— Vó, tem uma naja no meu condomínio!
— Tá doida, menina? A naja não vive por aqui. Aí no planalto tem outras serpentes, literal e metaforicamente!
Por um bom tempo o WhatsApp se manteve mudo. Nada no FaceTime. E a avó, a 1.700 km de distância, em pânico. Por mais que tudo parecesse inverossímil, havia sempre a certeza da dúvida. Hoje tudo é possível. Principalmente quando falamos de Brasília.
Inquieta, procuro notícias. Os portais me dizem que no planalto central um rapaz está entre a vida e a morte por conta de uma picada de naja. O instituto Butantã, em São Paulo, tinha apenas uma dose do soro antiofídico específico, que o hospital aguardava enquanto uma hemodiálise tentava reduzir a carga tóxica do seu sangue. Um menino de classe média, jovem, saudável e com uma vida toda a seguir. Estudante de veterinária na UNB. Pronto. É o suficiente para o sono ir embora. Decido ligar.
— É verdade, mãe! A polícia ambiental esteve no condomínio para averiguar porque os pais do rapaz moram aqui. Mas já encontraram a cobra em outro lugar. Fica tranquila!
Como ficar tranquila? Pergunto aos meus botões depois da despedida. Não consigo entender o que aconteceu com o mundo. Parecia haver um caminho, um rumo, uma saída. E, de repente, tudo desandou.
Quando eu era criança, não tínhamos educação ambiental na escola. Valia o que a minha avó dizia: com a natureza não se brinca, se respeita! Valia para os banhos de cachoeira, para a contemplação das exóticas lagartas de fogo, para casas de maribondo e para as ondas do mar. Por inúmeras vezes, vi minha mãe matar cascavel quando ainda não existiam as leis de proteção e as instruções sobre os procedimentos adequados. Elas invadiam a nosso quintal no período das cheias do riacho que corria a poucos metros dali. Talvez fôssemos nós os invasores daquele espaço de reprodução. Não sei. Só sei que minha mãe precisava agir e nos proteger. O ato drástico era um alívio enorme para ela, que tinha visto um irmão agonizar sob o veneno de uma delas. Alívio também para a menina amedrontada que eu era. Cresci e trouxe comigo o pânico desses répteis escorregadios e traiçoeiros (os ambientalistas juram que não e eu tendo a acreditar. Racionalmente eu sei que o ataque é uma defesa, mas aqui o estereótipo me cai bem).
Morando a muitos metros do chão em um grande centro urbano, vi com alegria a educação ambiental chegar às escolas. O que minha avó dizia, agora era ciência e exigia estudo. Por incentivo da empresa em que eu trabalhava, fiz um curso de Gestão Ambiental. Como vibrei com os conceitos de sustentabilidade. Pensar no equilíbrio econômico, social e ambiental era garantia de futuro!
Dormi. Acordei com esse susto instalado no planalto central. Desde quando resolveram voltar a acreditar que leis ambientais atravancam o progresso? (ui! progresso é uma palavra que me causa arrepios!). Desde quando resolveram reativar o entendimento de que destruir a natureza é sinônimo de avanço? Desde quando resolveram que somos livres para criar najas no cerrado mesmo com a lei, a ciência e a natureza dizendo o contrário?
Não tem como não associar o fato com a tristeza de saber que o poder instalado no planalto nega a ciência, desmontou estruturas de fiscalização ambiental e, na área de economia, tem a mente enterrada lá pelos anos 1970. Como é que retrocedemos tanto em tão pouco tempo? Como nos deixamos envenenar em doses diárias desse discurso letal?
Não sei se o rapaz, que assumiu o risco de conviver com serpentes fora de seu habitat, sobreviverá. Espero que sim. Espero também que esse seja um tempo de reflexão, para ele e para nós que estamos adormecidos pelo encantamento de tipos diferentes delas. Que desperdício para uma vida que podia aprender com a natureza e fazer tanto pela humanidade! Que desperdício para um povo que vive sobre uma terra rica e exuberante, porém não sabe lidar com ela! Que desperdício!