Fevereiro chegou gritando que já era tempo de voltar a ocupar este espaço. Passada a ilusão de uma vida nova para o ano novo, é tempo de olhar para o mês que já se foi tentando decifrar o que ele anuncia e, a partir daí, traçar um caminho possível.

A revisão de projetos alimentou minhas primeiras semanas. Sou dispersa. Preciso me ancorar no papel e separar o essencial, ou aquilo que tem possibilidade de se tornar real, deixando um pouquinho de lado o que se balança nas nuvens mais altas. Nestes dias difíceis, refiz a lista de prioridades respondendo a uma pergunta como me foi ensinado por uma estudiosa da tanatologia: se você soubesse que vai morrer amanhã, qual desses projetos não poderia deixar de ser feito? Agora é cumprir.

Um desses projetos é a manutenção do perfil @palavrasde.lirantes no Instagram, que já está no seu quarto ano. Ele cumpre duas funções: a primeira, nasce do prazer de abrir despretensiosamente um livro e ver em um poema o tom do dia; a segunda, levar ao outro uma fonte imediata de poesia, com indicação confiável de autoria, publicação etc.  Pois bem, dias desses fui despertada por Noturno Oprimido de Carlos Drummond de Andrade. Horas depois vejo a imagem do Pe. Júlio Lancellotti, com um grande martelo em punho, tentando sozinho desfazer a insensibilidade concreta dos poderosos da grande metrópole.

Apesar da diferença de tempo (o poema é de 1942), entendi as duas imagens como o mais fiel retrato do Brasil 2021. A água da inundação que molha a nossa noite é espessa, tem odor putrefato e se avoluma sobre nossos corpos. Assim como as estruturas pontiagudas, assentadas sob um viaduto para impedir o descanso dos sem teto, nos trazem o sentimento de algo assombroso, selvagem, típico dos filmes futuristas de horror.

Alheios e ilhados em um planalto, os donos do poder cantam e dançam, em um ritual macabro, sobre os famintos e os cadáveres para aplauso dos autômatos. Repetem inadvertidamente, por negarem a História, a barbárie que antecedeu o ataque a Versalhes e parecia ter sido soterrada pelo Iluminismo no século XVIII.  Estão surdos e cegos, inebriados de poder pelo poder.

Enquanto ecoam no meu peito as marteladas solitárias de um homem que se nega a deixar de ser humano, dou um novo arranjo para as plantas na minha varanda. Descubro que meu cacto miudinho resolveu florescer como quem diz: olha pra mim, sou flor! Penso que deve ser isso o que 2021 anuncia aos que ainda têm ouvidos: o desafio de não perder de vista o que somos.

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Sergia A. (sergiaalves@hotmail.com)  vive em Teresina-PI, como aprendiz de letras e espantos. Mestra em Letras/Literatura, Memória e Cultura, é autora do livro Quatro Contos, Editora Quimera (Teresina, 2018) e participou de coletâneas diversas: A mulher na literatura Latino-americana, Editora EDUFPI/Avant Garde (Teresina, 2018); Conexões Atlânticas, Infinita (Lisboa, 2018); 2ª Coletânea Poética Mulherio das Letras ABR Editora (Guarujá, 2018); Antologia do Desejo: Literatura que desejamos, Patuá (São Paulo, 2018).