Eu devia ter uns 9 anos de idade. Minha garganta vivia inflamada e tudo indicava que operaria as amídalas. Minha mãe acordava comigo na madrugada e, só com o café na barriga, pegávamos o ônibus para ir ao Hospital das Clínicas. Só havia dinheiro para a condução dela. Eu era pequeno e passava por baixo da catraca.

Geralmente eu vomitava no ônibus. Era começar a rodar para que minha cabeça rodasse e o espasmo no estômago fosse automático. Colocava a cabeça para fora. Uma vez peguei um jovem que vinha de bicicleta na contra mão. Foi rápido: coloquei a cabeça para fora e veio tudo um jorro só. Bateu no rosto do ciclista e o derrubou na calçada. Ficou lá, todo melecado e se limpando, sem acreditar.

O dia não havia clareado e a fila para marcar atendimento estava enorme. As pessoas hoje não sabem o que é aguentar fila realmente. Ficávamos 5 ou 6 horas só para marcar consulta. Depois eram outras horas para ser atendido. E de pé. O povo era muito mal tratado.

Estávamos na fila da consulta. Mais da metade da jornada havia sido cumprida. Eu e minha mãe estávamos com fome. Ambulantes vendiam coxinha, esfirra e cachorro-quente. Não havia dinheiro. “Lambe com os olhos e come com a testa”, dizia minha mãe. Eu olhava as pessoas que rodeavam os carrinhos com ressentimento. Porque eles podiam e eu não? Não conseguia entender. Então um médico (roupa branca e máscara) sai da sala de atendimento e nos olha na fila. O enfermeiro vem atrás e o doutor reclama:

_ Porque toda essa gente ainda? E nos olhava qual fosse algum objeto que ele não gostava.

_ Mas Doutor, são as consultas do dia. Estão agendadas, alguém precisa atender! Dizia o enfermeiro com a voz esganiçada.

Os dois voltaram para a sala de consulta discutindo. Logo o enfermeiro voltou cortando a fila pela metade. Por sorte estávamos entre os cinco primeiros afortunados. Os demais teriam que voltar dia seguinte. O Doutor estava com a agenda cheia e tinha pressa. O pessoal saiu cabisbaixo. Alguns caminhavam com dificuldades, mas seguiam conformados. Aquilo doía em mim, embora não entendesse ainda por que.

Ao sermos atendidos, o médico, de luvas e máscara, falava de longe, nos evitando qual tivéssemos doença contagiosa. Quando precisou examinar minha garganta, o fez com a ponta dos dedos. Minha mãe fuzilava com os olhos, estava quase chorando de raiva. Segurou, engoliu sei lá o que. Sua boca se movimentava, mas não saia som. Eu a olhava espantado. Recebeu o papel com os rabiscos que me encaminhava para a cirurgia. Abaixou os olhos, fez como quem cuidava de mim, não agradeceu e saiu, me empurrando. Eu não havia entendido nada.

Na rua, comigo em sua mão, ela encostou a cabeça no muro do hospital e chorou. Minha mãe chorava feio, quase ganindo como um cão. Depois enxugou os olhos, assoou o nariz, se abaixou à minha altura e disse gravemente, olhando o fundo de meus olhos:

_ Meu filho, aquele homem fez aquilo conosco porque deve ser rico, estudou e por isso se acha melhor que nós. Pois você vai estudar, saber mais que aquele homem e mostrar a todos esses filhos da puta (raras vezes a ouvi dizer “palavrão”) que somos iguais e até melhores que ele! E saiu me levando pela mão, batendo o pé no chão, de queixo erguido e consciente do que havia me dito.

Até hoje tenho problemas com médicos. Preciso estar morrendo para procurá-los. Na prisão fiquei mais traumatizado ainda com os médicos que me atenderam. É claro que sei que há bons médicos. Conheço alguns. Mas, me lembrei deste acontecimento e precisava relatar. Recordei o fogo nos olhos de minha mãe. Voltei-me aos livros e nunca mais parei de estudar. Um dia chego onde ela queria.

**

Luiz Mendes

19/06/2010.