querida Camila,

já reparou que quando a gente acorda, todo dia, a gente tem a possibilidade de começar tudo de novo, de levantar tudo do zero, de, sei lá, ser outra pessoa se a gente quiser. É como se toda noite fosse réveillon – só que me parece que a gente amanhece sempre de ressaca, sobretudo na segunda-feira.

eu tava me lembrando dos dias que passamos só existindo. que bom que a gente sabe guiar um carro, que bom que inventaram o fast food, e que sorte a nossa existir carro (que não é nosso) e dinheiro (que até pode ser) ao mesmo tempo juntos para ir no fast food. você sabe o que eu vi na rua dia desses? um drive thru na farmácia. pra mim foi um tiro no peito, foi o fundo do poço – não estamos mais nem disfarçando o quanto somos uma sociedade doente, que acha que comprimidos podem nos levar em frente. é aspirina na janela, baby.

a gente vai morrer de qualquer jeito, não tem muito o que pirar. mas entre chegar e partir tem um intervalo de paisagens e encontros bonitos, que as vezes a gente quer ver, noutras nem tanto – e nem todas são belas, também. da tempo de recomeçar, tem espaço pra ser o que a gente quiser mesmo que não se tenha pretensão de ser nada.

estou mesmo cada vez mais convencida de que tudo o que a gente pode fazer é mudar a maneira como recebemos e sentimos as coisas. o outro, ah, o outro, camila… ele não tá a nosso alcance. ele é aquela imagem do horizonte distante que parece ao mesmo tempo tão perto. é estranho e até injusto que a gente precise tanto dele pra se definir – é sempre tão melhor as coisas que podemos controlar. os sentimentos, as crises, a dúvida, a angústia. queria poder não dar margem a imprecisão. “que eu seja leve”, pedi a uma pedra mágica que segue sendo peso de papel.

eu sei que te dói a quantidade de gente mal e você olhando do alto da sua própria dor de existir e pensando que queria salvar todo mundo. eu te vejo num bote baqueado e vc querendo resgatar a tripulação do titanic, mas não dá, veja você, as vezes demonstrar amor é também tentar se salvar – não se esqueça que as aeromoças botam as máscaras primeiro nelas.

o Caetano estava na tv dizendo que não somos tão estranhos ao futuro quanto pensamos. o futuro não é totalmente desconhecido, é uma série de possibilidades, de coisas que a gente intui – é preciso se ouvir, no entanto, no meio de tanto barulho por nada. no último sábado meu pai me disse pra ter paciência, que às vezes algo muito grande está bem perto de acontecer. eu achei que ele estava falando da vida, no campo das coisas reais e concretas. era sobre o sorteio da loteria.