O que significam esses heróis nesse palco?
(Friedrich Nietzsche, in A Gaia Ciência)

 

Escrevi este texto em novembro de 2016, atormentada com o que as nuvens pesadas anunciavam. Hoje me debruço sobre ele, reescrevendo-o aqui e ali sem alterar a sua essência, depois de ver os cordeiros vestidos de branco em Marcha para Jesus comandada por uma Igreja, que é um rentável negócio. É público o fato de que seus donos foram alvo de inquérito policial e processos na justiça por evasão de divisas e entrada em território americano com valores acima do permitido por lei, muito bem protegidos por um livro sagrado. Decido publicá-lo pela tormenta que agora se faz bem real, pela necessidade de entender a loucura coletiva que vivemos e manter a esperança.

O tempo não está para flores, disseram-me às portas do avião. Ouvi. Acomodei a bagagem de mão. Sentei-me e fechei os olhos para esquecer do tempo lá fora. Falo das nuvens cinzentas e dos raios que serviam de cortina para a pequena janela. Peguei-me rezando, entre uma turbulência e outra, aos deuses da chuva e do trovão e ao atencioso padre Cícero do Juazeiro. Quando me dei conta, fiquei imaginando o quanto é valiosa a ideia de deus. O quanto é confortador devotar ao sagrado a angústia, tudo o que nos aflige, ou deixar em suas mãos o que ultrapassa a nossa compreensão e controle. As nuvens eram passageiras e foram vencidas rapidamente pela força e velocidade das turbinas. Onde aterrisso o céu é azul. O que não impede que o tempo lá fora, falo agora do que se conta no calendário, continue turvo e ameaçador.

No aconchego dos meus lençóis leio a coluna do escritor J.P. Cuenca para o The Intercept-Brasil, na qual o autor interpreta a cor do tempo como uma entrada na Tyson Zone (em suas palavras: quando o comportamento de alguém se torna tão insano que nada vindo da pessoa possa chocar ou surpreender). Encontro em outras páginas a nossa realidade mais preocupante. Duas pesquisadoras se debruçam sobre o fenômeno do avanço político dos evangélicos nas eleições nos últimos anos. O resultado de suas pesquisas é assustador: uma confirma o projeto político religioso-pragmático da prosperidade, que a muitos encanta a partir do púlpito dos templos e das redes de TV mantidas sob a égide e regalias da religião. A outra denuncia o projeto religioso-jurídico que tem foco na ocupação de cargos na magistratura, numa tentativa de levar à interpretação das leis uma visão moral em defesa da família e da propriedade de forma mais conservadora. Uma tentativa de abocanhar, portanto, o último refúgio dos que sofrem a discriminação, o preconceito, dos que defendem uma agenda progressista para mulheres e minorias, e até mesmo dos que buscam um chão ou um teto por meio do princípio da função social da terra – questão que está ainda muito longe de ser resolvida na nossa extensão tropical.

Nas pesquisas, que me imponho para chamar o sono, encontro a física, escritora e conferencista norte-americana Danah Zohar, falando a investidores chineses. Usa o termo crise da democracia para explicar a amoralidade e imoralidade que domina o capitalismo do nosso tempo, e de suas inevitáveis consequências sociais e políticas. Acredita que o Ocidente está experimentando não apenas uma crise socioeconômica mas uma crise espiritual que atinge os valores democráticos, como se estivéssemos enlouquecendo. Não se envergonha de apontar como única possibilidade de saída desse ‘dark times’ a transformação/evolução da consciência, por mais que isso possa parecer um ‘New Age Cliche’.

Mais adiante está Dalai Lama, o líder espiritual do Tibet. Em artigo para o N.Y. Times, alerta para a urgente necessidade de construção de uma sociedade inclusiva e que saiba valorizar a contribuição de todos em suas diversidades e capacidades. Baseado em pesquisas sobre o comportamento depressivo de pessoas que não se sentem úteis, acredita que a fúria e a frustração que se espalham pelo mundo civilizado neste instante, podem ser vistas positivamente. Entende que o fenômeno se deve à nossa hunger to be needed (uma necessidade de ser útil, que faz parte da natureza humana). Fazendo uso de um ensinamento Budista do século XIII, defende uma posição que se coloca acima de ideologias ou religião. No seu pensar, o que nos une e pode nos levar ao diálogo é a crença na dignidade humana e na possibilidade de cada um fazer a sua parte por um mundo melhor e mais significativo: se alguém acende o fogo para o outro, esse fogo também iluminará o seu próprio caminho.

Acordo no meio da noite e retomo o exercício da escrita, para acomodar o pensamento e tentar entender as escolhas do meu povo. O título me vem de repente. Debruço-me sobre uma ideia e sua capacidade de persuasão. Quando a incerteza nos sacode torna-se cômodo fechar os olhos e seguir uma voz que se coloca acima de nós. Daí a nossa busca histórica e constante por heróis e por deuses. Líderes religiosos fanáticos (a poderosa igreja católica do passado, os evangélicos ou muçulmanos do nosso tempo, entre outros) conhecem de sobra esse componente sedutor, e não se constrangem em usá-lo em seus projetos políticos e de poder. Encontro no meu não alinhamento religioso a liberdade de retirar máscaras à procura da compreensão da face humana obscura que se esconde sob a ideia sedutora de deus.

Volto ao hoje, uma sexta-feira de junho de 2019, depois do feriado de Corpus Christi, com Santo Antônio e São João enchendo as noites de bandeirolas e fogueiras, sacudida por uma tempestade no peito. Abro a janela em busca de ar. Uma estrela corta o céu. Cabe a mim um desejo: que se acenda uma luz antes que a escuridão nos arrebate! E por via das dúvidas, Viva São Glenn! (se ele não existir, o meu desespero acaba de inventá-lo).