Luiz Alberto Mendes
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Médicos desumanos

 

Eu devia ter uns 9 anos de idade. Minha garganta vivia inflamada e tudo indicava que operaria as amídalas. Minha mãe acordava comigo na madrugada e, só com o café na barriga, pegávamos o ônibus para ir ao Hospital das Clínicas. Só havia dinheiro para a condução dela. Eu era pequeno e passava por baixo da catraca.

Geralmente eu vomitava no ônibus. Era começar a rodar para que minha cabeça rodasse e o espasmo no estômago fosse automático. Colocava a cabeça para fora. Uma vez peguei um jovem que vinha de bicicleta na contra mão. Foi rápido: coloquei a cabeça para fora e veio tudo um jorro só. Bateu no rosto do ciclista e o derrubou na calçada. Ficou lá, todo melecado e se limpando, sem acreditar.

O dia não havia clareado e a fila para marcar atendimento estava enorme. As pessoas hoje não sabem o que é aguentar fila realmente. Ficávamos 5 ou 6 horas só para marcar consulta. Depois eram outras horas para ser atendido. E de pé. O povo era muito mal tratado.

Estávamos na fila da consulta. Mais da metade da jornada havia sido cumprida. Eu e minha mãe estávamos com fome. Ambulantes vendiam coxinha, esfirra e cachorro-quente. Não havia dinheiro. “Lambe com os olhos e come com a testa”, dizia minha mãe. Eu olhava as pessoas que rodeavam os carrinhos com ressentimento. Porque eles podiam e eu não? Não conseguia entender. Então um médico (roupa branca e máscara) sai da sala de atendimento e nos olha na fila. O enfermeiro vem atrás e o doutor reclama:

_ Porque toda essa gente ainda? E nos olhava qual fosse algum objeto que ele não gostava.

_ Mas Doutor, são as consultas do dia. Estão agendadas, alguém precisa atender! Dizia o enfermeiro com a voz esganiçada.

Os dois voltaram para a sala de consulta discutindo. Logo o enfermeiro voltou cortando a fila pela metade. Por sorte estávamos entre os cinco primeiros afortunados. Os demais teriam que voltar dia seguinte. O Doutor estava com a agenda cheia e tinha pressa. O pessoal saiu cabisbaixo. Alguns caminhavam com dificuldades, mas seguiam conformados. Aquilo doía em mim, embora não entendesse ainda por que.

Ao sermos atendidos, o médico, de luvas e máscara, falava de longe, nos evitando qual tivéssemos doença contagiosa. Quando precisou examinar minha garganta, o fez com a ponta dos dedos. Minha mãe fuzilava com os olhos, estava quase chorando de raiva. Segurou, engoliu sei lá o que. Sua boca se movimentava, mas não saia som. Eu a olhava espantado. Recebeu o papel com os rabiscos que me encaminhava para a cirurgia. Abaixou os olhos, fez como quem cuidava de mim, não agradeceu e saiu, me empurrando. Eu não havia entendido nada.

Na rua, comigo em sua mão, ela encostou a cabeça no muro do hospital e chorou. Minha mãe chorava feio, quase ganindo como um cão. Depois enxugou os olhos, assoou o nariz, se abaixou à minha altura e disse gravemente, olhando o fundo de meus olhos:

_ Meu filho, aquele homem fez aquilo conosco porque deve ser rico, estudou e por isso se acha melhor que nós. Pois você vai estudar, saber mais que aquele homem e mostrar a todos esses filhos da puta (raras vezes a ouvi dizer “palavrão”) que somos iguais e até melhores que ele! E saiu me levando pela mão, batendo o pé no chão, de queixo erguido e consciente do que havia me dito.

Até hoje tenho problemas com médicos. Preciso estar morrendo para procurá-los. Na prisão fiquei mais traumatizado ainda com os médicos que me atenderam. É claro que sei que há bons médicos. Conheço alguns. Mas, me lembrei deste acontecimento e precisava relatar. Recordei o fogo nos olhos de minha mãe. Voltei-me aos livros e nunca mais parei de estudar. Um dia chego onde ela queria.

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Luiz Mendes

19/06/2010.

Crianças

Estava jogando bola no quintal com meu filho mais novo, Jorlan, e duas menininhas que moram na frente de casa. Pensava no que escreveria dessa vez. De repente, o moleque, que vai fazer sete anos, caiu para a esquerda. Tentei jogar o corpo para barra-lo (já estava 4 a 1, a essa altura do jogo, para ele, obvio), escorregou igual quiabo e lá foi o bobão do pai para o chão, de cara.

Quis rir mas doeu. O braço estava machucado, o ombro ralado e a testa com estrelinhas de quem percebe a pressão caindo vertiginosamente. Pesquei a mim mesmo de dentro vórtice que ameaçava me engolir. A escuridão me invadiu e me senti poeira dentro de um túnel de vento. Na boca, o gosto daqueles frutos ácidos. Dentro dos olhos, vários sóis e esperei cair as flores decepadas, como em um livro de Genet.

De dentro do meu cansaço físico, minha sombra era trapo roto a me envolver. Sai andando às cegas, com sorriso branco pregado no rosto. As crianças me olhavam. Disfarcei. Esta chovendo, chega: crianças para dentro de casa. As dores eram moles como relógios a escorrer mesa abaixo, num quadro de Di Cavalcanti. A garoa intensificava. O vento abraçava minha voz em dilatado murmúrio e eu achava incrível que tudo o que estava sentindo, pudesse estar guardado por trás de meus olhos.

Já sentiu uma tristeza mansa, assim lenta, de pedra lavada, sem pulsação? Despertei, a elegância da chuva me comovia, tudo, de repente, era tão leve… Fiquei olhando as crianças desobedecendo e correndo, alegres, para debaixo da chuva e aquilo lhes bastava. A luz quebrava a garoa que em cortina lambia cabelos revoltos. Fiquei ali, cheio de dizer não, na insólida consciência de que não adiantava. Senti que a existência das coisas são todo sentido que há nelas.

Por paradoxal pareça, vivo uma paz que não conheço, mas que pelo menos já não finjo. No entanto existe. Sou o que em torno de mim esta. E essas crianças me garantem que eu não sou apenas um estúpido que pensa e que sempre há motivos para continuar. O riso, a briga, pequenos rostos vermelhos a suar esbaforidos, exprimem uma satisfação de viver que animaria uma pedra.

Nesses momentos, já nem sei se ainda tenho uma alma ou um mar de ternura que se derrama. Talvez eu seja louco o suficiente e consiga derrubar os obstáculos. Os sonhos nunca morrem, é o título de um livro. Deslocam-se, silenciosos e furtivos, para o esquecimento, diz o poeta. No entanto, ouso. Junto às horas mortas, empurro os destroços do que tenho sido, necessitado um tanto ainda.

O sentimento que enche meu peito, é de uma sabedoria que jamais quis. Aquela espremida das dores, recolhida do sofrimento, dos terminais da tristeza e da solidão. Ainda caminho a invencível estrada, embora mais decididamente.

* Composto por Luiz Alberto Mendes em 21/09/2005 *

Deus

Estou muito preocupado com um amigo que mora do Estado que teve mais deputados votando contra o impeachment. Muito preocupado. Somos amigos há cerca de 16 anos. Sou testemunha de sua educação esmerada e de sua ética inatacável. É um sujeito humano, bom e que participa de todas as causas justas e coerentes. Eu jamais o vi em falha, nunca soube de um só deslize de sua parte, muito pelo contrário. A todos que o apresentei só ouvi falar bem e se tornaram amigos dele também. Dava para ficar tecendo elogios o texto todo, mas apenas saliento por conta do drama que ele tem vivido, exatamente pelo seu alto senso de humanidade e bondade.

Meu amigo é homossexual daqueles tão discretos que ninguém percebe, só mesmo quem o conhece intimamente. Nem lembro a quantos tempo atrás, creio que uns 10 anos. Em seus cometimentos de fazer o bem a quem necessita, em uma favela, ele conheceu um garotinho que não devia ter completado 3 anos de idade. A família era paupérrima, com muitos irmãos pequenos e a situação social deteriorada. Meu amigo pegou-se de compaixão pelo menininho e passou a visitá-lo, levar para passear, cuidar e apoiar a família toda. Com o tempo aquela compaixão virou amor e o amigo quis adotar o pequeno. A mãe, é claro, ao ver o filho assim querido e com um futuro garantido, prontamente resolveu apoiar a medida. Depois de anos de muita luta com papéis, juízes, promotores, psicólogos e assistentes sociais, saiu a ordem de adoção. Foi uma vitória para ambos: o menino já o chamava e tratava como pai.

O amigo é doutor, professor universitário e provem de uma família de posses, esta proporcionando uma infância de verdade ao garoto. Então aparece um outro garotinho em condições parecidas com o primeiro. Claro, meu amigo se apaixonou pelo menininho e raciocinou: quem cuida de um, pode muito bem cuidar de dois. E novamente lá foi meu amigo pedir guarida à justiça para ter a guarda sobre o garoto. Dessa vez foi mais fácil: havia provado ser capaz, o primeiro garoto estava sendo feliz e crescendo saudável. Vive em apartamento de primeira classe, com casa na praia, escola e professores particulares. E eis que o amigo vira pai e mãe de dois meninos. Não demorou para a felicidade viesse novamente bater à sua porta e finalmente, encontrou um parceiro que o merece e os quatro vivem uma vida que “pediram a Deus”.

Parece uma bonita história de ficção, não é? Mas não, é verdadeira. Eles são uma família e sou testemunha que são muito felizes juntos. Mas, não é mesmo, sempre existe o “mas”. Há o medo desses canalhas que querem legislar para a vida dos outros de acordo

com seus preconceitos religiosos. Não lhes basta suas famílias, que devem ser muito infeliz, pois quem é feliz não deseja prejudicar a família de ninguém, querem se meter com a família dos outros. Depois dessa demonstração de forças ao darem prosseguimento do impeachment da nossa Presidenta, podem querer avançar e votarem, como é desejo deles, um estatuto da família que só vá reconhecer a família de pai, mãe e filhos. E o medo é de que a família tão feliz de meu amigo vá sofrer algum impedimento e as crianças algum constrangimento.

O amigo, que tem posses, já cogita mudar-se para o exterior, algum país mais civilizado e educado, onde possa dar prosseguimento à felicidade de sua família. Quer dizer: quantos bons brasileiros vão ter que abandonar o país porque o preconceito e a ignorância por aqui campeia? Culpa de quem? Dá péssima escola, da má formação e da prejudicada educação que o nosso povo esta sujeito desde tempos imemoriais. Não conhecem o poder do voto, não sabem que podem modificar tudo que esta por ai. Incultos e ignorantes, crescem ingênuos para votam no primeiro charlatão que lhes falem de um Deus de mentira, parcial, vingativo, preconceituoso e que os apóia em detrimento aos outros. Paulo Freire já dizia que isso é fruto da periculosidade daqueles que realmente mandam neste país.

Deus não pode ser de alguns,

Há que ser de todos ou de ninguém

E da família de meu amigo também.

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Luiz Mendes

19/04/2016.

Títeres e Lampiões

Estamos à mercê de nós mesmos. Óbvio, não é mesmo? Seria de estranhar se esse não fosse o caso. Um prisioneiro sem muralhas ou grades, é um escravo. Um escravo que não careça ser torturado para sê-lo, é um títere. E o que é um títere? Marionete, boneco de pano movido por cordéis. E esses cordéis, por acaso seriam o dinheiro, a propaganda, ou mais precisamente o marketing? Depois de Pavlov, marketing e auto-ajuda “formatam” a mentalidade dos seres humanos.

Penso se o que vivemos na sociedade moderna não faz de nós prisioneiros sem grades. A rotina traz segurança, mas infere recompensa posterior. Ninguém vai se permitir às rotinas cotidianas caso não haja compensações. Até concordo que escolhemos caminhos. Mas as disciplinas e exigências inerente ao caminho escolhido, acabam por serem excessivas. O custo do bem adquirido ou do erro cometido é demasiadamente caro. Tudo vira rotina massacrante que nos submetemos a pulso e mesmo sem acreditar mais em resultados.

O que é um títere (gostei da expressão) na prática social? Alguém cuja vontade não é levada em consideração. Pergunto se a nossa vontade tem sido observada e devidamente considerada. Somos nós que determinamos o que fazemos ou estamos à mercê de decisões alheias? Elegemos nossos representantes, mas é possível que eles realmente nos representem e cumpram com o que prometeram? Tudo depende das conjunturas e da correlação de forças, não é mesmo?

Os funcionários de 1º, 2° e 3º escalões e em cargos de confiança (essa excrescência da gestão pública brasileira) estão apreensivos em todo país. O grupo político que esta no poder e a oposição digladiam: parece o samba do “criolo doido”. Corruptos fingem que atacam a corrupção para que suas falcatruas sejam “esquecidas” e possam produzir mais corrupção ainda. Ninguém quer tirar a Presidenta por motivos reais. É que se ela prosseguir no governo, temem que a Operação “Lava Jato” os leve para a prisão, como alguns poucos que foram. Ou querem que o balcão de “negócios” seja reaberto para que negociações escusas possam se efetuadas. Há muitas pressões, ameaças, exaltações, conchavos, verdadeiras guerras de foice no escuro por cargos e oportunidades. Eles equivalem a mais de 2 anos de chances de riqueza e mordomias plenas e, quem sabe, uma recondução em 2018.

E o tempo, os horários a nos prenderem em suas malhas de aço? Dormimos mais tarde que precisamos e somos obrigados a acordar mais cedo que queremos. Ingerimos alimentos rapidamente para “aproveitar o tempo”. Vivemos mortos de sono. Embora, paradoxalmente, sofrendo de insônia. O tempo é relativo a muita coisa, mas principalmente ao modo de vida e cultura de cada pessoa, de cada sociedade e também de cada espécie.

Os zoólogos afirmam que diferentes espécies de animais percebem a passagem do tempo de maneiras diferentes. Até onde sei, os programas televisivos passam cerca de sete quadros por minuto. Parece que essa velocidade é perfeita para o entendimento humano. Mas veja: para um desses pássaros caçadores de insetos, como o sabiá, deve parecer totalmente desarticulado. Seu sistema nervoso funciona de modo a acompanhar vôos muito mais rápidos dos insetos que caça para viver.

Acho que o problema deve estar no fato de que ordenamos as coisas que percebemos no mundo do modo como sabemos. E, com certeza, deve haver muitos outros muitos modos alternativos. Aprendi vivenciando que deixamos de ter chances de encontrar unicamente quando deixamos de procurar. Por enquanto vamos seguindo, acendendo lampiões para não morrermos no escuro.

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Luiz Mendes

13/04/2016.

Liberdade e preconceito

Tento me reinventar a cada texto. Não suporto me repetir, embora o faça até sem querer. E isso esta se tornando cada dia mais difícil. Já um célebre pensador dizia que depois de Shakespeare ninguém criou mais nada. Sou obrigado a concordar em parte. É só observar o enredo das novelas e dos filmes atuais para enxergar as histórias do grande vate britânico. O que me leva a pensar que não somos livres quanto aos arquétipos históricos. Estamos presos a super permanências históricas e condenados a nos repetirmos.

A população do planeta aumenta 210 mil pessoas por dia; cerca de 3 pessoas por segundo. Essa multidão de novos moradores do planeta vai ficar repetindo o que todos anteriormente fizeram? Liberdade mesmo só existe para aqueles que buscam o novo, inusitado. Tem a ver com expansão, com crescer para todos ao lados. Expandir em termos de conhecimentos para aumentar nossa capacidade de dimensionar a existência.

À medida em que empreendi aprendizado, fui respondendo às minha indagações e entendendo um pouco mais do processo existencial. Então construí uma liberdade especial que pouco tinha a ver com ir e vir apenas. Era um processo ao mundo e às pessoas com meus livros, textos e idéias.

Em muitos momentos, por paradoxal pareça, mesmo aprisionado, estive mais livre do que agora estando do outro lado da muralha. Claro, vou conseguindo por aqui um desempenho bastante razoável. A responsabilidade por nossos dias tangencia a história geral na qual estamos incluídos. No fim, penso, estamos agregados ao destino de todos e temos pequeno espaço para desenvolver o nosso.

Da prisão sai com um único preconceito. Todos os outros a vivência carcerária alijou de uma vez para sempre. Jamais gostei de polícia. Desde muito pequeno, sempre torci para os bandidos. Eram meus inimigos pessoais. Eu os vi cometer muitas barbaridades e sempre com enorme covardia. Sofri demais em suas mãos, desde menino e por décadas.

Então fui pai. Como tudo muda quando temos vidas sob nossa responsabilidade! Nunca havia sido responsável por ninguém. Fui pego inteiramente de surpresa. E estava preso. Vi minha companheira tão frágil e indefesa, com o nenê no colo e comecei a entender meu engano.

Também eu quis sentir que eles estavam protegidos pelas leis e pela polícia. Minha condição de presidiário me colocava inteiramente a mercê. Não podia estar lá para olhar por eles e defendê-los. Essa releitura me ajudou a construir minha cidadania, meu compromisso com a coexistência social. Minha libertação desse preconceito se deu por expansão e não por mudanças pessoais. Todo preconceito limita, cerceia.

Não acredito em transformações ou mudanças. Somos sempre nós mesmos nos fazendo melhores ou piores em relação a tudo o que nos cerca. Quando aprendo tomo posse de um conhecimento que me leva para além do que sou. Posteriormente esse novo entendimento vai ser ponte para novos aprendizados. Sou o que aprende. Aprender é expandir, crescer dentro de si mesmo. Sou todos que fui em camadas superpostas que formam o que sou hoje. Não há limites à expansão.

Com a liberdade não ocorre o mesmo. Somos livres apenas para escolher as regras que mais se adaptam ao nosso sistema pessoal de existência. Vencer um preconceito é avançar em nossa existência. A liberdade de aprender é sempre o primeiro passo e aprender é expandir, ultrapassar, ir além. O homem é um devir, como queriam os existencialistas.

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Luiz Mendes

06/04/2016.