Vez por outra surge alguém com a seguinte indagação: professor, existem escritores negros na literatura brasileira? Acredito que um dos motivos dessa pergunta, entre outros, seja a predominância de autores brancos nos estudos e na adoção de livros escolares. Sem falar ainda, é claro, de preconceito enrustido, camuflado numa indistinta “democracia” racial. Aos que fizeram um bom ensino médio, basta lembrar de Cruz e Sousa, poeta simbolista que despontou, final do século XIX, com versos marcados por uma linguagem sugestiva e musical. Outro que firmou seu nome, embora sem o reconhecimento devido na época, foi o escritor Lima Barreto, cuja obra denunciava as injustiças sociais da burguesia carioca. Apesar da propaganda da Caixa Econômica Federal, que o embranqueceu em 2011, Machado de Assis é o mais consagrado escritor negro de todos os tempos – dentro e fora do Brasil.

Mas quanto à presença de escritoras negras, não diz nada, outros devem levantar tal aspecto. Mesmo  ainda desconhecidas do grande público, vale destacar três nomes que dignificam nossas letras, tanto em valor estético como expressão humana e existencial. Comecemos por Carolina de Jesus, favelada paulista que, apesar da vida sofrida, de catadora de papelão, escreveu um dos livros mais pungentes da literatura nacional: Quarto de despejo – diário de uma favelada, publicado em 1960, com tiragem de 10 mil exemplares, traduzido para 14 idiomas em 40 países. Destacou-se também como compositora e poeta. Segundo Ricardo Ferreira, professor da USP, ela tem uma “escrita direta, nua e crua, mas, ao mesmo tempo, suave.” Deixou uma vasta obra inédita, organizada pela pesquisadora Raffaela Fernandez, que resultou em 58 cadernos somando 5.000 páginas de texto: 7 romances, 60 textos curtos, 100 poemas, quatro peças teatrais e 12 letras para marchas carnavalescas.

Seus livros tratam, sobretudo Ponciá Vicêncio, de temas considerados incômodos, tais como discriminação racial, de gênero e de classe, evocando geralmente reminiscências íntimas e dolorosas. Estou falando de Conceição Evaristo, escritora das mais festejadas deste início de século, ganhadora do Prêmio Jabuti de Literatura 2015, com Olhos D’Água, na categoria contos e crônicas. De família pobre, desde cedo teve que conciliar trabalho e estudo, formando-se em Letras pela Ufrj, mestrado em Literatura Brasileira pela PUC/RJ e doutorado em Literatura Comparada pela Universidade Federal Fluminense (UFF). Com textos não lineares marcados por cortes temporais, em que passado e presente se imbricam, suas narrativas são duras, mas sem perder a ternura, de uma poeticidade extrema: “Minha mãe se constituiu, para mim, como algo mais doce de minha infância. O que mais me importava era a sua felicidade. Um misto de desespero, culpa e impotência me assaltava quando eu percebia os sofrimentos dela. Minha mãe chorava muito, hoje não. Tem uma velhice mais tranquila. Meu padrasto completou 86 anos e vive ao lado dela.”

Com o objetivo de tirá-la do esquecimento, a Balada Literária 2020 vai homenagear Geni Guimarães, poeta e ficcionista nascida no interior de São Paulo (São Manoel) que, em 1979, estreou na literatura com Terceiro filho, livro de poemas. Depois vieram Leite do peito (volume de contos) e a novela A cor da ternura, que lhe rendeu os prêmios Jabuti e Adolfo Aisen – todos eles de caráter autobiográfico, em tons de protesto e de afirmação identitária, como deixou claro na entrevista concedida à revista americana Callaloo: “Escrevi porque eu tinha que registrar a vivência de uma família negra, porque este livro é autobiográfico, eu precisava falar dos meus traumas, das minhas dores e das minhas alegrias, eu tinha que colocar isso pra fora.” Para Geni, sua literatura não só exercita o sentimento de liberdade, coletivamente, como evita o silenciamento da voz afrodescendente.