Trabalhos no Subsolo

por Manoel Ricardo de Lima

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Joana Corona, Mariana Medina e Fábio Freitas / Sidnei Cruz: vento, ventania e o cão

Vi em sonhos um terreno deserto. Era a praça do Mercado de Weimar. 
Havia escavações em curso. Também eu escavei um pouco a areia. E vi 
aparecer o pináculo da torre de uma igreja. Não cabendo em mim de alegria, 
pensei: um santuário mexicano pré-animista, o Anaquivitzli. Acordei a rir. 
(Ana = àvá; vi = vie, witz = igreja mexicana [!]).Trabalhos no Subsolo. (Walter Benjamin)

“É chegado o fim de tudo
E o mundo pode acabar”

Belchior

Há um extermínio do viveiro de pobres que vive em Gaza gerado pelo regime de apartheid do estado de Israel. Há, nesse momento, em todo o mundo, quase 30 conflitos armados entre nações defendendo suas linhas de controle, as fronteiras; a maioria de pobres vai morrer nesses conflitos, os mais ricos vendem as armas. Estamos, todos, ao mesmo tempo, sofrendo o horror dos efeitos produzidos pelo caráter indômito e dromológico do capitalismo no planeta: a maioria, também um viveiro de pobres, vai sufocar de calor, sede, desidratação, falta de ar. Weltschmerz, ou seja, desolação e desamparo, morte rápida, esse é o resultado da guerra civil mundial e da normalização do terrorismo privado, pode-se ler tanto em Didier Vincent ou Peter Sloterdijk quanto em Paul Virilio. O filósofo bávaro, por exemplo, lembra que nos sobra um bafio, uma ausência de renovação do ar, são os que podem pagar que mantêm uma “climatologia especial” e, assim, num revés, “manipulam o ar respirável e deixam aos pobres apenas a sua dimensão mais destrutiva.” E Virilio, noutro exemplo, diz que o capitalismo impõe “tomar tudo de assalto”, o dinheiro é uma dromomania, o movimento deixa de ser uma revolução: o movimento agora é a velocidade como política de estado, controlar tudo com o imperativo da falcatrua da lei.

A maioria de pobres vai morrer nesses conflitos, os mais ricos vendem as armas. Estamos, todos, ao mesmo tempo, sofrendo o horror dos efeitos produzidos pelo caráter indômito e dromológico do capitalismo no planeta.

Na outra ponta da vida, 60 pessoas controlam todo o dinheiro do mundo; 4 ou 5 corporações toda a comida; 5 países têm poder de veto na ONU, que é, cada vez mais um espaço conformado e conformador, esses mesmos 5 enriquecem muito imediatamente e sem parar; há uma família ou duas que enricam de modo absurdo no Brasil à custa da extração de nióbio da floresta amazônica, em 10 anos foram 30 bilhões de reais; no dia 19/11 Javier Milei, figura da extrema direita alucinatória que avança por todos os lados, tornou-se presidente da Argentina; há uma feira literária sobre pedraria escrava no litoral fluminense, o sistema de escravidão e subserviência é circular, a patrocinadora oficial da feira é a VALE, que pratica uma mineração violenta e irresponsável, mesmo depois de Fundão e Brumadinho, do outro lado, como sempre, um banco, e o viveiro de pobres continua morrendo sob o rejeito, pouquíssimas pessoas se movem para dizer não, é o pacto. Um famoso escritor brasileiro diz que só há paz na lei e na justiça, esqueceu de Franz Kafka ou não viu ou não leu, quando este diz, lendo Anaximandro, que diante da lei não há justiça nem muito menos paz. Para  que algo exista – dizia o filósofo de Mileto, simpático a um partido de trabalhadores –, algo tem que deixar de existir, daí que o ser já é, como tal, uma injustiça; e Kafka, lentamente, inverteu o lance de dados que jamais abolirá um lance de dados: Alonso, o quixote, não passa de um demônio de Sancho, o pança. Há um pacto imposto de mudez e compadrio, Pasolini disse – porque sabia que sua participação como intelectual era pública, nunca íntima ou familiar, aprendera com Gramsci – que este pacto de pafúncios é, no mínimo, cretino.

Pouquíssimas pessoas se movem para dizer não, é o pacto. Há um pacto imposto de mudez e compadrio.

Joana Corona

Numa anterioridade ao pacto, há Crostácea, livro de Joana Corona [1982-2014], publicado em 2011, editora Medusa. A vida brevíssima não impediu Joana, que expandia seu pensamento entre o poema, as artes visuais [os objetos do livro e da leitura] e seus estudos de antropologia cultural, uma etnografia urbana da língua  impossível das putas e dos que habitam as ruas, de traçar uma oscilação diferida ao seu trabalho. Diga-se aí, assim, vagarosamente, do convívio com Ricardo Corona, poeta de guerrilha, e Eliana Borges, artista impensada, tios, ou com Davi Pessoa, professor e tradutor, um pensador da política e seus desvãos às coisas do porão. Se pouco se vê e se lê, o que para Giordano Bruno eram um mesmo gesto, da poesia de João Cabral de Melo Neto hoje ao nosso redor mesmo se como mero resíduo, praticamente anulada, porque escrita, como ele apontava, não por “uma necessidade de expressão, mas por escassez de ser” –, os textos de Joana refazem a pedra do poeta de Recife como musgo e coral num mar de plástico. Ao lado, há o pouco que vem, lição da pedra, e que está na poesia de Carlito Azevedo, que reelabora a pedra em conversa direta com o que João Cabral lia, reparava, tocava, Midas ao contrário, todo ouro vira pó e força de sentido; na poesia de Júlia Studart, como um arremesso da pedra até a cabeça de quem passa, uma Krazy Kat de depois de amanhã, acrobacia, cicatriz e jogo; na poesia de Eduardo Sterzi, pedra torta, pedra de fogo, lava em chiaro-oscuro, desmembrada, mal amada, imposição do apagamento da paisagem e anotação de risco e perigo, pedra de raspar o pé; e repare-se, escrevem pouco, publicam menos ainda.

Os começos de enfrentamento do trabalho de Joana Corona não são meras impressões de uma vida própria, mas de um vento contínuo, inteiramente extimo e, sem medida, tudo que se desenha na força espiralada de um “pequeno fracasso”.

Em poemas como contracarne, Joana imprime que “somos o que retemos e o nosso desperdício mútuo”, ou em viento, uma pequena vida entre línguas, quando escreve que há “un sonido perdido en el hueco del desierto. quase devorado pelo silêncio. choca-se em: cordillera de la sal, mineral, esqueleto de anfíbio, concha, areia e outros resquícios marítimos. penetra a vasta sequidão, ensolarada e quente. estrelada e gelada. em seus bailes frequentes – deserto solitário. agigantado e solene. hace que el sonido explote sutil y agudo, imperceptible.”, está sugerido o movimento que ainda é próximo da entranha e da dança, que ainda é revolução, ou seja, antes da linguagem meramente burocrática e de fragilidade pessoal, familiar, vidinha íntima. O que se tem é uma espécie de reparação ou compensação da música vagarosa contra a velocidade da ilusão do tempo, o trabalho de Joana é um vento que sangra, do poema ao livro, do livro ao objeto exposto que a leitura é. Crostácea segue sem fluxo algum, bastariam trechos de poemas como calcário, “da epiderme pálido-dourada ressequida impregnada”; disfagia, “cabeça dentro de cabeça”; ou migalhas, “como cavoucasse pedra, batia cabeça [dura] por palavra bruta”, para que se perceba que os começos de enfrentamento do trabalho de Joana não são meras impressões de uma vida própria, mas de um vento contínuo, inteiramente extimo e, sem medida, tudo que se desenha na força espiralada de um “pequeno fracasso”.

Vestidas de vento | Foto: Rogério Von Krueger

Entre vento e ventania, importante demais, também, tocar o trabalho de Mariana Medina, uma artista de circo, professora de acrobacias de circo com pano e lira, trapézio e corda, movimentos de chão e os descompassos do corpo como brincadeira, brincar, presença das delicadezas de criança que, por sua vez, atravessam a história, tanto a que se faz, quanto, principalmente, a que se sofre. Mariana dirige o Grupo Devoar, e seu último espetáculo entre coreografia e direção realizado e apresentado em temporadas curtinhas no Rio de Janeiro agora em 2023, Vestidas de vento, nos teatros Nelson Rodrigues, da Caixa Cultural e, depois, no Dulcina – espaço cultural da Fundação Nacional de Artes – Funarte, através do Programa de Fomento Carioca, FOCA, é simplesmente encantador. Cinco artistas de circo, bailarinas, acrobatas [akrobatoi] – Amanda Pontes, Ana Cecília Menescal, Julia Sève, Lua Couto e Maju Houri – se revezam entre os emaranhados de suspensão e sustentação dos corpos uma de cada outra e, entre risco e queda, equilíbrio e muita força, numa tentativa sutil de raspar as ideias do mundo em crise, do feminino e de uma reinvenção da Terra. Importante, e isso está entre os princípios de formação de Mariana, do teatro ao circo, da geografia à psicologia, o quanto o cenário de pouca luz, vestidos leves e quase brancos [eis uma figuração do vento] e muitas folhas secas e soltas pelo chão desenham a raspa da Terra atravessada pelo rocio dos braços, das mãos, das pernas, dos pés, dos cabelos e dos olhos das personagens que cada bailarina é; mas, repare-se, só se em conjunto, unidas, juntas, composição e comunidade contingente.

O trabalho de Mariana Medina é da dimensão do político, são mulheres que se lançam ao vazio do vazio para esvaziar a desmedida do capital que é, histórica e imperativamente um círculo de homens, masculina e branca, e que reduz a vida à eficácia.

Mariana Medina | Foto: Rogério Von Krueger

E isso é o encanto imaginativo desse trabalho de Mariana Medina, tanto que é muito possível lembrar do poema-fragmento de Alejandra Pizarnik, de 1962, “un vento débil / lleno de rostros doblados / que recorto en formas de objetos que amar”, porque é nesse empenho que se apresenta no contradito do choque dos apertos de mão e da dobra dos rostos, quase sempre impassíveis mas marcados por esforço, que comparece o desejo daquilo que ainda é leveza diante do corpo, este peso, movido a sangue, carne, pele, ferida, cicatriz, veste e nudez, um móbile informe entre a gravidade e a graça numa imaginação de esvaziamento: vestir-se de vento, vestir-se com o vento, vestir-se vento. O que Simone Weil já implicara, como uma dimensão do político, ao dizer que “o trabalho contínuo da imaginação é provocar fissuras por onde a graça possa passar”, “a imaginação não preenche vazios”, “toda arte só é se coletiva” etc. E é muito isso porque o trabalho de Mariana é da dimensão do político, é telúrico, são mulheres quem vêm trançadas em espiral, a linha infinita, sem começo nem fim, que também veem e se lançam ao vazio do vazio para esvaziar, com a radicalidade de seus corpos, a desmedida assoladora do capital que é, histórica e imperativamente um círculo de homens, masculina e branca, e que reduz a vida à eficácia.  Re-habitar a Terra, recompor a Terra é, no mínimo, como um sentido de memória, reinventar o mundo, este único que criamos para alguma possibilidade de existência.

Fábio Freitas em cena da peça Cão chupando manga | Foto: Ivam Cruz

E é tal como um apagamento de toda e qualquer ideia de círculo, circularidade, o que leva a estados de violência e poder, que o aperto de mãos entre Fábio Freitas, ator e dramaturgo, e Sidnei Cruz, dramaturgo, poeta e diretor de teatro, projeta a peça Cão chupando manga, uma deseducação. E aí, procedimento expandido, a luz de Guiga Ensa, a trilha sonora de Ivam Cruz e a direção de movimentos do ator de Maria Angélica Gomes. Um texto errante permeado por objetos de cena criados por Fábio com tampinhas de garrafa de cerveja, saias e sandálias altas, máscaras e pulseiras de pulso e tornozelo, artefatos de ferrugem e chão vermelho. Em princípio é o teatro do mundo, esta falência, a vida que gorou. Ator e público descentrados em uma mesma altura, nenhuma hierarquia. Há um homem, vive num apartamento vizinho de um quintal com mangueira, no quintal há um cão que late sem parar, o homem não consegue dormir, não dorme, torna-se uma besta, deseja matar o cão, precisa dormir. Dança em giro, se move anódino, se diz sem dizer, baba, para frente a alguém, fala baixo, grita, estabelece convites, quer chupar o dedo do pé de alguém, chupa, esboça cagar na frente de todos, despe-se, posiciona-se, concentra-se, quase caga, chupa uma manga completa e visceralmente e avisa que está-se num lugar real.

Na peça “Cão chupando manga”, a confirmação de que, entre nós, humanos e humanos, não há reconciliação, nem muito menos um ombro a ombro, caminhar, caminhar mais, num projeto insubmisso contra a domesticação movida pela banalidade da palavra de ordem, da frase feita.

 

Sidnei Cruz | Foto: Ivam Cruz

A revirada da peça é a confirmação de que, entre nós, humanos e humanos, até porque muito distantes de toda animalidade, nosso res a missa, não há reconciliação, nem muito menos um ombro a ombro, caminhar, caminhar mais, num projeto insubmisso contra a domesticação movida pela banalidade da palavra de ordem, da frase feita, da vida lançada ao domínio e ao controle mímico do capital. O ponto insurgente é o como e quando, pergunta e temporalidade, Fábio Freitas se modula ao cenário vermelho, por exemplo, quando bebe água em pequenas garrafas térmicas também vermelhas dispostas ao alcance da mão e, sem parar, numa língua selvagem, abissal, desordenada, caótica, vocifera a morte do cão, da vizinha, do vizinho, da árvore, em busca de ar e com sede. O que alonga o ponto é, ainda, o que pode advir num próximo pensamento, se o mistério ou se o inacessível, estamos definitivamente, diante daquele homem incomum, pasmos e no preenchimento da vida com deuses, mitos, deus, simbologias divinas e sagradas, mas nada nos há como salvação. Assim, é também muito do que faz e imagina fazer Sidnei Cruz: a liberdade sem medo contra a normatividade do normal. Três trabalhos e tão pouca gente para nos lembrar que o que nos sugere a delicadeza da fúria e de nossa capacidade, cada vez menor, para dizer não, é a dilação figurante, exposta, vagabunda e flutuante, daquilo que somos: um animal que ri.

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Manoel Ricardo de Lima [Parnaíba, 1970, professor do PPGMS e Escola de Letras, UNIRIO. Pesquisador CNPq, PQ-2], publicou A guerra da água [7Letras] Xenofonte [Cultura e Barbárie], O método da exaustão [Garupa], Avião de alumínio [Quelônio, com Júlia Studart e Mayra Redin] entre outros. Organizou, entre outros, Uma pausa na luta [Mórula]. Coordena a coleção “móbile” [Lumme ] e as edições da poesia de Ruy Belo no Brasil [7Letras]. Escreve a coluna “trabalhos no subsolo” para a revista Revestrés.

 

 

Julia Raiz e Ricardo Corona tentam dançar com o palhaço e o matemático

Vi em sonhos um terreno deserto. Era a praça do Mercado de Weimar. 
Havia escavações em curso. Também eu escavei um pouco a areia. E vi 
aparecer o pináculo da torre de uma igreja. Não cabendo em mim de alegria, 
pensei: um santuário mexicano pré-animista, o Anaquivitzli. Acordei a rir. 
(Ana = àvá; vi = vie, witz = igreja mexicana [!]).Trabalhos no Subsolo. (Walter Benjamin)

 

“[…] que a banalidade que aparece hoje consensualmente como literatura não se arrogue em breve um direito de exclusividade.”

Silvina Rodrigues Lopes

Ricardo Corona nasceu no Paraná, em Pato Branco, 1962. Julia Raiz nasceu em São Paulo, na capital do estado, 1991, vive em Curitiba. Ricardo também. Há uma distância de tempo e temperatura com o pensamento no traço do que ainda é escrever, inscrever, ex-crever, mover a mão ao contrário dela mesma. Lê-los assim seria apenas estabelecer uma trajetória de geração, “poetas hoje” ou como se o futuro ainda fosse amanhã e não tivesse sido antes de ontem. Ricardo Corona publicou uma série de livros diferidos para empenhar sua tarefa política, como poeta, do forte Cinemaginário [1999] até o híbrido Tortografia [2003, com Eliana Borges, companheira de aventura e projetos abertos] ou, ainda, as tangências de Corpo sutil [2005, que tem na capa o colo de Joana Corona, 1983-2014, poeta e artista visual sem tamanho] e Curare [2011] entre outros. Editou revistas como Medusa e Oroboro, também com Eliana, virando ao avesso os planos fechados da literatura e imaginando maneiras intensas de desmontar as ideias de centro, centralidade, dinheiro, controle, poder. Coordena, com ela, a editora Medusa, e tem feito um esforço maior que as pernas para mover uma circulação de livros mais arejados do que o que banalmente se vê país a fora, uma espécie de recuperação do sonho de liberdade e desejo de memória. Ricardo é jovem o tempo inteiro, carrega consigo o vezo da coragem.

 

Julia Raiz parece perseguir com agudeza e sentido o caráter do que Ángel Rama não conseguia ler, o caráter de los jovenes, e que segundo Raul Antelo são sempre sequestrados nas análises de Rama. Haveria nos jovens certa irreverência desbocada, ironia perversa, poesia em movimento sem eira nem beira e, muito, de como fazer-se um outro e como colocar-se à distância de si mesmo. Os jovens, amplia, despertariam paixões sem um mero mimetismo de linguagem, seriam atravessados pelo fortuito, pelo o que pode não ser, por indisciplina, antimodelos, disponibilidade ambivalente, forças de confrontação, inclusão excludente, baixo materialismo etc. O exemplo com o qual Raul opera, diante de Rama, é Glauber Rocha. Rama viu em 1971, ao lado de Antonio Candido, uma sessão de Deus e o diabo na terra do sol, na 5.a Mostra de Cinema Latino Americana de Gênova. Estamos em outros tempos, outras circunstâncias, a mutação antropológica nos levou a um único motivo de vida: o consumo. Os “jovens” hoje estão, invariavelmente, envelhecidos, conservadores, preguiçosos, mímicos. Assim, imaginar que o trabalho de Julia se aproxima, mínima e minimamente, daquele caráter de juventude que Glauber movia, se talvez mesmo que só como referência, já é distinguir uma operação também mais arejada do que o que se vê país afora e, assim, alguma tentativa de recuperação do sonho de liberdade e desejo de memória. É tradutora, faz o podcast Raiz lendo coisas, publicou Diário: a mulher e o cavalo [2017 / 2023] e as plaquetes p/vc [2019] e cidade menor [2020].

Por todos os lados o que se vê é uma penca exclusivista da ideia única – monocultura, ou seja, grana – para o poema, para a poesia, para a literatura em direção ao centro tal como ele é, preenchido e conformado.

Importante lembrar que em 1927 quando Walter Benjamin, sempre jovem, lê O circo, livro de Ramón Gomez de La Serna, publicado 10 anos antes, está exatamente lançando-se à tentativa de recuperação do sonho de liberdade e como isso ainda pode contra a aridez capitalista reificada e reificadora que arremessa tudo para a banalidade. É a imagem de Ramón Gomez gritando no alto de um trapézio em Milão que o fascina, e anota: “a verdadeira liberdade dos povos seria antes de mais nada conquistada em um circo.  […] há apenas duas profissões que naturalmente sejam fiadoras da liberdade, e nenhuma das que se possa  geralmente pensar: […] os matemáticos e os palhaços: o mestre do pensamento abstrato e o mestre da natureza abstrata. A liberdade garantida por suas assinaturas é a única na qual eu confiaria.”

Benjamin percebe que a figura do poeta, comercializada e comercializadora, foi completamente engolida pela terra árida do capital. O poeta não passa de “um pobre diabo consumidor”, ou seja, o poeta já era. E aí, projeta um ponto de insurgência: enfrentar a mercadoria banal que aparece como literatura com um levante da própria mercadoria contra si mesma e, ao mesmo tempo, mover algo entre imaginação, violação subterrânea e oscilante, encantamento e experiência mágica, escavar, recordar, trabalhos no subsolo, “Anaquivitzli = Ana = àνά; vi = vie; witz = igreja mexicana” e “não se caber de alegria” ou ainda “acordar a rir”. Mas, por todos os lados, o que se vê é uma penca exclusivista da ideia única – monocultura, ou seja, grana – para o poema, para a poesia, para a literatura em direção ao centro tal como ele é, preenchido e conformado. Cumpre-se, assim, muito mais um dever de memória, que é o de seguir à risca o que se toma como “os ritos do mercado literário”, do que a aposta arriscada, disponível e de esvaziamento para um desejo de memória.

A feira literária de Itabira foi patrocinada pela Vale. O violento e irresponsável modelo de mineração no Brasil patrocina uma feira literária na cidade onde nasceu Drummond, que negou por 3 vezes sentar numa cadeira da ABL para encher o próprio saco.

Não à toa, por exemplo, muito recentemente, a feira literária de Itabira foi patrocinada pela Vale, a mesma que em 05/11/2018 explodiu com seu rejeito a barragem de Fundão, junto com mais outras duas empresas, Samarco e BHP Billiton, em Bento Rodrigues, distrito de Mariana, Minas Gerais. Não demorou e em 2019 uma nova barragem da Vale se rompe, em Brumadinho. O violento e irresponsável modelo de mineração adotado no Brasil patrocina uma feira literária na cidade onde nasceu Drummond que, sabemos, negou feito um Quéfas elegante, por 3 vezes, sentar numa cadeira da ABL para encher o próprio saco; além de, muitas vezes, nos anos 1960 e 1970, com a força de um jovem perene e revolto, melancólico e vertical, denunciar em poemas e crônicas o que acontecia em Itabira por causa da mineração: “O Rio? É doce. / A Vale? Amarga. / Ai, antes fosse / Mais leve a carga. // […] // Quantas toneladas exportamos / De ferro? / Quantas lágrimas disfarçamos / Sem berro?” e “Sempre se chamou a indústria da mineração de indústria ladra porque ela tira e não põe, abre cavernas e não deixa raízes, devasta e emigra para outro ponto.” E pasme-se, se for o caso, o garoto propaganda da feira e da Vale foi o mais novo e controverso assentado numa cadeira dessas. E aí Silvina Rodrigues Lopes é precisa: “Quando um escritor aceita o lugar de símbolo, dispondo-se a ser homenageado pelo poder político, aceita uma forma de cooperação com o inimigo, colocando-se a si próprio contra a obra que escreveu, se ela existir.”

O garoto propaganda da feira e da Vale foi o mais novo assentado numa cadeira da ABL. Silvina Rodrigues Lopes é precisa: “Quando um escritor aceita o lugar de símbolo, dispondo-se a ser homenageado pelo poder político, aceita uma forma de cooperação com o inimigo, colocando-se a si próprio contra a obra que escreveu, se ela existir.”

Na outra ponta do parafuso, entre morar o vazio e guardar o céu no bolso, estamos diante da moeda falsa que Ricardo Corona, numa ponta de abismo, e Julia Raiz, noutra ponta, numa metaformose, provocam como impasse diante disso. Numa trajetória de dançarino sutil, Ricardo volta o corpo para uma dança com o horizonte da Terra, tanto como precipício matemático, a linha inventada para dominação, quanto como perspectiva de aventura para nada, a linha percebida e absurdamente reinventada pelo palhaço. Os livros morada do vazio, de tankas, e nuvens de bolso, haikus, que vêm numa caixinha delicada [Editora Iluminuras], são mínimos movimentos que podem ser lidos como um contraponto à figura envelhecida e pouco insolente do poeta. Responder a isso é deixar ativas as perguntas essenciais, nada de pactos ensimesmados ou fechados com o que ou quem não sabe pensar nem se tensiona ao pensamento, é tocar o poema com as linhas da espiral. Os prefácios dos livros trazem um incisivo trajeto conceitual da formas japonesas e, ao mesmo tempo, do percurso de incorporação ao seu trabalho, desde os tankas d’O pequeno tratado de brinquedos, do genial Wilson Bueno, até as diabruras de Paulo Leminski com o haiku, sem forçar a barra de uma tradição que não há, mas que em Curitiba, ao contrário do que se imagina, floresce. Coisas como “dia de sorte / morri o dia inteiro / sem pensar em morte” ou “alongamento / estique o ciático / até soltar pum!” que apresentam impasses de riso e flor do mal, até coisas como “fora de nós / nasce o mundo / ao ar livre” ou “outono indo embora / formigas em fila levam / as folhas que ficaram” que, de outro modo, tocam a vertigem da natureza larval que ainda não apreendemos, nem somos.

O impacto desses dois imensos esforços, os dois novos livros de Ricardo Corona e o livro de Julia Raiz, está no gesto impossível de tentar dançar não mais como poetas, nem com os poetas, mas com o palhaço e o matemático, pensamento radical e natureza vã, a abstração levada ao limite da existência.

 

O empenho de Julia é com uma prosa de leitora de vida e mundo e de construtora de uma biblioteca no corpo, ao mesmo tempo íntima e extima, um solavanco à figura de Ovídio, o romano, colecionador de imagens eróticas que gostava de falar apenas de si mesmo, no encantador As metamorfoses do Sr. Ovídio [Editora Arte & Letra]. Há na personagem desenhada, como uma garatuja, por Julia, uma válvula de bomba, “amar as coisas pequenas” e “as escalas erradas”. Depois, morador do Nordeste brasileiro, casa alugada, sem neve, com perucas, estômago sensível, louca do jardim, esgoto a céu aberto. É um inseto, luta para invadir-se como ser humano, viaja no espaço, no tempo, no corpo, exila-se, é gado, chamou-se Silano, amante de Julia, filha de Augusto, o imperador, o coração de Ovídio se engana, é procurado pela polícia, a polícia é todo mundo etc. As frases, períodos, parágrafos, fragmentos, capítulos imaginados por Julia para a personagem são, a cada sopapo, imagens impressionantes de força e expansão de sentido. Tudo é desmesura e descabimento, alucinação e história mal contada [outra vez Leminski, quando investe contra a prosa brasileira padronizada, completamente sem imaginação e fixada ao mercado com realismo precário]: “Os olhos melados do Sr. Ovídio, que como os olhos da abelha são oblíquos, são as únicas coisas que descreveram como gentis” e “É uma religião do mal: duas libélulas fazendo amor enquanto voam, duas libélulas grudadas enquanto ainda no ar”.

O impacto desses dois imensos esforços, de los jovenes, os dois novos livros de Ricardo Corona e o livro de Julia Raiz, está no gesto impossível de tentar dançar não mais como poetas, nem com os poetas, mas com o palhaço e o matemático, pensamento radical e natureza vã, a abstração levada ao limite da existência. E isso, principalmente, sem perder de vista que no cálculo estrutural “esforço é um estágio da experimentação em que o corpo se deformando começa a deformar, por sua vez, o corpo deformador”, ou seja, uma metamorfose, morada vazia da forma, nuvem de bolso, moedas falsas, literatura como imaginação rara contra a vida construída a mísero pó de ferro .

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Quase uma história e os poemas sem inocência de Chantal Castelli

Vi em sonhos um terreno deserto. Era a praça do Mercado de Weimar. 
Havia escavações em curso. Também eu escavei um pouco a areia. E vi 
aparecer o pináculo da torre de uma igreja. Não cabendo em mim de alegria, 
pensei: um santuário mexicano pré-animista, o Anaquivitzli. Acordei a rir. 
(Ana = àvá; vi = vie, witz = igreja mexicana [!]).Trabalhos no Subsolo. (Walter Benjamin)

 

“Não existe o alhures. Estamos todos aqui. ”

Pier Paolo Pasolini

Estamos, há muito, em tempos sem inocência. Num texto de maio de 1969, “Monstros e monstrengos”, Pier Paolo Pasolini, poeta e cineasta italiano, denuncia que “a inocência não existe, ninguém é um anjo vítima do diabo”. E aponta a chantagem como um modo desse jogo moralista e judicativo, além de uma busca por monstros para que sejam linchados antes; do quanto há uma necessidade imediata de linchamento. Daí que diga, com força, que o moralista só aponta o dedo a outrem, nunca a si mesmo. Toda a responsabilidade é – eis a moral da pequena burguesia, que, aliás, fica muito aborrecida quando a sua moral não se cumpre –, biblicamente, das maldições divinas. Pouquíssima ou nenhuma diferença entre a civilização de Himmler e dos Lager para a que nos modela agora, em tempo real, como vigilância e violência. É a expressão de Max Weber, “o monopólio da violência”, para dizer das sociedades capitalistas, que faria tanto sentido ao pensamento de Walter Benjamin, desde o texto Para uma crítica da violência, 1921, até as Teses sobre o conceito de História, 1940: “a violência que  mantém o direito é a mesma, a partir do direito, que nos ameaça.”

Repare-se na disputa grosseira entre duas figuras que dizem decantar o encantamento a partir da floresta por um assento numerado para o chá da tarde numa academia de letras, quando, se a coragem ainda é um ato sério, poderiam se juntar pra tentar fechar de vez todas essas academias que não dizem nada, se prestam a nada.

 

Nessa estrutura mímica, repare-se agora, por exemplo, 1] na quantidade de jovens estudantes e poetas celebrando e anunciando que foram jurados da primeira etapa de um desses prêmios literários, felizes pela circunstância de um pacto circular, sem elipse, sem corte, sem abertura, sem desmonte. Baudelaire disse que um prêmio literário fomenta a hipocrisia, há algo que fere tanto o homem quanto a humanidade, ofusca tudo. E é Pasolini quem reclama do pacto dos estudantes com seus superiores quando estes passam a determinar onde e como serão as assembleias daqueles; é também quem denuncia a passividade de Ungaretti quando a  burguesia italiana o transformou num “poeta oficial” e ele não fez nada para que isso não acontecesse; 2] na disputa grosseira e agressiva entre duas figuras que dizem decantar o encantamento a partir da floresta e da seiva do coração com os tempos do primitivo por um assento numerado para o chá da tarde numa academia de letras, oficialização e mudez, quando, no mínimo, se a coragem ainda é um ato sério, poderiam até se juntar pra tentar fechar de vez todas essas academias que não dizem nada, se prestam a nada.

Chantal Castelli | Foto: Ricardo Rizzo

O apontamento é, precisamente, diz Pasolini, “as coisas que o poeta enfrenta na juventude, e sobre as quais, mais tarde, quando já velho, se cala.” E é essa ausência completa da inocência que Chantal Castelli [1975, SP] traça sem piedade nos poemas de Para que os inocentes não tenham tempo [Corsário-Satã, 2023]. A poesia de Chantal, há muito, já incorpora os sentidos abertos de uma esferologia limite com os impactos sociais e políticos de uma vida com violência, do corpo a corpo, do mero convívio doméstico à rua, da rua à miséria, da miséria ao direito, do direito ao ritornelo da violência etc. E isto é o fundamento do espectro da política, integralmente, nos móbiles em que estamos girando ao redor dos centros do dinheiro. Leia-se, pois, os livros anteriores de Chantal, como Memória Prévia [Com-Arte, 2000] ou Os cães de que desistimos [Hedra, 2016]. Está muito claro o quanto Chantal lê, entende e percebe o buraco da interrogação “quid tum”, algo como “e então, e agora?”, e que esse buraco não pode ser inscrito a partir de um mero desenho íntimo, familiar, narcísico, autobiográfico, frágil, atoleimado. Mas sim, recuperando o gesto do quanto uma perspectiva da história ainda descende, noutro exemplo, da técnica de Ptolomeu, quando transforma o globo em um mapa, ou seja, num espaço reto de controle e poder. E isso coincide com a construção do Hospital dos Inocentes, em Florença, projeto arquitetônico de Filippo Brunelleschi, com um pórtico que funcionou até 1875, onde se enfiavam os enjeitados, os inocentes, as crianças recusadas por seus pais. E é dessa violência de morte, biopolítica imperiosa, da qual surge o nome do Renascimento: esta segunda natureza que advém apenas para fins civis.

Para que os inocentes não tenham tempo [Corsário-Satã, 2023], de Chantal Castelli, faz lembrar que se ainda há uma tarefa política ao poema, ela é uma luta contra a violência da afasia moralista e, ao mesmo tempo, luta contra as novidades banais do mercado e o egocentrismo que buscam anular e negar toda estranheza à poesia.

É uma linha rara, raríssima, de pouca palavra e muitos esforços de linguagem, imagens empenhadas e um trabalho minucioso de demora e método, esta por onde Chantal constitui a poesia que imagina como vinco, sulco, saliência, salto, origem. Não é uma vida de retaguarda como a normal e naturalmente aparecida numa poesia de fundo raso, molinha, cheia de truques, idas a cafés, passeios, encontros de disse me disse ou quem diz primeiro para ir à feira literária mais festiva, mas trata-se de uma poeta – quando esta palavra ainda é a recuperação do sentido de quem avança à frente –, que se lança às linhas onde elas começam, quando há uma solidão perigosa e quando a ideia de independência é política. É a violência sacrílega e iconoclasta que sustenta o limite dos poemas de Chantal, desde o primeiro poema do livro, Anamnese, com 10 fragmentos, que refaz o ímpeto profanatório de Abrãao: matar Isaque; até o último poema do livro, Sazão, uma espiada na passagem do tempo em suas delicadezas, que nos lança diante da imagem que nos devolve a todo o livro: “Quase uma história.”

Para que os inocentes não tenham tempo [Corsário-Satã, 2023], de Chantal Castelli

O livro tem 5 partes [Autofágicas, Extremo ríspido, Ode à mãe, Outra língua entre os dentes e Sazão] que se amalgamam num jogo de síncopes do corpo, ou de corpos, que se engendram entre figuras conhecidas, como uma mãe e uma filha, um pai e uma guerra, uma placenta e um Anaximandro invisível, uma criança e o músculo do desejo, o fígado e o inferno etc.  Mas é o vocabulário diferido e os modos de uso desse diferimento que nos impõem os poemas de Chantal sob uma perspectiva modulada, nunca linear, uma singularidade do que ainda é pensar: a poesia como um pensamento imprevisto, heterogêneo, contingente e sem centro. Poemas, por exemplo, como Garota-bomba ou Outra Pietá, de partes diferentes do livro, se desintegram ao roçar a fratura do que ainda é uma experiência: “Ninguém espera que uma menina ande por aí / com uma bomba embaixo do braço” e “Acabo de parir, mas quem sentiu as dores e convalesce (como quem se livra de uma doença) com minha filha no colo é ela.” Quase em seguida, há no poema Duas cidades, um descompasso entre “teste” e “bombardeio” e, bem antes, há no poema Recuo, um desdobramento do termo “partout” e a aderência do corpo a uma segunda pele, a outra violência, a alguma esperança.

Esse é, um pouco, o pesa-nervos dos poemas de Chantal: dispor em xeque qualquer inocência e toda liberdade numa busca incansável para existir – como uma jovem estudante ou poeta – sem pedir licença a superiores e habitando apenas os telhados, se for o caso. Para que os inocentes não tenham tempo é um livro que faz lembrar que se ainda há uma tarefa política ao poema, ela é, no mínimo, uma luta contra a violência da afasia moralista dos dias, a da lei e, ao mesmo tempo, uma luta contra as novidades banais do mercado e o egocentrismo que buscam anular e negar toda estranheza à poesia.

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Manoel Ricardo de Lima [Parnaíba, 1970, professor do PPGMS e Escola de Letras, UNIRIO. Pesquisador CNPq, PQ-2], publicou A guerra da água [7Letras] Xenofonte [Cultura e Barbárie], O método da exaustão [Garupa], Avião de alumínio [Quelônio, com Júlia Studart e Mayra Redin] entre outros. Organizou, entre outros, Uma pausa na luta [Mórula]. Coordena a coleção “móbile” [Lumme ] e as edições da poesia de Ruy Belo no Brasil [7Letras]. Escreve a coluna “Trabalhos no subsolo” para a revista Revestrés.

 

 

 

A mátria de Laís Romero ou digitais impressas no tempo

“não tenho pátria, tenho mátria
   e quero frátria”

Caetano Veloso

 

Em 1965, Elsa Morante profere a conferência Pró ou contra a bomba atômica 3 vezes, em Turim, Milão e Roma, depois a publica na Europa Letteraria em abril daquele ano e, só em 1984, em Linha de sombra. Na conferência, traduzida e prefaciada no Brasil por Davi Pessoa e publicada em 2017 [Editora Ayiné], ela indica o “sistema de desintegração” em que vivemos diante das ameaças constantes do capital e a da era atômica; agora, isso se implicaria sobre a era tecnológica da IA afásica que relega todo e qualquer caráter entre carne e sangue ao jogo da ineficácia, ou seja, imprestável ao dinheiro. Ao mesmo tempo, Elsa chama atenção à tarefa política do escritor, da escritura, frente a esse tempo, e difere severamente as atribuições do poeta das do literato, porque este último sempre se volta à banalidade do “mercado editorial” e seus aparatos de conluio e glória, nada diferente das relações, por exemplo, entre Gabriele d’Annunzio e Benito Mussolini: favores e bajulação, ou seja, ampliação porosa do fascismo.

O que Elsa Morante projeta é pensar em que momento o papel da poesia ainda é ao contrário, e contrária, ao sistema expandido de desintegração em que vivemos. A resposta aberta que encontra, e que apresenta também como pergunta, é: NENHUM. E desenha, com extrema radicalidade, uma aposição entre Eros e Tânatos, outra vez, para nos lembrar que sem Eros, seducere, sobra-nos o ilusionismo do segundo que nos desvia, fatalmente, do real, nos deixando apenas a narcísica “evasão de si mesmos”: alienação e intimidade, regressão ínfima e angustiante, tráficos oficiais e mercado fúnebre, luta das imagens sem luta de classes etc. E sem perder de vista que o que gira e engendra uma teoria da imaginação contra esse “sucesso” glorioso é a realidade, daí que o exemplo que dá é Miklós Radnóti: poeta húngaro, muito jovem, morto no Lager, golpe na nuca, antes obrigado a cavar a própria cova, existência reduzida ao horror espectral, “um caderno, uma lanterna, tudo me foi tirado pelos guardas do campo, escrevo versos no escuro” e “agora a morte é uma flor de paciência”. Elsa diz, com força e boniteza, que Radnóti deixa “milagrosamente, a prova de que mesmo dentro daquela máquina perfeita de desintegração, que o aniquilava fisicamente, sua consciência real permanecia íntegra”.

Não há muita diferença entre a estrutura dos Lager e a estrutura da cidade moderna-contemporânea: a voracidade onívora e indômita do capital, além de bélica, é inesgotável e assassina; o real desaparece e o que escapa torna-se imediatamente a regra para uma existência mímica pactuada com tudo o que a ilusão do dinheiro oferece. É o contraponto do contraponto até o contraponto, infinitamente, mover-se entre um nem sim nem não, desejar o desejo, espaços e tempos desejantes, abertos, livres, caminhar, caminhar mais. A primeira parte do primeiro livro de poemas de Laís Romero, Mátria [Editora Paraquedas], vontade de frátria, filos, se chama exatamente desejo. E assim, tão logo, anota: “tateio a língua”,  “tateio o lábio” e “o solo irrigado / o reverso, o sumo / verde-escuro / plantação”. Nascida em Teresina, no Piauí, em 1986, arrisca o poema com imagens de força e sem compaixão alguma à língua, aos jogos de azar da vida e do mundo e modulando um desafio à toda e qualquer lógica imposta entre cultura e memória fixas; algo muito prenhe a partir de “persistência”, “assisto” e “escrevo” como “metáfora abissal”.

Em seguida, a série de imagens é impressionante: “dança em dança”, fome de “comer suas peças pelo pescoço”, “melancolia vermelha / e pavor”, “correntes mais violentas”, “muitos metros de pele”, “coisa leve do impossível”, “digitais impressas no quadril”, “as mortas falam”, “tempo para o desejo / tempo para perder a hora”, “imensos blocos de concreto / armado / velozes blocos que não permitem / a ousadia da distração”, “há um veneno lento”, “o brilho do chicote encerado”, “são tantas as pessoas que podemos trair” etc. Laís avisa e, ao mesmo tempo, denuncia que este seu livro magro é imparável, tal como um pé esquerdo inquieto capaz de chutar canelas fixas e conformadas, e também uma convocação à construção de uma comunidade de mulheres tal como a imaginada por Emília Freitas, no sertão do Ceará, em 1889, para enfrentar com risco o ignoto patriarcal: mátria = frátria. Não à toa a segunda parte do livro é mátria, que dá título ao livro, e a terceira e última é pathos, mas num diferimento ao patético do gesto incapaz de dançar.

Andar à beira de abismos, dançar à beira de abismos, o alarme de incêndio que vem de Nietszche, aqui, se reconfigura no que se imprime no tempo, com o tempo, para o tempo, até porque se está diante de um trabalho que é, segundo ela mesma, um “feito irresponsável de mulher / uma poesia tímida e vadia / que se arrisca”, o poema que é escrito enquanto “queimamos pessoas / … / rasgamos a pele / ofertamos os filhos” e “lutamos em guerras / em cima de nomes / que lhes demos / por não sabermos / seus idiomas secretos?”. Salta, como uma origem, Ürsprung, o poema O meu país, quando escreve um contrário à farsa democrática; repare-se em alguns fragmentos: “atuar meu papel / pardo / nordestino e calado / de mulher // o país morre agonizando / em calçada”, “andar num ônibus lascado / quente e abafado”, “vivendo / de boa vontade / a caridade é o papel do / religioso engajado e a / igualdade é pacto”, “arder na saliva branca do ódio de / uma gente sem astúcia sem / delírio”, “arredia e valente / igual à ancestral / capturada para casar / e de sucessivos estupros / fazer brotar / o meu país”.

Foto | Régis Falcão

Laís Romero imprime, de fato, uma “busca pela coragem”, quando se entende que a coragem, ou uma coragem, é “há alguém a algo” e, numa transparência, “há algo a alguém”; está em Hölderlin, a palavra do poeta [Dichtermut] só é se uma coragem, um perigo, um ajuste de contas, rival do mundo etc. E o mais interessante e pertinente, ainda, nesse Mátria, é o tanto e o quanto a anotação de um EU e de um MEU nem são o desamparo da intimidade vazia nem muito menos a tentativa em tomar a posse de nada, mas sim uma disseminação ao que não é pertença, colapso de tudo, “fogo e valsa” e quando é o corpo que diz “a rata em marcha solitária”.

O trabalho de Laís se imprime no tempo e se junta, com a delicadeza da porrada – e que ainda pode nos liberar do esgotamento industrial de uma poesia piedosa e cristã feita no Brasil e publicada por grande editoras, sem vísceras, logo sem experiência, mera vivência íntima e pessoalizada, vidinha em família –, à poesia de Renata Flávia ou de Aline Prúcoli, de Júlia Studart ou de Annita Costa Malufe, de Marcela Maria Azevedo ou de Rita Isadora Pessoa, de Chantal Castelli ou de Veronica Stigger, de Joice Nunes ou de Sara Síntique, de Gabriela Perigo ou de Amora Pêra etc.  É que estamos o tempo inteiro diante de uma guerra que não acaba nem acabará, Laís sabe, e diante de uma guerra “o inferno é”, ela avisa na última linha do livro.

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Manoel Ricardo de Lima [Parnaíba, 1970, professor do PPGMS e Escola de Letras, UNIRIO. Pesquisador CNPq, PQ-2], publicou A guerra da água [7Letras] Xenofonte [Cultura e Barbárie], O método da exaustão [Garupa], Avião de alumínio [Quelônio, com Júlia Studart e Mayra Redin] entre outros. Organizou, entre outros, Uma pausa na luta [Mórula]. Coordena a coleção “móbile” [Lumme ] e as edições da poesia de Ruy Belo no Brasil [7Letras]. Escreve a coluna “trabalhos no subsolo” para a revista Revestrés.