O menino se formou dentro dela, sem que ela desse conta do movimento incessante de suas células.

Eram tão recentes as descobertas do amor. Eram tantos os medos e os cuidados. Era tempo de viver a revolução do mundo pequeno dos acanhados sonhos: primeiro emprego e estudos distantes de um fim. Letras adiadas para tempo bom. Uma casa para dois com cara de um. Uma cama, um banheiro sem muitos para dividir. As prateleiras do supermercado brilhantes de alegrias desconhecidas que cabiam num auxílio refeição. Os hormônios percorrendo os vasos do corpo. Derramando-se no vermelho dos frascos do laboratório. Como interromper o rio que brotava dos olhos diante da palavra no papel?

O menino nadava dentro dela.

Azedava o estômago. Repugnava os cheiros ao redor da mesa de reunião. Olheiras e palidez no espelho em que as amigas mediam a cintura e retocavam o batom. Promoções se desfazendo por não harmonizarem com a licença e as incertezas do futuro que já não se escondia na amplidão dos vestidos. O olhar invejoso para o planejamento de férias e voos. A ela caberia o direito de dias a mais na rotina de amamentação que os manuais ensinavam. O pensar acelerava as batidas do coração diante de um calendário que esticava sua pele. O amor beijava a testa e apalpava o movimento das células intrometidas em corpo que não era seu. Não sentia e era livre para admirar e exibir aos outros o feito fora de si. Como obra contratada, paga, da qual se espera a perfeição.

O menino chutava dentro dela.

Empurrava as costelas. Restringia o pulmão para que ela recebesse sentada o pio dos pássaros e a barra do dia que se insinuava na persiana. O amor arranjava-lhe travesseiros e cobertores e ressonava tranquilamente ao seu lado. Contava os sonhos no amanhecer. Haveria de galgar cada um dos degraus e chegar ao topo. No porta-retratos o riso adocicado das conquistas. Quando o tempo lhe desse tempo correria atrás da bicicleta no parque. O amor cantava para ninar suas dores. Afinal tudo passa.

O menino saiu de dentro dela, no exato tempo da expulsão.

Faminto, sugou o seio sem piedade. O leite escorreu aos borbotões fazendo luzir as dobrinhas do menino que a todos encantava. Ela há muito perdera o saudável hábito de dormir. Já não lhe fazia falta. Tanto o que fazer quando as minúsculas pálpebras do menino pesavam e a obrigavam a respirar. Fazia. Fazia sem pensar se era noite ou dia. O amor partiu repetindo que o tempo era prado para correria de cavalos selados. Poeira soprada e no susto o menino se esticava.

O menino se alongou fora dela.

O colo vazio abriu vaga para acomodação das letras. Era tanto para viver que já não cabia na vida que lhe restava. Derramava-se pelas bordas das linhas onde as palavras se penduravam em suave balanço por puro desejo de recuperar a dilação.

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Sergia A. (sergiaalves@hotmail.com)  vive em Teresina-PI, como aprendiz de letras e espantos. Mestra em Letras/Literatura, Memória e Cultura, é autora do livro Quatro Contos (Editora Quimera, 2018) e participou de coletâneas diversas: A mulher na literatura Latino-americana (Editora EDUFPI/Avant Garde, 2018); Conexões Atlânticas (Editora Infinita, Lisboa, 2018); 2ª Coletânea Poética Mulherio das Letras (ABR Editora, Guarujá, 2018); Antologia do Desejo: Literatura que desejamos (Patuá, São Paulo, 2018), Vale do Sossego (Editora Reformatório, 2022).

Imagem: fotografia da autora, com colagem sob Licença Pixabay Free