Vi em sonhos um terreno deserto. Era a praça do Mercado de Weimar. 
Havia escavações em curso. Também eu escavei um pouco a areia. E vi 
aparecer o pináculo da torre de uma igreja. Não cabendo em mim de alegria, 
pensei: um santuário mexicano pré-animista, o Anaquivitzli. Acordei a rir. 
(Ana = àvá; vi = vie, witz = igreja mexicana [!]).Trabalhos no Subsolo. (Walter Benjamin)

 

“Um trato de amor sobre os degraus de

um túmulo. Mas não é uma profanação.”

Emília Freitas, 1889

Angel Rama, crítico uruguaio [1926-1983], imagina a literatura diante de um impasse antropológico, porque uma das mais dóceis projeções intelectuais é a sub-reptícia fé no progresso, fé que leva-se a pensar que as últimas novidades são sempre as melhores coisas porque operam em confronto com algum oposto simétrico, que seria, noutro sentido, um pensamento desinteressado de qualquer verdade revelada. Assim, a escritora e intelectual argentina, María Negroni [1951- ], lendo Walter Benjamin, atenta à disposição naturalizada de uma linha evolutiva frágil e insensata, o inscreve como um fazedor de enciclopédias mágicas. Estas, por sua vez, organizadas entre micrografias do desejo e alumbramentos do inesperado, a pobreza abjeta e o luxo insolente dos dados do mundo, os fracassos e os testamentos etc. Um bom exemplo é o fascínio de Benjamin pelo circo, este espaço rodeado por um ar fabuloso, com jaulas vistosas e animais cativos que esfumaçavam esse ar.

Interessante lembrar uma proposição de Paulo Leminski quando afirmava que durante os anos 1970 o melhor da poesia brasileira estava nos encartes de discos. Era um esforço para sugerir alguma sobrevivência à arte diante do capitalismo com sua armadilha fundamental: a transformação de tudo em mercadoria.

Estamos diante de um método de trabalho com o pensamento que tem a ver com uma miniaturização das coisas do mundo, ou, ainda, do pequeno mundo das coisas. Uma beira arriscada, porque microscópica e frágil, infinitamente inapreensível; tal como poderia ser a tarefa política do poeta, quando recupera a vertigem das crianças, arqueólogos lúcidos do vínculo inaparente entre nostalgia e rancor, aventura e jogo. Para Benjamin, sabemos, o poeta é aquele que exerce um procedimento combinatório impensado, impossível, para imaginar um mundo que virá depois dele, uma memória insuficiente para algum futuro. O imprevisto opera no empenho das afinidades secretas, ou seja, pensamento desinteressado, contra o descompasso da língua que, por sua vez, opera como controle e constituição objetiva da violência para organizar o modelo civilizatório de verdades reveladas.

Estamos diante, agora, de uma ideia de “poesia atual”, “contemporânea”, que muito pouco atua e promete menos ainda, porque quase toda ela é o que Rama toma como “corpus doutrinário”. Este corpus, no caso irremovível do terceiro mundo, a América Latina, por exemplo, da qual o Brasil é um país vizinho, ainda se apoia numa concepção exaurida: uma ideia fossilizada de autor, que é invariavelmente um produto de feira, sem trocadilho, e uma produção mais fossilizada ainda para uma circulação padronizada. Daí que, muitas vezes, a argamassa dessa produção seja cafona, um disse me disse que beira a fofoca, uma renúncia do corpo, sem violação normativa, sem voz, logo sem grito e sem silêncio, condenada a ter a língua arrancada.

Isa Graça | Foto: Luana Tayze

“Nem o rumo dos pássaros / Nem o curso do mar / Nem engolir a seco / Vão me fazer acostumar”.

Interessante lembrar, como contra exemplo, uma proposição de Paulo Leminski quando afirmava que durante os anos 1970 o melhor da poesia brasileira estava nos encartes de discos. Era um esforço para sugerir alguma sobrevivência à arte diante do capitalismo com sua armadilha fundamental: a transformação de tudo em mercadoria. E é essa transformação, prossegue o Leminski, que dá a um trabalho com a arte a ilusão de ser livre. Não à toa, repare-se, o disco de Isa Graça, Corpo Celeste [2024], nascida na Baixada Fluminense e radicada em Natal, no Rio Grande do Norte, abre com uma canção chamada Vênus [Estrela D’alva], que termina sugerindo a recomposição de uma sobrevivência: “Sonhos desaparecidos no meio de nós / Cantando que não vão calar minha voz / Soberana flor regada por sóis / Explodir meu algoz”. São canções de amor, impressas sobre um tempo em que o amor resulta inútil, porque é mera palavra de ordem que despreza, convicta, a figuração de levante da presença daquilo que é, Eros.

Todo o disco de Isa Graça relembra, de pronto, o livro mais bonito com poemas de amor que foi publicado mais recentemente, O livro de Carolina [7Letras, 2019], de Carlos Augusto Lima. É a construção de uma linha tensa entre a música – numa conversa direta com algo de psicodelia, como Tame Impala, raspando algo dos Mutantes e da turma genial do Clube da Esquina –, e letras encantadas, casos de Farol, no trecho “Como sua pele ressoa o sol / O mais bonito do farol / Que guia o navio no nevoeiro / O inverno inteiro”, e Tamarilho (afrobeat), também um trecho, “Nem o rumo dos pássaros / Nem o curso do mar / Nem engolir a seco / Vão me fazer acostumar”. Os usos da repetição, muito comum numa tradição da canção brasileira, sugere jogos de armar, o puzzle impraticável e insensato do desejo entre perda e compensação, reparação e desmando, nem lá nem cá, nem torto nem de pé, nem dormindo nem muito menos acordada. A escolha do nome Gracinha, para a banda, com as presenças de Rodolfo Almeida, baixo e vocais; João Victor Lima, guitarras; Mateus Tinoco, nos samples; e Pedro Lucas Bezerra, na bateria, se juntam aos instrumentos que ela mesma toca, da guitarra ao baixo, e voz doce daquela que se sabe mulher, homossexual e preta, recompondo os sentidos da delicadeza e da violência de uma “lucha contra este deseo”, como quando canta em espanhol na linda canção Cuantame.

“As mulheres cuspindo fogo/ para o alto/ para onde Deus não olha /[…]/ rezam baixinho/ sabem fazer colares de miçangas/ jogam futebol com os meninos/ e seduzem quem tiver/ assim na distração das margens”.

Pedro Lucas Bezerra | Foto: divulgação

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

A figura de Pedro Lucas Bezerra na bateria da Gracinha é praticamente um espectro, no sentido mais radical da ideia, como a projeta o filósofo argentino Fabian Ludueña Romandini: “um esse objectivum, mais precisamente uma entidade de pensamento puro e, portanto, um atributo possível da natureza sobre a modalidade do pensar” e “a vida mais intensa possível”. Logo, o espectro não se vincula à metafísica, mas a materialidade do impossível. Está ali, ao fundo, chiaroscuro, ao mesmo tempo, a deliberação de uma ideia para o poema, o poeta, que publicou Trem Fantasma [Quelônio, 2021], redesenhando a cidade de Natal, onde nasceu e vive, cidade estrangeira, tal como um Nicanor Parra baterista, “o último poeta do mundo”, morto aos 103 anos, quando “de nada em nada, vamos caindo ainda um pouco”, anota Pedro no poema Para Nicanor Parra.

Dividido em 3 partes, tábuas de maré, tábuas de horário e os aterrados, o livro encena a cidade também como espectrologia, desde as epígrafes retiradas do Eclesiastes e de James Joyce, entre o que existe e o que não existe ainda, e a travessia de alguém por uma cidade em suas estâncias mais furiosas. Há muita linha de mar, de pedra, muitos cigarros, muitas solicitações urbanas comuns a todas as cidades do planeta, tanto faz se em Tóquio ou em Ponta Negra, certa eletricidade musical de um trânsito fixo e um bocado de expectação com raiva: “meus dentes habitam as carnes / cortam os plátanos / anunciam a raiva / outra vez a raiva / meus dentes não me dão medo / e a eles me volto quando amos os cães” e “as mulheres cuspindo fogo / para o alto / para onde Deus não olha / […] / rezam baixinho / sabem fazer colares de miçangas / jogam futebol com os meninos / e seduzem quem tiver / assim na distração das margens”. São traços e apontamentos que vêm também da poesia Beat, “O Brasil é o país mais deprimido da América Latina” e “Não rimarei / não nadarei no absoluto / não lerei as cartas de Newton Navarro / não olharei o Potengi sob o abismo” etc., depois e muito de Carlos Drummond de Andrade, das presenças de Roberto Bolaño ou de João Gualberto Aguiar, tudo como esperança espectral de força política num trabalho que começa expandido na deliberação do poema: “a coisa-viva que nos amarra”.

Maíra Dal’Maz | Foto: Helis Verônica

Escrever é brincar com ruínas: “nunca vivi em casa alguma / onde o reboco não caísse”.

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Depois, Maíra Dal’Maz e seu livro Vira uma pedra o tempo [Patuá, 2024], nascida em Monte Dourado, no Pará, e que vive também em Natal. Heitor Ferraz, poeta e professor, diz que os poemas de Maíra são um redesenho de sentidos e aberturas entre o poema e a experiência com o poema. Rápido, nas primeiras páginas, se percebe que há uma construção de contaminação, virótica, entre a vida e o texto, o texto e a vida, sem hagiografia ou mistério, o poema está todo lançado ao chão da sobrevivência: quando o poema ainda é o corpo que o imagina inscrever e, ao mesmo tempo, quando o corpo se inscreve no poema como se num precipício de devoração. O poeta italiano Pier Paolo Pasolini, em texto de setembro de 1968, O medo de ser devorado, afirma que “somos ainda determinados em nosso destino pelo medo de sermos devorados” e “penso que o desespero é hoje a única reação possível à injustiça e à vulgaridade do mundo, mas só se for individual e não codificado.” Pasolini imagina que o medo de ser devorado é, numa oscilação consciente, o desejo de ser devorado. Imagem dialética de uma realidade infinitamente mais extensa do que os sistemas dominantes que a encobrem.

O livro de Maíra, dividido em 2 partes, Tempo e Pedra, é das coisas mais fortes que apareceram na poesia brasileira recente. E o é exatamente porque inscreve o desespero da confrontação do real em toda a gradação desmesurada do que um real é, impõe, projeta. Maíra devolve a língua à língua, todo terror e todo desejo que vêm até a devoração; basta ver que as marcas mais íntimas de seus poemas se ampliam e se desgastam ao demorarem num gesto para a comunidade, gesto que se aproxima de uma obscenidade que a “literatura” de agora não suporta, porque quase sempre é carola, cristã-capitalista culpada e ressentida, senão não vai pra feira financiada por empresas que matam pessoas e destroem florestas nativas o tempo todo como se não tivesse havido nada. Maíra, depois da entrada, diz no poema Escrever é brincar com ruínas: “nunca vivi em casa alguma / onde o reboco não caísse”. São apenas duas linhas e nenhum horizonte, esta linha matemática inventada para dominação, controle e poder.

A série que segue essa máxima entre escrever-brincar tem personagens geniais, porque destroçados pela religião e pela fome: uma avó e os tempos famintos, um pai ensacador de bolachas, outra avó que não come polenta porque esta sabe a fome, uma mãe vendedora de flores de pano e sonâmbula etc. Importante ler o quanto a imagem do desespero, ou o desespero mesmo, ainda não é um mero contrário de esperança,  mas sim o desejo de sobreviver com esperança e, mais, o desejo de sobreviver à esperança que é o enlace dessa pedra/tempo, desse tempo/pedra. Em poemas como Belchior, uma referência direta ao cantor e compositor dos mais geniais da canção brasileira no século 20 [que aparece de novo, diretamente, no poema Lithium e em outras linhas por todo o livro, também como espectro], quando há uma disposição de jogo entre nascimento, medo, choro e viagem, uma vida e alguma coragem; e Solstício de verão, quando desempenha perguntas entre a terra, o tempo, uma vespa e a dimensão demoníaca de um “exatamente”, por exemplo, aparecem as questões que mancham esse obsceno desesperado. Tudo, no livro de Maíra, respira com dificuldade e, num sopro, com a erudição de um pensamento livre e errante, modulado por um vocabulário sertanejo, nordestino, aberto, desinteressado, contraria a fé no progresso e as linhas frágeis e evolutivas do que se toma como poema, agora. Leia-se aí os pequenos poemas, Amor: “jamais abrir mão dos rituais / fumaça, livros / vários nãos / nenhum filho”, e Joan Didioni: “Joan DIdion pergunta a seu sobrinho / se ele tem uma cobra / ele responde que não / que pega um ancinho e mata // se você mata uma cobra, / quer dizer que você a tem // é preciso registrar isso / o que se diz é um ato / de vida e de morte”, e pode-se imaginar o quanto se está diante da inscrição do poema como memória insubmissa e enciclopédia mágica.

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Manoel Ricardo de Lima [Parnaíba, 1970, professor do PPGMS e Escola de Letras, UNIRIO. Pesquisador CNPq, PQ-2]. Acaba de lançar O lado esquerdo + Jeanne Moreau [Mórula/Cultura e Barbárie]. Publicou, entre outros, A guerra da água [7Letras], Xenofonte [Cultura e Barbárie], O método da exaustão [Garupa], Avião de alumínio [Quelônio, com Júlia Studart e Mayra Redin]. Organizou, entre outros, Uma pausa na luta [Mórula]. Coordena a coleção “móbile” [Lumme ] e as edições da poesia de Ruy Belo no Brasil [7Letras]. Escreve a coluna “trabalhos no subsolo” para a revista Revestrés.