(Parafraseando o poeta Manoel Ciríaco)

Todo mundo tem uma rua, disse o poeta. Não me reconheço na rua onde moro. Trago comigo outra por onde revivo a infância, como na composição de Torquato. E fiquei a pensar sobre ruas e versos provocativos. De tão belos, bem mereciam um exercício de imitação. Sim, cabe a nós, que não somos tantos, repetir pra aprender, já dizia outro poeta.

Foi então que me chegaram imagens do fotógrafo Palestino Motaz Azaiza. Ao vivo da minha rua, ele dizia. Pronto. Confirmava o dito do poeta e era tudo que eu precisava para o meu exercício. A literatura me permite ser outro. Por um momento sou Manoel e Motaz caminhando por suas ruas. É por elas que nossas vidas também passam.

Antes de sete de outubro, eu costumava ir à feira escolhendo o percurso mais longo. Só para registrar fatos pitorescos e o rosto da minha gente. Triste, apreensivo, confiante, cheio de fé, me fazendo voltar pra casa contente com o azeite, o arroz, vegetais e o corte de cordeiro que minha mãe esperava para preparar Maqloube. E ali mesmo naquela rua, horas depois, uma porta se abria aos amigos ansiosos por sentir os aromas do vapor e o resultado
perfeito na virada da forma.

Enquanto um rapaz carrega nos braços uma garotinha que retirou dos entulhos, e dezenas de mães enlutadas pegam suas trouxas e descem a rua sem rumo, eu sinto vergonha de apenas documentar.

Hoje um estrondo me acordou mais cedo e me fez caminhar em meio a escombros e gritos, fotografando a nuvem de fumaça que invadiu o azul e expulsou os pássaros da minha rua. E a angústia dos vizinhos apressados pra salvar o que restou. Imagino que os homens de terno, farda e estrelas, que se reúnem agora em HaKirya, não percebam a
impureza do ar soprado pelo Mediterrâneo. Os números do avanço da ocupação saltitando em suas mentes.

Enquanto um rapaz carrega nos braços uma garotinha que retirou dos entulhos, e dezenas de mães enlutadas pegam suas trouxas e descem a rua sem rumo, eu sinto vergonha de apenas documentar. Penso nos homens protegidos do frio na 405 FDR Drive, tomando decisões sem se dar conta de que o direito de defesa alegado pelo agressor significa a morte: das pessoas, da rua, da cidade, da memória de um povo.

Ando sobre os destroços da minha rua não mais para mantê-la dentro de mim embalada pelo som das ondas logo ali, ou lembrar do Jordão libertando almas além dos muros que nos aprisionam.  Nem mesmo para registrar os semblantes devastados que fazem a limpeza em busca de redenção.

Meu andar atordoado é apenas pra dizer que aqui existiu uma rua onde pais e filhos andavam de bicicleta sob a sombra das oliveiras sobreviventes de guerras anteriores. Mais adiante, uma praça em que meninos e meninas descobriam o amor. E depois um templo, que não apenas consagrava os encontros, mas também contava a história do controverso São Porfírio, que não gostava de pagãos. No entanto, pouco antes da explosão que o
destruiu, suas cúpulas foram abrigo para cristãos e muçulmanos e ateus. Em meio à guerra, os deuses não reconhecem religião ainda que os homens usem seus nomes como disfarce de sua ambição e arrogância.

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Sergia A. (sergiaalves@hotmail.com)  vive em Teresina-PI, como aprendiz de letras e espantos. Mestra em Letras/Literatura, Memória e Cultura, é autora do livro Quatro Contos (Editora Quimera, 2018) e participou de coletâneas diversas: A mulher na literatura Latino-americana (Editora EDUFPI/Avant Garde, 2018); Conexões Atlânticas (Editora Infinita, Lisboa, 2018); 2ª Coletânea Poética Mulherio das Letras (ABR Editora, Guarujá, 2018); Antologia do Desejo: Literatura que desejamos (Patuá, São Paulo, 2018), Vale do Sossego (Editora Reformatório, 2022).