Fui em busca de palavras do uruguaio Eduardo Galeano para compor o título. A frase fecha uma crônica, publicada em 1995, em que o autor descreve sua tristeza diante da tecnocracia do esporte profissional. Para ele, o futebol perdeu a alegria que nasce do prazer de jogar ao se transformar em um dos negócios mais lucrativos do mundo. Salvo apenas pelos poucos que se lançam na proibida aventura da liberdade. A leitura desse trecho me fez pensar e fazer conexões com o hoje, quando me chega a notícia de que uma árbitra foi agredida em uma quadra de futebol de salão dentro de uma universidade.
Não pensem que enlouqueci. Há lógica na minha conexão. Prossiga. No fim daremos as mãos.
Pois bem, em outra crônica do mesmo livro Galeano diz que “o árbitro é arbitrário por definição”. Ou seja, é a autoridade em campo. Cabe-lhe a interpretação da norma, no calor da hora, com aplausos dos justiçados e revolta dos que se consideram prejudicados. Impõe-se sua visão solitária do lance, embora hoje a tecnologia do VAR (video assistant referee) esteja prontinha para validar ou não suas decisões. No caso em questão, os vídeos amadores da torcida confirmam a seriedade do apito e dos cartões da árbitra que apenas cumpria o seu papel.
A reação agressiva de um indivíduo diante da frustração do desejo diz muito sobre a sua educação, sua situação momentânea, seus valores, seu controle emocional. No entanto, o que me leva a ocupar estas linhas com o tema são as reações de outros indivíduos diante do fato. O diretor de um clube esportivo afirma que “Mulher deveria apitar somente jogo de mulher”. Um estudante da mesma universidade escreve em uma rede social: “Culpa dessa organização também, que colocou essa mulher para apitar jogo na UFPI”.
A resposta agressiva perde seu caráter individual e emocional. No discurso desses homens percebe-se, nitidamente, a culpabilização da vítima por estar no local em que uma mulher não deveria estar. Uma proibição velada (a mulher não deve estar entre os homens; a mulher não deve estar em uma quadra na UFPI). Talvez aí resida outro fato assustador: se esta mulher, além de estar, é a voz que lhe contradiz o lado mais escuro está autorizado a despertar respaldado por uma construção social secular. Transforma-se, então, em mais um corpo feminino agredido, justificadamente, por se lançar além do campo delimitado pela sociedade como o lugar da mulher.
O sentimento que brota do olhar sobre a cena da agressão em uma quadra esportiva é mais profundo do que a tristeza do olhar sobre um futebol sem ousadia. Nesse é nostalgia, no outro medo de seguir. Em ambos, a liberdade de ser continua uma aventura. Em pleno século XXI ainda precisamos repetir o que dizem os cartazes das feministas em desfiles pelas ruas. Repetir bem alto. Repetir nos lares, nas igrejas e nas escolas. Repetir até que se internalize a compreensão de que “LUGAR DE MULHER É ONDE ELA QUISER”. Então, podemos dar as mãos?
***
Sergia A. (sergiaalves@hotmail.com) vive em Teresina-PI, como aprendiz de letras e espantos. Mestra em Letras/Literatura, Memória e Cultura, é autora do livro Quatro Contos, Editora Quimera (Teresina, 2018) e participou de coletâneas diversas: A mulher na literatura Latino-americana, Editora EDUFPI/Avant Garde (Teresina, 2018); Conexões Atlânticas, Infinita (Lisboa, 2018); 2ª Coletânea Poética Mulherio das Letras ABR Editora (Guarujá, 2018); Antologia do Desejo: Literatura que desejamos, Patuá (São Paulo, 2018)