A verdadeira imagem do passado perpassa, veloz.
O passado só se deixa fixar, como imagem que relampeja
irreversivelmente, no momento em que é reconhecido.

(Walter Benjamim, tradução Sergio Paulo Rouanet)

 

Entrar em uma cidade medieval, atravessando suas muralhas e torres, é se permitir ser tragada pelo tempo. Não como se estivéssemos em um túnel cuja direção fosse o passado, mas como em um caleidoscópio que por meio dos seus efeitos visuais nos faz ir e voltar no mesmo instante. Ou, talvez, nos permita viver outro tempo com olhos de hoje.

Foi assim que em 2017 fui apresentada a Nürnberg. De cara me jogaram no Castelo Imperial Nuremberg, com seus pesados portões de madeira e degraus de pedra que datam do século XI, para em seguida ter acesso à vista panorâmica da cidade pulsante em pleno século XXI.
Depois descer ladeiras para me descobrir no século XVI diante da Albrecht Dürer Haus e da imponente estátua daquele que foi considerado o artista mais importante do Renascimento Nórdico. E a ordem era seguir sem me deixar sucumbir à tontura das imagens nos espelhos.

Segui misturando-me à alegria viva da feira, saboreando linguiça fininha e frutas vermelhas que hoje nos fazem salivar no mesmo local em que no início do século XX homens alimentados pelo ódio se reuniram para queimar livros. Segui tentando decifrar nos espelhos expostos à luz do dia, razões que levam algo sórdido a se tornar banal. E no Complexo do Congresso do Partido Nazista tudo está aberto à reflexão mais de oitenta anos depois. Seja no ar de abandono do pátio do Kongresshalle, na organização do Dokumentationszentrum, ou na aparente decadência de arquibancadas e tribuna no Zeppelinfeld. É impossível passar por ali e não repensar o nosso estar em um mundo que caminha a passos largos para a desumanização. Sem refletir sobre o que existe daquilo nos nossos gestos cotidianos quando silenciamos, ou não nos posicionamos criticamente diante dos fatos ou do que nos é dito sobre eles.

E isso ainda não seria tudo. Era preciso ir um pouco além e chegar até o Memorium Nürnberger Prozesse. Entrar na sala do julgamento de Nuremberg, ouvir atentamente o áudio, ver fotografias e documentários. Entender o ponto de vista dos vencidos que ali são tratados como a encarnação do mal. Entender o heroísmo arrogante dos que ali se declaram o bem. Ponderar a equação com seus pesos, seus excessos, suas crenças, suas necessidades, como caminho para entender a condição humana. Homens tão únicos e tão iguais, a repetirem em nossos dias os mesmos gestos. Entendê-los parece ser a nossa única chance de contrabalançar os efeitos colaterais de uma sociedade que cria autômatos capazes apenas de olhar para si mesmos, embriagados pela busca incessante de sua própria felicidade.

Eis que “no meio do caminho tinha uma pedra”. Em uma calçada, que eu era obrigada a atravessar no trajeto hotel-centro histórico, estava exposta a Herzstück. Uma obra em granito da escultora alemã Michaela Biet, que reproduz um enorme coração. Paro. Contemplo. Fotografo. Um casal de idosos também para, os dois olham para mim e dizem na língua deles algo que não consigo entender. Abro um sorriso, daqueles que não precisam de estudos linguísticos para serem decifrados. Ela acena sua mão trêmula e seguimos cada uma o seu rumo. Sento-me na calçada de um pequeno restaurante italiano em que jovens tatuados, de origens diversas, brilham em seus piercing se abastecendo para uma noite que apenas começa, enquanto ao fundo a Frauentorturm guarda registros de entrada/saída do século XIV espelhando o que eu julgava ser o último contraste.

Reescrevo este texto, dois anos depois de obter a graça de observar tais imagens relampejantes, enquanto leio nos portais e vejo na TV cenas estarrecedoras do nosso cotidiano. Sim, a história parece ser intermitente assim como o tempo. Suas glórias e horrores não ficam enterrados em uma caldeira distante. Pairam sobre nós como ameaça ou esperança. Teimo em captar nas ruas a esperança. Às vezes uma centelha brota da arte que faz pulsar na rocha, ou no palco, um coração.

 

Sergia A. (sergiaalves@hotmail.com)  vive em Teresina-PI, como aprendiz de letras e espantos. Mestra em Letras/Literatura, Memória e Cultura, é autora do livro Quatro Contos, Editora Quimera (Teresina, 2018) e participou de coletâneas diversas: A mulher na literatura Latino-americana, Editora EDUFPI/Avant Garde (Teresina, 2018); Conexões Atlânticas, Infinita (Lisboa, 2018); 2ª Coletânea Poética Mulherio das Letras ABR Editora (Guarujá, 2018); Antologia do Desejo: Literatura que desejamos, Patuá (São Paulo, 2018)