Wellington Soares
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Mãos grávidas

Em termos de masturbação, pensei que já tivesse ouvido tudo, menos que seus praticantes, após a morte, teriam mãos grávidas. Foi o que sentenciou Mucahid Cihad Han, um extremista muçulmano, em programa ao vivo de TV. E ainda falam que ninguém supera os escritores em imaginação. Esses a utilizam, pelo menos, a fim de entreter seus leitores, criando um mundo mágico; enquanto os fundamentalistas religiosos, por razões absurdas, a impregnam de terrorismo, incapazes de encarar os desejos como algo natural. Até que a cena seria engraçada, convenhamos, o céu repleto de mãos barrigudas daqueles que aprontaram bastante com os cinco dedos por aqui. Marcados por pecado tão vil – difícil de negar – talvez a saída fosse relaxar e gozar, acatando sugestão da ex-ministra Marta Suplicy.

Os mitos espalhados outrora, notadamente pela igreja católica, não eram tão diferentes. Todos eles exageravam no medo a fim de coibir a prática solitária do sexo, mesmo quando a medicina reconheceu o onanismo como exercício saudável para o corpo e a mente. Mas quem não lembra os horrores espalhados na infância e adolescência dando conta do pecado mortal que a masturbação representava. Um desses chegava a afirmar que levava a perda do juízo, seu praticante doido de dar pena. Outro já dizia que nascia pêlo nas mãos, expondo a pessoa ao escárnio público. Tinha o que espalhava a acne e a palidez como sintomas inconfundíveis do deslize libidinosos, obrigando o jovem a andar de cabeça baixa. O mais terrível de todos, sem dúvida, garantia que seus adeptos perderiam a mão, aleijados de vez.

A repressão por motivos morais e religiosos surgiu com o advento da cultura judaico-cristã no Ocidente, uma vez que a masturbação antes era vista num misto de ato natural e prática salutar. Há registros que na Grécia Antiga, de moralidade sexual muito livre, a punheta, nome popular que recebe no Piauí, era encarada sem nenhum tabu, costume usual entre homens e mulheres. Já os Maias faziam questão de – além de a cultivarem no cotidiano – desenharem esses rituais em pedras que são encontradas em ruínas até hoje. A rigor, o grande medo por trás de tudo isso se chama prazer, a descoberta do gozo, o temor das pessoas encontrarem o caminho da felicidade no toque do próprio corpo, ao invés da incerteza de um paraíso.

Talvez fosse recomendável o radical mulçumano, bem como os que falam em nome de Deus, ler o Auto da barca do inferno, de Gil Vicente, tido como o “pai” do teatro português. Na peça, quase todos, exceto o Parvo (louco), são desmascarados em sua hipocrisia e levados à fogueira do inferno. Ainda mais quando agora estão envolvidos com pedofilia e enriquecimento à custa da boa fé dos fiéis. O troco às “mãos grávidas” aparece bonito em versos bem humorados de um poeta desconhecido: “Entre quatro paredes do meu teto / sufocando um desejo reprimido / sinto-me por falta de afeto / um escravo do sexo proibido / faço a imagem do corpo despido / deixar o meu ego mais quieto / ligo forte o chuveiro e vou direto / ao ponto sensível da libido / quando a mão oscilante intensifica / a saliva amornada lubrifica / o envolto do órgão genital / e após cada sessão de fantasia / reconheço que fiz com quem queria / a melhor relação sexual”.

Corpo Presente

O oriente que buscamos para nos orientar, está sempre mais ao oriente. Até meus 20 anos, tratei meu corpo com toda violência que minha inconsciência foi capaz. Fugi de casa aos 11 anos de idade. Fui morar na cidade, essa mãe desnaturada. A liberdade me atraia. Ficava febril olhando os meninos de rua indo e vindo, pulando, brincando e rindo sob as luzes dos neons.

Nas ruas, pedia comida nas mesas dos restaurante até, com os meninos da cidade, aprender a roubar. Comecei cheirando éter e acetona. Aprendi a beber desde muito pequeno, do fundo do copo de meu pai. Depois conheci a maconha. Em seguida vieram as “bolas”. Preludin, Anorexil, Perventin, Estelamina, Ferlantin, dexamil, um monte. Remédios que vendiam nas farmácias e eram a base de anfetaminas. Comecei a me aplicar com cerca de 14 anos. Primeiro foi Instilaza e Risnoteg. Depois vieram as célebres “garrafinhas” de Perventin. Furei as veias enfurecidamente. Vivia para sugar todo prazer que pudesse atingir com meu corpo.

Preso, fiquei na maconha e no cigarro. Bebia quando conseguíamos destilar ou decantar algum álcool. As pessoas sequer imaginam a luta que desenvolvíamos para tomar um gole de “Maria Louca”. Destilávamos de tudo: arroz; beterraba, batata, cascas de frutas, frutas, açúcar e tudo que desse álcool. E o ferramental? Artesanato puro misturado à nossa inigualável capacidade de improvisação e invenção.

Aos poucos, fui largando. Tudo era escasso e parco, nem valia a pena tamanho esforço. Paulo Freire afirma que na medida em que o ser toma conhecimento dos códigos de comunicação da humanidade, faz uma releitura do mundo. Comigo se deu exatamente assim. Digo sempre que os livros me salvaram, salvam e salvarão sempre. Só depois que os livros penetraram em minha vida é que pude entender que existiam outros caminhos, outros campos de ação.

Só então comecei a me tratar melhor. Até então, era apenas o corpo, minha única fonte de prazer e liberdade. Não havia nada além dele. Aos poucos, fui conhecendo o pensamento, a imaginação e a capacidade de criar espaços de vida além do corpo. No decorrer dos anos, os conceitos foram mudando e o corpo foi se tornando veículo através do qual eu podia chegar à liberdade, ao prazer e à felicidade (mesmo que fugaz, mas absolutamente necessária). Não era mais o fim que justificava meios. Não era mais um corpo. Eu agora tinha um corpo e estava aprendendo a colocá-lo a serviço de minha alegria de viver.

Aprendera a fazer ginástica na cela forte da Penitenciária. Através do encanamento da privada, (nosso nauseabundo telefone), um companheiro explicava as posições e eu executava. Venho sendo preso e espancado desde pequeno. Primeiro ao preconceito porque nasci bastardo. Depois às neuroses alcoólicas de meu pai que me espancava e prendia em casa. Nas ruas eram os comissários de menores e os policiais que prendiam e espancavam. No Juizado de Menores os funcionários e os meninos maiores abusavam. Imediatamente ao ultrapassar os 18 anos, fui preso e só sai em 2004, com 51 anos de idade. Mas depois que aprendi o valor de ter um corpo sadio, nunca mais parei de me cuidar. Atendimento médico e medicamentos aqui fora, é uma grave preocupação da população. Imagine lá dentro, à mercê, sem poder sequer reclamar.

Fiz de tudo para manter a forma e a saúde. Improvisei pesos com canos de ferro e latas cheias de concreto. Bancos de caixotes de banana. Cabos de vassoura, grades, pátio de recreação, tudo era ferramenta para meu esforço. Aprendi séries de ginástica, boxe, corrida, capoeira, um monte de modalidades esportivas. Gostava de esportes em que eu era o desafiante e desafiado. Ao sair, passei por uma avaliação física na Fórmula Academia. O médico veio me cumprimentar pelo excelente estado físico que me encontrava.

De lá para cá, cometi alguns excessos. Cedi em algumas disciplinas e tentei algum equilíbrio. Não podia mais ficar me prendendo, me segurando. Havia um limite. De um certo ponto em diante, vira obsessão e opressão. Com descabida alegria, bebi um pouco e participei mais abertamente da vida. Estava aprendendo auto controle, quando adoeci. Recente, 10 anos depois, em exames clínicos, descobri que estava doente de verdade. Meu corpo estava cobrando excessos da juventude. Estou fazendo um monte de exames e vou entrar em tratamento severo. Provavelmente serei operado ou passarei por rigoroso tratamento quimioterápico. Queria envelhecer bem e chegar seguro na outra ponta da corda, mas parece que vai ser impossível.

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Luiz Mendes

03/12/2015.

Jornalistas no reino de Chronos

(Por Samária Andrade. Fotos: Maurício Pokemon)

Há cerca de dois meses finalmente aderimos à ideia que já nos rondava: criamos um site para Revestrés. A revista impressa tem publicação bimestral e, achamos, já temos certo domínio para este formato. O site se fez necessário por muitos motivos: possibilidade de chegar a espaços onde o produto físico se encontra limitado, conseguir maior visibilidade, ampliar os contatos, ter um local onde os muitos textos, matérias, entrevistas, reportagens já produzidos pudessem encontrar nova morada, novos leitores, nova vida.

Tínhamos e temos muitas dúvidas ainda: com que frequência atualizar o site? O que disponibilizar? O site atrairia novos leitores ou afastaria do impresso os já assinantes?

Seguimos adiante: criamos novas seções, abrimos espaço para blogs com atualização frequente e ficamos observando como se comporta esse bicho revista-bimestral-impressa na internet. Ficamos confortados em descobrir que não somos os únicos com mais dúvidas que certezas e nem somos os únicos que estão fazendo testes – não com o leitor, mas com a nossa capacidade de estabelecer comunicação com esse leitor.

Sim, sabemos que existe toda uma prática onde, teoricamente, sabe-se de antemão o que pode estimular as visitas: o inusitado, o apelo à polêmica, elaborar listas (seja do que for), tentar algo interativo. Pois bem: como conciliar isso e um conteúdo e linha editorial já existentes?

Impossível não é. Algumas estratégias funcionam, até nos surpreendendo. Outras vezes deduções lógicas se mostram absurdas e até nos divertimos com isso. Algumas dúvidas se dissipam, outras se renovam e se recriam com novas perguntas.

Entre estas últimas, temos enfrentado uma questão tão humana que é maior do que o jornalismo e seus suportes: o tempo.

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Haverá, nesses tempos do jornalismo da internet, tempo para o jornalismo apurar? Para se depurar? Tempo para se encontrar com a fonte? Para ouvir de sua boca, saber de seus olhos, perceber seus humores? Haverá, para o leitor, tempo para clicar além do título e ler a matéria? Quanto tempo nossa matéria permanece interessante? Quanto ela dura? Quando vai exigir novas e mais impactantes versões? Quantas visitas perdemos por não termos atualizado a tempo?

A notícia no tempo da velocidade está disposta a pôr o jornalismo em xeque. A notícia caçadora de cliques escorrega em meio a definições, não quer se enquadrar, tenta escapar à crítica, debocha do conceito de “notícia” e prefere ser “informação”. A notícia que deseja “monetizar a internet” se justifica quando é muito acessada. A notícia da instantaneidade prefere o “jornalista sentado” de que fala Fábio Pereira: aquele que está no e-mail e nas redes sociais, esperando relato da assessoria, “colando” dos outros portais, recebendo a resposta por mensagem eletrônica.

Todos essas tecnologias facilitam a vida do jornalista e, antes da inutilidade de negá-las, deve-se tentar compreendê-las, avaliá-las, saber onde, quando e como aproveitá-las. As tecnologias aumentaram a intensidade das informações transmitidas. E esse tem sido um processo contraditório, conflituoso e dinâmico para o jornalismo, que se beneficia, se prejudica, se reinventa diante do deus Chronos atualizado da internet, mais violento que o da Mitologia Grega – que engoliu os filhos temendo perder poder para eles. Para o Chronos da internet, notícia não é mais nem informação, é velocidade.

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Em meio a alguns descaminhos, há sites e portais maravilhosos que estão sabendo/aprendendo a dominar esse espaço, abrindo uma trincheira ainda difícil. Estamos de olho e queremos aprender. Por enquanto somos calouros nessa escola. Podemos até – acreditamos – nos perdoar por não termos atingido todos os cliques que pensamos, nem termos a atualização tão veloz: ora gente, não somos portal, somos site (alguém aí ainda faz site? Será que isso é anacrônico?). O fato é que notícia é obsessão de portal, não de site. E jornalismo é lugar de mudança e reinvenção. Quem sabe amanhã mudamos todas essas dúvidas e trocamos por novas.

Por enquanto gostamos de pensar que, como Zeus, engabelamos Chronos quando nos dedicamos a periodicidade bimestral, e temos tempo de encontrar a fonte, e mudar de fonte, e reescrever a matéria, que para nós não é notícia nem velocidade. É uma outra coisa nessa reinvenção do jornalismo. E pensamos ainda que nesses tempos líquidos, complexos, não existe apenas um deus Chronos, mas vários, com suas múltiplas possibilidade de tempo.

Somos também solidários a nossos amigos jornalistas que estão no jornalismo factual e nos portais e vivem, como definiu Schlesinger, a tensão entre os papeis de vítima e controlador do tempo: vítimas por estarem submetidos aos condicionantes da produção; controladores por ver os condicionantes como desafios que podem ser superados por uma habilidade que só os jornalistas do dia a dia têm na difícil busca de, correndo contra o tempo, aliar “novidade” e “importância”.

Enquanto escrevo esse texto, enquanto você lê esse texto, a tecnologia já pode ter andando algumas casas no seu projeto de institucionalização do efêmero. Chronos está de olho na periodicidade do jornalismo, que já foi uma conquista, e agora é superada.

Deixa eu concluir. Pois basta um F5 pra saber que esse blog foi ou não atualizado. A tempo.

Riqueza Desperdiçada

Hoje estive pensando sobre a energia, a arte, invenções e possibilidades de novas idéias desperdiçadas, na pessoa de todos os presos de nosso país. Passam de 500 mil homens e mulheres. Parece que podemos dispor assim, perdulariamente, de tais capacidades.
Do que posso entender, os seres humanos nascem com capacidades diferentes uns dos outros. E o Criador distribui tais dons de tal modo que parece, aleatórios. Como o sol que brilha para todos, ai também parece não haver privilégios. Claro, pessoas com mais condições econômicas, terão mais facilidades para desenvolver suas habilidades. Mas isso não lhes garante a genialidade. Há muitos exemplos de homens que não possuíam as mínimas condições existenciais, mas cujo talento, arte ou capacidade extrapolaram. E foram reconhecidos para todos os tempos.
Poderíamos citar inúmeros. Os grande gênios sofreram muito em suas existências. Para falar só de contemporâneos Marx passou fome com toda sua família; Freud, quando vivia em Viena, só saia de casa à noite: seu único paletó era puído e furados nos cotovelos. Charlie Chaplin ficou órfão aos 9 anos, depois que sua mãe enlouqueceu e morreu de fome para alimentá-lo.
Se quiséssemos recuar na história, poderíamos comentar de Sócrates obrigado a beber cicuta porque ensinava a juventude de seu tempo a pensar. Giordano Bruno; João Huss; e Joana D’arc foram queimados nas fogueiras da Inquisição. Poderíamos citar o fim trágico do Mahatma Gandhi. A vida de 27 anos preso de Nelson Mandela e os 14 anos de prisão (10 dos quais em cela solitária) de Pepe Mujica, por um ideal. Ainda temos o exemplo máximo de Jesus, que era do povo e nasceu como nascem os filhos de mendigos e viajantes da tormenta.
O tesouro da uma nação é seu povo. Não sei quem disse isso, mas verdades não necessitam de nomes para serem evidentes. Mas em que sentido? Na capacidade, cultura, educação, conhecimento e principalmente no sentido emocional da pátria, comunidade desse povo. Quanto mais investimentos na educação, cultura e lazer desse povo, mais fortuna se acumulara. A capacidade humana é transcendente. As vezes dá saltos e eis um brilhante mais valioso. Ou como querem os velhos marxistas: do velho nasce o novo e a síntese promove a história humana.
O que pensar de nosso país? Nosso povo sempre foi vassalo, tangido como gado e condenado à ignorância. Usado, abusado e eternamente relegado a si mesmo, abandonado à sua própria capacidade de se virar. Estamos em pleno século vinte um. O país evoluiu, mas veja como o povo é tratado ainda. As escolas poucas e sempre depredadas. O nível e as condições de ensino da pior qualidade. Embora os esforços dos últimos governos, não há amor e nem respeito pôr esta base da sociedade. As famílias se reduzem aos núcleos básicos para sobreviver. A saúde e a previdência social estão falidas há décadas. Não há lazer barato.
A cultura é uma piada. Quantas existem? Aquela do teatro, consertos musicais, cinemas (agora quase todos em shopping centers), livros, só existe para quem tem como pagar. O povo, relegado à suas próprias condições foi alienado de sua vida nas novelas e no jornal nacional. As favelas e morros fervilham de vidas humanas. Somente nos últimos tempos criou-se programas universitários e da casa própria, financiados pelo governo federal.
Atrás desse povo desvalorizado há séculos pelos que foram responsáveis pela riqueza da pátria, existe ainda um outro nível social. Os marginalizados; os excluídos; os inempregáveis; os perseguidos; os encarcerados; aqueles cujos ouvidos escutam outros tambores. Estes estão além do que o povo recebeu nesses últimos governos. Não terão chances nem de tentar o esforço que o restante da população realiza para melhorar sua condição existencial.
Quantos, entre esses marginalizados, poderiam contribuir para a riqueza da pátria? Quem poderia dizer que descendente de escravos, Machado de Assis pudesse ser o maior literata do país? Quantos de nossos artistas e grandes inteligências nasceram em berço esplendido? Nas penitenciária; filas de emprego; nos locais de catação de lixo, nas instituições para menores infratores ou abandonados, etc., pode estar grande parte da riqueza da nação. E assim desperdiçada, apagados na lata do lixo social.
Que tal começarmos a exigir que se faça alguma coisa a respeito? Até quando, parodiando Gabriel, o Pensador, vamos jogar a riqueza do país pelo ralo?

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“Ainda estou por aqui”

Falar de pessoas queridas não é tarefa das mais fáceis, ainda mais envolvendo os pais, sobretudo, quando esses deixam histórias que marcam indelevelmente a vida dos filhos: o alheamento da mãe pelo Alzheimer e o assassinato do pai pela ditadura militar. Entremear tais assuntos dolorosos, através da memória, foi o que levou Marcelo Rubens Paiva a escrever Ainda estou por aqui, relato que emociona ao nos levar a refletir sobre a fragilidade da condição humana. Depois de Feliz ano velho, seu livro mais celebrado, este surge também com a magia de tocar fundo a alma do leitor – Então, fico pensando, será que ela sabe que lancei um livro, cujo título é essa frase?. É muito misterioso esse processo da ausência. E meu pai também, desaparecido; eu, escritor, que quase morri no acidente com 20 anos de idade, mas ainda estou aqui para falar de coisas que eu já tinha contado em Feliz ano velho, mas não com tantos detalhes.”Ainda estou aqui

Eunice Paiva é descrita sem mistificações pelo filho, ora uma mulher inteligente e corajosa, ora uma mãe incapaz de expressar seu afeto por meio de afagos.  A italianinha, como fora apelidada na escola, desde cedo gostou bastante de ler, a ponto de preferir livros à comida, tendo como autores prediletos, dentre outros, Dostoiévski e Érico Veríssimo. Falava fluentemente francês e inglês. Aos 18 anos, foi aprovada em primeiro lugar na faculdade de letras do Mackenzie, repetindo a mesma classificação aos 42 anos, já viúva, ao entrar para o curso de direito, indo atuar em defesa dos índios. Sobre a mãe, a quem Marcelo ama muito, as referências, mesmo ela ainda viva, são feitas sempre no passado por causa do Alzheimer que a levou ao completo esquecimento: “Minha mãe tem uma saúde invejável até. Nunca fica ou ficou doente. Era magra. Era advogada atuante. Lia sem parar. Fazia tudo a pé. Andava de metrô. Nadava no mar de Búzios. No entanto…”

Quanto ao pai, o deputado federal cassado Rubens Paiva, torturado e morto por agentes da ditadura, doeu à beça, segundo o autor, relembrar o fatídico dia 20 de janeiro de 1971 com militares armados, em trajes civis, levando seu pai e sumindo com ele para sempre. Duas mentiras, ditas pelos meganhas, que sangram ainda hoje: o retorno após o depoimento e o sequestro do pai por “terroristas”. O lamento vem, por incrível que pareça, sem ódio nem sentimento de revanche: “Imaginar este sujeito boa-praça, um dos homens mais simpáticos e risonhos que muitos conheceram, aos quarenta e um anos, nu, apanhando até a morte… É a peste, é a peste, Augustin. Dizem que ele pedia água a todo momento. No final, banhado em sangue, repetia apenas o nome. Por horas. Rubens Paiva. Rubens Paiva. Ru-bens Pai-va, Ru…Pai. Até morrer.”

Uma das passagens bonitos do livro, talvez um refrigério nesses enredos tão tristes, é o paralelo que Marcelo faz entre o arquivo de memórias construídas pelo filho desde o nascimento, ocorrido em fevereiro de 2014, e o distanciamento de quase tudo da mãe, heroína capaz de enfrentar com destemor a opressão, mas vencida por uma doença absurda dos tempos modernos – “Doença que não apenas afeta a memória, mas embaralha emoções, enaltece desagrados que não existem, muda o humor até do mais calculista dos matemáticos”. O título do livro, lançado pela Alfaguara, remete à frase mais usada hoje por Eunice Paiva, apelo dramático de alguém que não aceita ser escanteado do espetáculo da vida. No final do texto, vem a resposta comovente e sofrida do filho: “Sim, você está aqui, ainda está aqui. (…) Enquanto a morte do meu pai não tem fim.” 

SAO PAULO / 30/07/2015 / CADERNO 2 / SAO PAULO / 30/07/2015 / CADERNO 2 / Família de Marcelo Rubens Paiva. Marcelo Rubens Paiva. Credito: Renato Parada

Marcelo Rubens Paiva. Credito: Renato Parada