desconfiança só aumenta, deixando-me com um pé atrás. Mas naquela tardinha de final dos anos 70, acabei envolvido nas insondáveis previsões dos búzios e cartas, justamente no momento em que me preparava para conhecer o Rio de Janeiro, um presente pelos meus 17 anos. Sabe-se lá por quais motivos – quem pode entender, afinal, o que se passa no coração de uma mãe? -, dona Raimunda veio me chamar para ir falar com o dito cujo.

– O Pai de Santo quer falar com você.

– Não já pedi pra senhora me deixar fora disso.

– Mas, filhinho, é para o seu próprio bem.

– Como assim, para o meu bem?

– É sobre a sua viagem ao Rio, nas férias de julho.

Era só o que faltava, matutava com meus botões, mamãe abrir minha vida ao macumbeiro, uma pessoa desconhecida. Que tinha ele com a tal viagem? Qual seu interesse em conversar comigo? Na dúvida, bem como atendendo ao apelo de dona Raimunda, resolvi escutá-lo com atenção. Não tinha nada a perder.

– Pronto para conhecer a Cidade Maravilhosa?

– Sim, quero realizar um antigo sonho.

– Vai gostar muito de lá.

– Espero.

– Não tem outra igual em beleza.

– É o que ouço sempre.

– Porém, surgirá uma mulher na sua vida.

– Tomara!

A partir daquele instante, como num passe de mágica, a angústia se fez alegria. A felicidade apoderou-se de mim de forma arrebatadora. O aparecimento de mulher, seja em que idade ocorra, é sempre motivo de festa. Com tal vaticínio, não é que o macumbeiro parecia palatável e simpático. Somente depois das palavras angélicas veio o diabólico:

– Mas tem um problema.

– Qual?

– Apesar de bonita, perigosíssima.

– Como assim?

– Ela trará grandes complicações em sua vida.

– Não estou entendo.

– Melhor não entender mesmo, difícil explicar a malícia feminina.

– O que devo fazer, então?

– Fuja dessa mulher, caso não queira comprometer seu futuro.

Já no Rio, após a viagem de Itapemirim, não conseguia esquecer a recomendação feita pelo Pai de Santo. As palavras ainda estavam frescas na memória. Vira e mexe, mesmo diante de tanta lindeza de paisagens, a conversa com ele vinha bastante explícita: “Fuja dessa mulher se não quiser estragar a sua  vida”. Assim, qualquer mulher que olhasse em minha direção, eu já saía correndo dali. Longe de querer estragar meu “futuro promissor” por  um circunstancial envolvimento amoroso.

A raiva só acontecia nas praias de Ipanema e Copacabana quando, babando diante da sensualidade da mulher carioca, mandava às favas o conselho do macumbeiro. Tudo que queria naquele instante era ser merecedor do amor ou, pelos menos, do aconchego de uma daquelas sereias que desfilavam garbosamente na beira do mar, deixando o molecote sem respiração e de queixo caído. Meu consolo eram os versos de Vinicius: “Moça do corpo dourado / Do sol de Ipanema / O seu balançado é mais que um poema / É a coisa mais linda que eu já vi passar”.

Ao retornar a Teresina, danado da vida por não ter surgido mulher nenhuma, perigosa nem boazinha, acabei responsabilizando dona Raimunda pela frustrada experiência no Rio. Que ela despachasse o tal charlatão, uma vez que sua previsão furou completamente. Merecia ser preso, expressava indignado à mamãe, pessoa que cria falsas expectativas nos outros, principalmente em jovem carente, não lhe restando, nessa situação, outra saída exceto o prazer de sonhar e ter as mãos ainda mais calejadas.

O poeta do mau gosto

 

Espanto é a palavra que traduz o que senti ao ler: “Eu, filho do carbono e do amoníaco/ Monstro de escuridão e rutilância/ Sofro, desde a epigênese da infância/ A influência má dos signos do zodíaco”, versos que maltratavam os ouvidos de um adolescente vidrado nos autores românticos, como os poetas Casimiro de Abreu e Gonçalves Dias. O impacto foi tamanho, diante da morbidez do tema e da crueza vocabular, que tive de parar e respirar fundo, não acreditando no absurdo daquela leitura. A queda definitiva, do meu conforto literário, ocorreu mesmo ao passar a vista nas duas últimas estrofes de Versos íntimos, seu poema mais festejado: “Toma um fósforo. Acende teu cigarro!/ O beijo, amigo, é a véspera do escarro,/ A mão que afaga é a mesma que apedreja.// Se a alguém causa inda pena a tua chaga,/ Apedreja essa mão vil que te afaga,/ Escarra nessa boca que te beija!”.

Após esses versos estranhos, nunca mais fui o mesmo enquanto leitor e pessoa, deixando as ilusões de lado e encarando a vida sem mistificações. Sem falar também do próprio texto literário, encarado agora como um labirinto cuja saída precisamos desvendar. Se não atende ao sentido utilitário da sociedade capitalista, a poesia serve, pelo menos, para revolver nossos conceitos estéticos e a concepção da alma humana. Que o belo pode ser extraído tanto dos aspectos relevantes e saudáveis como dos banais e repugnantes do cotidiano. Tocar o coração das pessoas vai depender tão somente do talento e da criatividade do artista, além de certa dose de sorte ofertada pelos deuses. Como gostar de textos assim, indagava minha razão, que falam de verme, cuspe e lama, porém os sentidos não perguntavam nada, de tão maravilhados com o mau gosto.

Feliz do escritor que, 105 anos depois da morte, continua lembrado pela literatura de seu país. Glória maior é quando permanece amado pelos leitores, antigos e novos que foram surgindo. E o que dizer quando ele lançou, em vida, um único livro? Para quem não lembra ou sabe, estou falando de Augusto dos Anjos, o consagrado poeta paraibano falecido no distante ano de 1914, em Leopoldina, cidadezinha do interior de Minas Gerais. Sua idade ao partir? Apenas 30 anos, muito jovem ainda, vítima de pneumonia. O título da obra, lançada em 1912, não poderia ser mais expressivo: Eu, reunião de textos marcados pela melancolia e o sentimento trágico da existência. O soco no estômago do leitor, desfazendo qualquer ilusão sobre o destino humano, é dado logo no poema que abre o livro, Monólogo de uma sombra, um sexteto perturbador: “Tal qual quem para o próprio túmulo olha,/ Amarguradamente se me antolha,/ À luz do americano plenilúnio,/ Na alma crepuscular de raça/ Como urna vocação para a Desgraça/ E um tropismo ancestral para o Infortúnio”.

A aversão às escolas literárias, embora dialogando com todas, tornou-o um poeta singular no começo do século passado, capaz de fundir tradição e inovação num mesmo texto. Para tanto, não teve receio de agradar ou desagradar leitores, tendo compromisso apenas com a poesia de boa qualidade. Sua consagração definitiva, infelizmente, chegou somente depois da morte, injustiça até hoje cometida a grandes talentos da literatura nacional. Sempre ao dormir, não sei por que cargas d’água, os versos iniciais de O morcego despertam inquietações em mim: “Meia-noite. Ao meu quarto me recolho./ Meu Deus! E este morcego! E, agora, vede:/ Na bruta ardência orgânica da sede,/ Morde-me a goela ígneo e escaldante molho.” Grande Augusto dos Anjos, poeta daqueles que inspiram amor ou ódio, nunca a indiferença abominável.