Encontrei em Minas as cores que adorava
em criança. Ensinaram-me depois que eram feias
e caipiras. Segui o ramerrão do gosto apurado…
Mas depois vinguei-me da opressão, passando-as
para minhas telas.

(Tarsila do Amaral)

 

Quando eu era criança, em uma pequena cidade no interior do Piauí, acompanhava o movimento dos que faziam as trouxas e iam para São Paulo tentar a vida e um dia retornar. Eram muitos por isso o fluxo era constante. No mês de dezembro era divertido observá-los passar na minha rua, vindo da rodoviária, com suas malas e um toca-fitas/gravador ao pé do ouvido. Mais divertido ainda era ouvir o novo sotaque, enxertado de gírias, afinal já não eram caipiras. Isso me veio à mente durante as duas longas horas em que fiquei em uma fila, no vão livre do MASP, para ver Tarsila Popular.

A exposição faz parte de uma série que apresenta modernistas brasileiros do cânone, com referências populares nas suas obras. Ao mesmo tempo está inserida na programação do ano dedicada às Histórias das Mulheres, histórias feministas, dialogando com duas outras mostras simultâneas: Djanira e Lina Bo Bardi. Temporária, portanto, assim como a minha rápida estadia na metrópole. Diante da multidão (organizada em fila, mas uma multidão), superado o pavor inicial, foi o pensar sobre o ir e vir das pessoas, suas buscas, seus objetivos, suas tentativas de evolução, que me fez suportar a espera. Primeiro, pelo alento que é ver no Brasil de 2019 muitos jovens e crianças interessados em arte e cultura, ver professoras de escola pública levando turmas enormes a um museu que lhes oferece uma possibilidade de sonhos, de imaginação tão necessária na construção de suas vidas futuras. Segundo, porque é gratificante perceber que o acaso me fizera estar ali, naquela manhã, comparando comportamentos e repensando a minha própria trajetória de caipira pelo mundo.

Operários – Tarsila do Amaral, 1933.

Ao subir a escadaria, entendi que duas horas eram pouco e o dia apenas dava sinais de onde me levaria. Não chorei em frente a La Gioconda (Mona Lisa) no Louvre, ou do Nascimento de Vênus na Galleria degli Uffizi, ou do Monumento imperial a la mujer-niña no CCBB (Rio de Janeiro – 2014), no entanto não consegui conter as lágrimas diante de Antropofagia, Abaporu, e das enormes telas Operários e Segunda Classe. Como se, de repente, me viesse uma nova compreensão do que significou para a artista e para nós brasileiros o rompimento com a visão submissa a temas e princípios europeus. Era entender visualmente o que as letras me disseram nos livros, como se outra parte do meu cérebro precisasse ser ativada para recuperar detalhes esquecidos e acender o clarão. Um mergulho sem resistência no azul puríssimo, no rosa violáceo, no amarelo vivo, no verde cantante, como ela definia suas cores. E, naturalmente, no nosso modo de ver, entender e representar o mundo.

Impossível não voltar aos anos 1920/1930 e imaginar como tudo aquilo repercutiu nas mentes colonizadas e conservadoras da elite brasileira na qual Tarsila tinha origens. Uma filha de São Paulo (a nossa referência de riqueza e progresso) que foi alfabetizada por uma preceptora belga, iniciada nas artes por um mestre alemão e depois enviada a Paris para formação acadêmica, retornando com uma produção artística completamente identificada com o jeito brasileiro interiorano de ser? Certamente o fato balançava todas as certezas de quem aprendeu a se distanciar de sua gente para não parecer igual. Daí, talvez, o porquê de por muitos anos a crítica se valer da busca por influências europeias e formalistas no seu trabalho (o cubismo, por exemplo) em detrimento dos temas, cores, das narrativas e personagens reais ou fantásticos que trazem à tona uma brasilidade não vista como legitimadora da grande arte.

Alma alimentada, desci as escadas com um oco no estômago. Eram duas horas da tarde e o corpo dava sinais de que também precisava de alimento. O restaurante do MASP estava fechado para reformas, me disseram. Um lanche rápido no café, e segui renovada para ver Djanira: a memória de seu povo. Mas isso é história para outra coluna.  Lá fora o céu de 2019 estava azul impuro, ou matizado de gás carbônico dos escapamentos velozes. Mas o sol era amarelo vivo e escaldante como o da minha terra, não permitindo que eu esquecesse minhas origens apesar do gosto que se apurava naquele instante.

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Sergia A. (sergiaalves@hotmail.com)  vive em Teresina-PI, como aprendiz de letras e espantos. Mestra em Letras/Literatura, Memória e Cultura, é autora do livro Quatro Contos, Editora Quimera (Teresina, 2018) e participou de coletâneas diversas: A mulher na literatura Latino-americana, Editora EDUFPI/Avant Garde (Teresina, 2018); Conexões Atlânticas, Infinita (Lisboa, 2018); 2ª Coletânea Poética Mulherio das Letras ABR Editora (Guarujá, 2018); Antologia do Desejo: Literatura que desejamos, Patuá (São Paulo, 2018)