Ítalo Lima
Blog Title

O beijo de língua em Judas

Ilustração: Irineu Santiago

Entristecer. Dar com os olhos no céu distante
Romper fogo tangendo a língua para o escuro
Judas deita em minha cama e me escreve no corpo
Profecias longas próximas a minha vértebra
Nada faz sentido quando o medo cerra os dentes
Então eu me encolho e chego ainda mais perto de Judas
Em cada pedaço de pele do rosto de Judas multidões
Enfileiradas imploram abrigo, alimento e mel

Judas que mora em minha cama é diferente do que
É mostrado nos templos sagrados dos homens grandes
Judas sente frio e eu o acolho como se fôssemos íntimos
O teto treme como se sentisse medo e me sussurra
Alertando perigo, eu ignoro e como teimoso que sou
Chego ainda mais perto e sendo já quase um só, beijo Judas!

O sabor da língua do traidor tem gosto de hóstia.

 

Ítalo Lima é escritor e publicitário. E-mail: italolimapoesias@gmail.com
_
Ajude Revestrés a continuar produzindo jornalismo independente. Contribua conosco no Catarse. A partir de R$ 10,00 (dez reais) você já nos ajuda muito. Acesse: catarse.me/apoierevestres

Onde foi que nos perdemos?

 

Is it necessary to walk, and walk, and walk,
burdened the will to live, to
walk through a meaningless life
under relit, but long extinguished stars
keeping the delirium of the universe
alive forever in its dream…
 

(Yeghishe Charents, tradução de Diana Der Hovanessian)

 

Ficamos por alguns dias brincando de esconde-esconde, o Ararat e eu. E ele imponente, muito orgulhoso de sua condição, não me deu a mínima escondendo-se atrás de densa névoa. Sim, dei-me o luxo de respirar outros ares e realizar sonhos antigos. Digo luxo porque tenho consciência de que, no meu país, a apenas uns poucos privilegiados é dado o direito de ir e vir. Não me incluo entre os privilegiados pela condição financeira, mas pela sede de conhecimento que me consome a ponto de planejar por anos o viajar que, para mim, é sinônimo de aprender. Volto e sou saudada com mais do mesmo: a morte de inocentes e o silêncio em torno de suas causas, como a me dizer: afogue-se! que direito você tem de respirar quando uma criança por ser negra e pobre não tem sequer o direito de crescer?

Afoguei-me na tristeza que não cansa, sendo salva pelo que carrego na memória. O Cáucaso, com toda sua profundidade histórica, foi meu destino começando pela Armênia. Para quem não perdeu as aulas de história geral, mesopotâmia, assírios, sumérios, babilônia, escrita cuneiforme serão sempre palavras entendidas como traços do berço da humanidade. Quem se aprofundou um pouco mais, sabe que foi naquela região que a arqueologia datou as primeiras ferramentas da idade da pedra e encontrou o sapato mais antigo. Os amantes do vinho também sabem que por lá se encontraram os primeiros vestígios de sua fabricação. E se tudo isso for pouco para os que só encontram na Bíblia a sua verdade, foi por lá que seu deus instalou o jardim do Éden e, depois do pecado e do castigo, fez parar a arca de Noé sobre o monte Ararat estabelecendo uma nova aliança. Motivos suficientes para despertar curiosidade e o desejo de ver de perto as marcas orgulhosamente guardadas por seu povo.

É evidente que em poucos dias não se faz uma imersão. No entanto, é possível selecionar e ver templos pagãos e cristãos. Mosteiros que guardam os mistérios do nascimento de uma religião que deveria sacudir o antigo testamento. Optar, com muito pesar, por não ver os manuscritos científicos e religiosos desse período. Tentar entender os conflitos geopolíticos recentes. Perder-se pelas ruas da agitada Yerevan em busca de livrarias ou descobrir nos calçadões seus poetas, músicos, bailarinos por puro acaso. E, obviamente, experimentar a comida e a bebida local. Com foco, a intensidade estica o tempo e minimiza o machucado dos pés.

Foi assim que dois lugares me fizeram entender o porquê dessa jornada nesse instante:  o monumento e museu em homenagem às vítimas do genocídio Armênio (1915) e o Yeghishe Charents Memorial Museum. No primeiro, um ponto turístico obrigatório com tudo muito organizado e explicado em vários idiomas, sob o ponto de vista armênio naturalmente. Como uma necessidade de expor ao mundo a imensidão de suas dores e a versão dos vencidos. Em uma espiral de moderna arquitetura, textos e imagens fortes me fizeram sair do local às pressas.  Ver crianças como vítimas da brutalidade de que os seres humanos são capazes me rouba o chão. Assim como me tirou o ar a extensa relação de intelectuais, entre eles a escritora e feminista Mari Beyleryan, executados pelo simples fato de defender o livre pensar.

No segundo, uma escolha pessoal e intuitiva sem guia ou indicação. Depois de horas tentando decifrar placas de rua em um alfabeto desconhecido, seguindo um aplicativo de GPS no celular (bendita tecnologia!), encontro o lugar simples em que se instala o Museu em memória do grande poeta Yeghishe Charents. É, na verdade, o apartamento em que ele e sua família residiram, adaptado com um hall de acesso para a rua. Entrada paga, língua e origem identificadas, a atendente me pediu que aguardasse a pessoa que me acompanharia na visita. Paciente em seu bom inglês, ela inicia se apresentando com o brio próprio de uma neta que conta a história de seu avô genial. Uma onda de emoção arrepiou todos os pelos do meu corpo, e as lágrimas banhavam meu rosto à medida em que que líamos trechos dos manuscritos traduzidos e meu ouvido captava a veemência de suas explicações. Despedimo-nos com um abraço confortador que me encheu de esperança.

E daí? Quem é esse cara tão pouco conhecido pelas bandas de cá? Charents é hoje considerado um herói nacional. Participou como voluntário, aos 18 anos, das batalhas contra o genocídio e escreveu o longo poema Dantesque Legend, em que compara o que viu ao Inferno de Dante. Mais tarde, engaja-se na revolução bolchevique (na ocasião a Armênia fazia parte do império russo) para formação da República Democrática da Armênia, parte integrante da União Soviética a partir de 1922. Estudioso e defensor da teoria marxista, o poeta logo se dá conta dos desvios impostos por Stalin tornando-se um defensor da autonomia e da cultura local. É perseguido, preso e morto como traidor da revolução. Seu nome é proibido de ser mencionado. Seus livros são destruídos e seus originais sobreviveram graças à corajosa ação de uma amiga que os escondeu nos porões de sua casa. A filha mais velha é enviada a um orfanato. A esposa e a filhinha de dois anos (mãe da senhora que me fala) são exiladas. Com a morte de Stalin e subida de Khrushchev ao poder na década de 1950, seu nome é reabilitado, seus poemas são novamente publicados e traduzidos pelo mundo.

Retorno aos meus lençóis e a este espaço de escrita, em que as ideias têm a liberdade de seguir, com a sensação de que as lições da história não nos ajudaram na evolução como seres humanos. Em algum ponto nos perdemos. Peço perdão à Agatha Félix, à Jenifer Gomes, ao Kauã Rozário, à Letícia Ferreira, à Lauane Batista, ao Dyogo Coutinho e aos demais bebês, crianças e adolescentes vítimas da sociopatia que nos governa neste ano de 2019, pela teimosia que me faz respirar. Como o poeta que hoje me guia, repito com a respiração ofegante dos que sobrevoaram desertos e oceanos, que é preciso seguir munida do desejo de viver. Ainda que a vida pareça sem sentido, reacendo estrelas há muito apagadas para manter o delírio do universo sempre vivo nos meus sonhos. Haveremos de encontrar a humanidade perdida.

 

Sergia A. (sergiaalves@hotmail.com)  vive em Teresina-PI, como aprendiz de letras e espantos. Mestra em Letras/Literatura, Memória e Cultura, é autora do livro Quatro Contos, Editora Quimera (Teresina, 2018) e participou de coletâneas diversas: A mulher na literatura Latino-americana, Editora EDUFPI/Avant Garde (Teresina, 2018); Conexões Atlânticas, Infinita (Lisboa, 2018); 2ª Coletânea Poética Mulherio das Letras ABR Editora (Guarujá, 2018); Antologia do Desejo: Literatura que desejamos, Patuá (São Paulo, 2018)

 

Escritoras negras

Vez por outra surge alguém com a seguinte indagação: professor, existem escritores negros na literatura brasileira? Acredito que um dos motivos dessa pergunta, entre outros, seja a predominância de autores brancos nos estudos e na adoção de livros escolares. Sem falar ainda, é claro, de preconceito enrustido, camuflado numa indistinta “democracia” racial. Aos que fizeram um bom ensino médio, basta lembrar de Cruz e Sousa, poeta simbolista que despontou, final do século XIX, com versos marcados por uma linguagem sugestiva e musical. Outro que firmou seu nome, embora sem o reconhecimento devido na época, foi o escritor Lima Barreto, cuja obra denunciava as injustiças sociais da burguesia carioca. Apesar da propaganda da Caixa Econômica Federal, que o embranqueceu em 2011, Machado de Assis é o mais consagrado escritor negro de todos os tempos – dentro e fora do Brasil.

Mas quanto à presença de escritoras negras, não diz nada, outros devem levantar tal aspecto. Mesmo  ainda desconhecidas do grande público, vale destacar três nomes que dignificam nossas letras, tanto em valor estético como expressão humana e existencial. Comecemos por Carolina de Jesus, favelada paulista que, apesar da vida sofrida, de catadora de papelão, escreveu um dos livros mais pungentes da literatura nacional: Quarto de despejo – diário de uma favelada, publicado em 1960, com tiragem de 10 mil exemplares, traduzido para 14 idiomas em 40 países. Destacou-se também como compositora e poeta. Segundo Ricardo Ferreira, professor da USP, ela tem uma “escrita direta, nua e crua, mas, ao mesmo tempo, suave.” Deixou uma vasta obra inédita, organizada pela pesquisadora Raffaela Fernandez, que resultou em 58 cadernos somando 5.000 páginas de texto: 7 romances, 60 textos curtos, 100 poemas, quatro peças teatrais e 12 letras para marchas carnavalescas.

Seus livros tratam, sobretudo Ponciá Vicêncio, de temas considerados incômodos, tais como discriminação racial, de gênero e de classe, evocando geralmente reminiscências íntimas e dolorosas. Estou falando de Conceição Evaristo, escritora das mais festejadas deste início de século, ganhadora do Prêmio Jabuti de Literatura 2015, com Olhos D’Água, na categoria contos e crônicas. De família pobre, desde cedo teve que conciliar trabalho e estudo, formando-se em Letras pela Ufrj, mestrado em Literatura Brasileira pela PUC/RJ e doutorado em Literatura Comparada pela Universidade Federal Fluminense (UFF). Com textos não lineares marcados por cortes temporais, em que passado e presente se imbricam, suas narrativas são duras, mas sem perder a ternura, de uma poeticidade extrema: “Minha mãe se constituiu, para mim, como algo mais doce de minha infância. O que mais me importava era a sua felicidade. Um misto de desespero, culpa e impotência me assaltava quando eu percebia os sofrimentos dela. Minha mãe chorava muito, hoje não. Tem uma velhice mais tranquila. Meu padrasto completou 86 anos e vive ao lado dela.”

Com o objetivo de tirá-la do esquecimento, a Balada Literária 2020 vai homenagear Geni Guimarães, poeta e ficcionista nascida no interior de São Paulo (São Manoel) que, em 1979, estreou na literatura com Terceiro filho, livro de poemas. Depois vieram Leite do peito (volume de contos) e a novela A cor da ternura, que lhe rendeu os prêmios Jabuti e Adolfo Aisen – todos eles de caráter autobiográfico, em tons de protesto e de afirmação identitária, como deixou claro na entrevista concedida à revista americana Callaloo: “Escrevi porque eu tinha que registrar a vivência de uma família negra, porque este livro é autobiográfico, eu precisava falar dos meus traumas, das minhas dores e das minhas alegrias, eu tinha que colocar isso pra fora.” Para Geni, sua literatura não só exercita o sentimento de liberdade, coletivamente, como evita o silenciamento da voz afrodescendente.

A parte que te cabe

 

– A Senhora vai me visitar no hospício?

Ouvi e respirei fundo contando até dez, vagarosamente, até que uma resposta em tom de sinceridade e de empatia encontrasse o caminho entre a mente e a voz. Não era difícil compreender a desilusão diante de uma análise burocrática e fria, bem característica de quem está do lado de cá, onde é fácil esquecer que por trás de papéis, projetos e orçamentos existe vida em compasso de espera.

Corria o ano de 2011 e eu trabalhava com programas habitacionais para área rural. Ao desligar o telefone, a voz se repetia no meu ouvido. Latente, levava-me a pensar sobre o meu papel dentro da grande fábrica de sonhos. Quanto cabia da minha insignificância na resolução de uma das questões mais sérias de um país que, ao tempo em que se enxergava como a grande promessa de desenvolvimento econômico, não conseguia desmontar uma engrenagem ultrapassada e fomentadora de miséria?

O sonho, que virava pesadelo do outro lado da linha, nada mais era do que uma necessidade básica. O direito elementar de ter um teto erguido na terra onde se vive e se produz o sustento. A voz, assim como as que a antecederam, nasceu e viveu no mesmo pedaço de chão. Terceira ou quarta geração sem o título de propriedade. Alimentava-se da terra, mas não gerava renda. Sem título não se enquadrava nas condições de acesso aos programas habitacionais. Sem renda não tinha meios para construir por conta própria e nem como ser aprovado em financiamentos.

Tentei analisar o próximo processo da fila. Porém, a voz retornava e me inquietava. Trazia à mente os conflitos no campo que invadiam os noticiários e tornavam tristes as estatísticas de homicídios em todo o país. Bárbaros assassinatos e outras ocorrências motivadas por ações de resistência e enfretamento pela posse, uso e propriedade da terra, bem como pelo acesso a áreas de florestas. Naquele ano mais dois casos viravam notícia pelo mundo: José Cláudio e Maria, o casal de castanheiros que, como o seringueiro Chico Mendes, deu a vida pela parte da floresta que lhes cabia dentro do modelo de uso sustentável que defendiam.

É fato que do lado de dentro do balcão, lidando com os volumes de recursos anunciados, era acalentador perceber que se plantava uma semente. Pela primeira vez agricultores familiares conseguiam chegar até o frio balcão em que sonhos viram negócios. Alguns, depois de muitas idas e vindas, conseguiam levá-los em seus alforjes. Se essa era a forma mais eficiente, sabíamos que não. Mas não cabia à minha insignificância opinar.

Cabia à angústia despertada pela voz, no entanto, questionar: qual país se desenvolveu mantendo estruturas latifundiárias arcaicas? Qual país se desenvolveu mantendo um nível tão alto de irregularidade fundiária?  Qual país se desenvolveu sem oferecer aos trabalhadores do campo condições verdadeiras de educação e de geração de renda que lhes garantissem um mínimo de dignidade? E olhando o futuro, imaginar, qual nação sobreviverá se não repensarmos o modelo de ocupação da terra?

Quase uma década depois, assistimos passivamente a morte de todas as pequenas sementes. Planta-se em seu lugar o ódio aos pobres, aos sem-terra, aos indígenas e aos povos das florestas.  Já não trabalho no banco. Na parte, ainda mais reduzida, que me cabe sinto a necessidade de manter a serenidade e por isso escrevo. É um jeito de não permitir que o desencanto enterre a esperança de um dia ver as mortes e vidas severinas como cicatrizes de uma história muito antiga. Na ficção reencontro aquela voz:

– Está ouvindo o tilintar ? É a chave. Venha tomar um café com a gente!

Ouço a chave. Ouço a alegria. Ouço o vento reproduzindo o agradável canto da terra afagada no cio, forjando o milagre do pão e lambuzando-se na doçura do mel, como dizia uma velha canção.

 

Eu era a criança que ninguém queria brincar no recreio

chorar de frente ao muro
com os olhos cobertos de concreto /
na fala dizeres cinzas

ao invés de flores

no abraço cadeado nos dedos
dolorosos ardores expostos na saliva
há mares no engasgo da garganta
folhagens secas à procura do outono

chorar de frente ao muro
morrer de vez em sempre
sufocado e com sal na língua
dizer vapores
que atormentem a vizinhança
ser incômodo no vazio da surdina
dizer palavras tortas com os olhos
arranhados no chapisco

chorar de frente ao muro
com a agonia me esbofeteando o rosto
a ânsia invadindo minhas narinas

e na dolência povoar os meus delírios

chorar de frente ao muro &
derramar ancestrais do meu sangue
chorar de frente ao muro
chorar de frente ao muro
chorar de frente ao muro
sozinho na hora do recreio.

Ítalo Lima é escritor e publicitário. e-mail: italolimapoesias@gmail.com

_
Ajude Revestrés a continuar produzindo jornalismo independente. Contribua conosco no Catarse. A partir de R$ 10,00 (dez reais) você já nos ajuda muito. Acesse: catarse.me/apoierevestres