(…) há essência nas substâncias criadas intelectuais, nas quais
o ser é outra coisa que essa essência, embora tal essência seja sem
matéria. Por isso o ser delas não é absoluto, mas recebido: donde
também, limitado e finito, conforme a capacidade da natureza recipiente.

(S. Tomás de Aquino, O Ente e a Essência – tradução D. Odílio Moura)

 

 

Há cinco anos juntei-me a cinco amigas e fomos à FLIP – Feira literária de Paraty. Antes do destino, decidimos que o Rio de Janeiro merecia nosso olhar. Assim, como se a jornada não se completasse se não fizéssemos uma pequena pausa para respirar seus ares. No retorno, escrevi este texto sobre esses pequenos dias. Pequenos, mas suficientes para que eu conhecesse o Museu de Arte do Rio que, nesse tempo em que a cultura virou alvo dos ataques obscurantistas, se encontra sob ameaça de fechamento.

Reescrevo, sem grandes alterações:

Sim, estou me apropriando do título de uma novela que eu adorava. Assim como a novela se fez a partir do romance de Maria José Dupré (1943). Irmãos descobrindo o ser, sob a batuta de uma mãe zelosa. E justifico pelo fato de sermos seis irmãs, se o termo significar ligação profunda. Arrebanhadas pela vida, ao invés do sangue. Temos sonhos comuns. Um deles nos traz até aqui. Estamos na nova ala de embarque do JK. Somos quatro direcionando o olhar ao longo corredor em busca da quinta. Ponho a jaqueta. O dia desperta frio. O café alimenta o tempo de espera. Espremida entre assentos de um avião a alegria juvenil. Somos cinco. 

A chuva encobre parcialmente a beleza do cartão postal. O táxi nos abandona diante da escadaria de um prédio antigo. Os degraus se prolongam com o peso da mala. O cabelo se desmonta. Por um instante sinto falta do profissionalismo da recepção de hotel, cuja impessoalidade decidimos evitar. A janela salva o dia. Em meio ao desespero, somos olhos embevecidos. São três horas da tarde. Somos seis ao redor de uma mesa de um bar antigo. José de Alencar é pouso para pombos. Getúlio em seu leito de morte, logo ali. Um chope para aproximar mais uma de origem local, cuja graça dispensa qualquer esforço. Aceitamos o convite perfeito para dia de chuva. Somos sete em uma alegre sala de estar. Um café, boas risadas, uma morada que respira arte abrindo portas para o abrigo de duas com passado comum.

Somos quatro com janelas para o aterro. Impossível não pensar em Lota e em Flores Raras (2013). Luzes refletidas nas águas mansas da baia. Ilumina-se o pensamento. Vinho e queijo comprados na loja da esquina. Um brinde à vida e à alegria do reencontro. Os assuntos fluem sob o declínio apressado da temperatura de julho. Um aquecedor a gás. Água morna deslizando sobre um corpo cansado. O sono reparador.

Café atrasado na loja de conveniência. O centro histórico nos assombra pela beleza, não pela violência alardeada que afasta e intimida. Salvador Dali em 150 obras sob a curadoria de Montse Aguer no CCBB. Documentos, pinturas, gravuras, fotografias, ilustrações. Tontura vencida pela leveza dos corpos flutuantes, a luz, a sombra. O sonho de Vênus. De repente, descubro a inspiração de Tim Burton para o seu vibrante Alice in Wonderland (2010). Mergulho, e lá estão fazendo companhia às cores que ressignificam o imaginário de Lewis Carroll, Dom Quixote de la mancha de Cervantes, Fausto de Goethe, O velho e o mar de Hemingway. Literatura como ponto de partida para o traço. A tela se aliando ao movimento, e lá também estão os sonhos de Buñuel e Hitchcock. Imbricação de signos. Independência da imaginação e direito à própria loucura. Loucura que lá fora nos direciona aos berros dos camelôs. Atravessando perigos do deserto para encontrar um oásis. Gastronomia libanesa, cerveja artesanal. Longa caminhada como se o dia não tivesse hora para acabar. Somos seis em torno de uma mesa de jantar. Risos alados despertando olhares. O segundo dia se vai.

O sol retorna. Hora de ver o MAR: Escola do Olhar e um Museu dedicado à arte e à cultura visual. Arquiteturas distintas interligadas por uma gigantesca onda de concreto que protege a rampa que as une, como parte da revitalização da área portuária no entorno da Praça Mauá, integrando arte, educação e comunidade. Restaurar o passado para buscar um futuro, assim se explica a construção do Museu do Amanhã no píer que logo adiante avança sobre o mar. Somos seis nas filas entre alunos e seus dedicados professores. Duas exposições prendem nossa atenção: Do Valongo à Favela: Imaginário e Periferia – um choque de imagens (pinturas, desenhos, fotos, objetos dos navios negreiros que por ali aportaram, vídeos, instalações) revela a origem das periferias, degradação e a marginalização de sua gente até sua inclusão como objeto da arte contemporânea; TATU: Futebol, Adversidade e Cultura da Caatinga – que tenta percorrer o ecossistema da caatinga e todo seu imaginário até a simbologia do tatu-bola para o futebol provocando reflexões estéticas e políticas. Peca, no entanto, pela superficialidade da pesquisa.

Somos duas, sentadas em um banco antes da escada. Providencial para pernas cansadas e calos maltratados. Burburinho de crianças e a voz enérgica dos professores na ânsia de contê-los. Simultaneamente, levantamos o olhar. É sempre tocante a presença de crianças em museus. Aqui inquietas e barulhentas. Aprendendo. Entre elas algumas com deficiência visual. Aprendendo, como as demais, a ver com os olhos da arte. A cena surpreende e sacode minhas certezas baseadas em memória visual.

Somos seis na subida do Mosteiro de São Bento, desviando-nos aqui e ali das obras de restauração. Na livraria, folheio uma velha edição de O Ente e a Essência, de S. Tomás de Aquino. Acaso, tão somente. Mais alguns passos e somos seis ao redor de uma mesa, que nos põe à vista o mar estendido sob a ponte Rio-Niterói. Um brinde ao espanto que os olhos nos permitem viver. Um brinde ao imaterial que dispensa olhos e se acomoda aqui dentro. Limitado, finito talvez. Ainda assim, capaz de destilar essência em novas percepções.