Caros amigos,
Trago notícias de um reino distante. Perdido entre a idade média e a pré-história, alternando-se entre valores que remontam à pedra lascada e às adversidades do século XXI. É difícil situar no que conhecemos como História, uma vez que parte do seu povo é adepta de uma estranha seita que nega o tempo e os avanços da humanidade embora use muita tecnologia. Outra parte está sintonizada com os conhecimentos da ciência e da civilização. A última parece ser maioria, mas estranhamente se submete ao governo da primeira.
Devo dizer que por lá o tempo também é apressado. Perdi-me em seus labirintos e quando dei por mim estava no quinto mês do terceiro ano em que ele se instalou e do segundo em que a peste por lá se abateu. Confesso: os labirintos do Reino de onde venho são intermináveis, pegajosos, sugadores de pensamento e coragem. No entanto, hoje consegui me desvencilhar. Estou aqui para enxugar lágrimas e falar de um fio daquele sentimento que parece ser mais teimoso do que triste.
Primeiro a dor, sou do tipo que deixa o melhor pedaço para a última garfada por mais sem lógica que isso possa parecer. Lá no Reino, apesar das profundezas, a luz do sol ainda bate na janela e o Wi-Fi funciona. O difícil mesmo é abrir o olho quando a fresta de luz atravessa a persiana e os grupos de WhatsApp pipocam notícias do amigo entubado, da tia ou mãe que não resistiu compondo as vergonhosas 400 mil vítimas da peste. Haja repertório para emojis de tristeza e notas de solidariedade. Sem falar do constrangimento de agradecer diariamente por ter a si e os seus a salvo. Mais difícil ainda para quem, como eu, não usa referências religiosas comuns naquelas terras. Além de não ter prática, tenho dificuldade em entender um pai que escolhe qual filho merece proteção. A palavra desígnios há muito se perdeu do meu vocabulário, porém por lá se ouve muito que existe um deus no controle. Aceito de melhor grado a exaltação de um trecho do seu livro sagrado que diz “conhecereis a verdade, e a verdade vos libertará”
A TV também funciona direitinho. As telas estampam, além das covas e cruzes, a morte das florestas e de ampla diversidade que dela sobrevive. Muitos números e análises vazias. Ou que não repercutem como deveriam. Aqui já não se sabe se o problema está no modelo que de tanto se repetir esgotou, na estranha surdez imposta pela seita ou no abatimento dos que não fazem parte dela. O certo é que o cinismo e a mentira dão o tom e colocam a todos em risco.
O espantoso é que a população do Reino está consciente de que o tal vírus que causa a peste é super frágil. Do tipo que morre com água e sabão. Sabe que é o corpo humano que o fortalece e dissemina e uma vez fortalecido não há remédio que o derrube, a não ser a reação do próprio corpo. Aí entra a estranheza do comportamento dito novo normal no Reino. Para não ser vista como covarde pelo Rei, uma faixa da população que minha avó chamaria de meia-carga (que se julga rica por ter uma casa, um carro) se oferece em sacrifício por amor à pátria. Faz festa, passeia e dispensa equipamentos de proteção invocando o artigo quinto da Constituição. Há também outra classe que se submete ao sacrifício: a dos pequenos empreendedores. Uma nova espécie de escravatura, em que o escravo é levado a crer que é livre. Sem questionar direitos, são os heróis da nação.
Para não mais me alongar, vamos ao fio de sentimento teimoso que escorreu pelas janelas por esses dias. Não sei se já podemos chamar esperança. Chegaram, por fim, as vacinas para grupos de idosos. Uma antiga estrutura chamada SUS, que milagrosamente ainda se mantém de pé, tem dado conta da enorme tarefa. Além disso, o Senado do Reino está investigando os desmandos do Rei. Esse e sua tropa de choque estão em desespero.
Espero que no próximo desvencilhar dos labirintos, as notícias sejam mais animadoras. Penso que o sentimento me pegou de jeito.
Até.
(imagem: Pixabay License, gratuitamente cedida)