Para as mulheres que me abrigaram
e me guiaram nesta imersão

Os tambores e blocos já estavam nas ruas da capital quando tomei um ônibus e atravessei a noite rumo a um lugar encantado. Natureza repleta de mistérios protegidos por rochas e mãos femininas. Eram cinco horas da manhã quando uma delas, sonolenta ainda, abriu o portão em meio aos latidos do cachorro que lhe garante a segurança. Um abraço acolhedor e uma cama macia, vedação perfeita da janela para garantir o escurinho a um sono reparador. O bom dia, sem cansaço, viria depois em torno de uma mesa na varanda em que vozes femininas me levavam a experimentar o frescor do umbu.

Café com pão quentinho. O cuscuz e o requeijão Cardoso nos aproximando em um primeiro contato para as decisões do dia. O Museu do Homem Americano logo ali no virar da estrada que faz vezes de avenida. Sentei-me diante daquela tela enorme como se fosse a primeira vez. Novamente o espanto por cada uma das descobertas que a valentia daquelas mulheres registrou durante quase cinquenta anos. Chorei pela grandeza do entendimento, em mentes jovens ainda, de que aquilo tudo pedia um estudo interdisciplinar e só teria valor se envolvesse a comunidade e se mostrasse ao mundo. Chorei pelas histórias que não se registram em museus, laboratórios ou artigos científicos mas são contadas pelos rostos felizes dos que frequentaram as escolas montadas por elas, se profissionalizaram e hoje estão nas universidades, nos museus, na própria Fundação do Homem Americano, no Parque, ou como guias turísticos.

Outro caminho. No percurso a memória indicando a direção. Elas tecem histórias do tempo em que não havia estradas dentro do parque. Sim, é preciso lembrar que o espaço deste enredo nasceu como Parque Ambiental demarcado depois de uma longa gestação dessas mulheres que o geraram, alimentaram, cuidaram e o viram o crescer. Nasceu da insistência, da persistência e da resistência de uma protagonista que agora exibe a fala mansa das mulheres sábias cujos anos e adversidades não as afastaram de suas essências.

Os relatos são cheios de graça e guardam semelhança aos dos caçadores que elas combatiam com o intuito de educar para a preservação. Com a diferença de que elas buscavam compreender a vida, eles a subsistência que os levaria à morte. Homens sabiamente conquistados para que não se perdesse o conhecimento da região, e se mantivesse a necessária ajuda para andar por quilômetros abrindo trilhas, carregando consigo instrumentos e alimento. Escavar rochas por um dia inteiro, armar redes nos galhos mais altos, dormir ao relento vendo o céu da caatinga se derramar sobre os sonhos, enquanto animais alertas rastejavam e se punham à espreita. Pequenas histórias que permeiam o rigor científico que edificou uma História a partir dos vestígios coletados por arqueólogas, biólogas, paleontólogas, ambientalistas e tantas outras profissionais residentes ou de passagem que, juntas, davam vida nova às pinturas rupestres, aos fósseis e outros elementos como o carvão de origem antrópica protegido sobre base rochosa por cem mil anos.

Entre uma risada e outra o acesso a detalhes da reconstrução da nossa pré-história a partir dos fragmentos que não passaram despercebidos por olhares dotados de aguda intuição. Nos estudos geológicos dos paredões a compreensão de que ali se revelava não apenas a reviravolta sobre a presença humana nas Américas, mas o processo de formação do lugar. Assim como a história da fauna a nos dizer: o bicho-homem é apenas mais um na longa existência da Terra. É isso que repete a moderna instalação do Museu da Natureza. Um espaço lúdico em que os visitantes são chamados a mergulhar em um buraco negro, brincar nas ondas de um mar primitivo, deixar-se encantar com a simulação da era do gelo, acompanhar o desfile dos animais diante dos seus fósseis, alçar um voo de asa delta sobre a imensidão do Parque sem sair do lugar.

Hora de pôr os pés no chão e voltar à realidade do nosso tempo pela observação da delicada montagem dos esqueletos de animais ali encontrados. Para o cansaço que chega, inevitavelmente, o remédio é relaxar o corpo e olhar para o teto. Permitir que a voz de Betânia preencha todas as lacunas que, por acaso, escaparam à compreensão da razão de estarmos ali.

O dia perfeito findaria com a visão do entardecer sobre os paredões que cercam a saída do museu. Contudo, a alguns quilômetros dali uma mesa disposta com belas cerâmicas produzidas no local se montava com carinho. O vinho e as vozes femininas costurando retalhos do ontem e do hoje, montando bastidores para o amanhã. Pontos cheios de cores que me trazem as palavras de Clarissa Pinkola, em Mulheres que correm com os lobos, que eu tomo de empréstimo para dar título a este texto. Não poderiam ser outras.

As paredes contam que mãos masculinas se aliaram nesta jornada e suas contribuições foram recebidas de bom grado, com o devido reconhecimento.  Fossem eles pesquisadores europeus ou gente simples do lugar. No entanto, foram elas que desenharam e, por inspiração, outras gerações continuam desenhando portas no escuro. Do outro lado, a luz.