Um dia desses precisei preencher um formulário para uma revista literária que publicaria um conto. Essa coisa de permissão e direitos autorais. Feliz da vida, fui respondendo com entusiasmo cada questão. De repente, empanquei feito burro velho e teimoso. Pediram que eu declarasse como eu me identificava. Lembrei do que disse o escritor moçambicano Mia Couto sobre o tão discutido lugar de fala: “Eu só escrevo porque eu viajo para outros. Eu sou mulher, eu sou criança, eu sou velho, eu sou outros quando escrevo”. (…) “O que cria a Literatura é essa capacidade de ser um outro”. E, depois, a palavra parda que me deram como opção, além de me parecer feia, nada me dizia.
Não sei qual era a intenção. Talvez fazer o balanceamento necessário na edição para dar voz aos esquecidos na Literatura. Não apenas concordo, mas louvo a iniciativa que tenta retirar desse campo o atraso que promove o desequilíbrio, e retira dos leitores o acesso à riqueza dos mundos diversos reproduzidos por diferentes lugares. Faz parte da minha luta como mulher que escreve. No entanto hoje quero falar apenas daqueles segundos de desespero diante de um quadrinho à espera de um x. Marquei, e logo após, saiu de mim essa coisa que não se enquadra em uma identidade predeterminada. Não é poema e nem prosa. Mestiça, como eu:
pediram-me uma declaração de identidade, assim como se eu não me identificasse pelo nome ou com o lugar do meio que sou.
poderia facilmente declarar-me negra. cor não me falta. mas não sou. não carrego cachos volumosos. não aprendi a exibir a beleza dos turbantes e nem ouvi no peito os atabaques como sinais de uma ancestralidade única dentro de mim.
poderia sem esforço declarar-me indígena. meu rosto estampa os traços no formato dos olhos e no cabelo da criança que fui. mas não sou. não cultuei os ritos. não pintei no corpo as lutas. não abri espaço para os rios que abraçam os sons da floresta, como ancestralidade única dentro de mim.
não poderia declarar-me branca. minha pele cedeu ao bronze e não herdei do meu pai o azul que não me viu crescer. tampouco o dourado dos fios que cedo desapareceram do alcance da minha visão. muito menos os inquestionáveis privilégios do seu povo, como marca única de mim.
peço licença ao coração de todas as purezas para declarar-me mestiça com todo o peso de ser múltipla. sou negra, sou indígena, sou branca e ao mesmo tempo nada sou. poeira e vento. equilibrando-me no entre estar.
rezo pra S. Jorge e N. S. da Conceição. peço coragem para Ogum saudando Oxum e suas águas. Canto e danço para os espíritos da floresta seguindo o ritmo das maracas sob efeito dos chás. nos pesadelos ainda caio dos abismos da Ibiapaba ouvindo o eco dos deuses tabajaras conduzindo a impotência das flechas.
declaro:
trago no corpo resquícios das cinzas, do sangue dos lombos, do açoite colonizador que aprendo diariamente a apagar. sou o que restou. falo de onde o momento faz brotar a minha voz. onde estou?