(Marcos Hermes/Divulgação)

 

Tem um trecho do documentário “Uma noite em 67” em que Caetano Veloso aparece comentando a canção que apresentou – na final do III Festival da Música Popular Brasileira da Tv Record, já tinha tido de tudo: Roberto Carlos e Chico Buarque arrancando suspiros, Gilberto Gil e Os Mutantes e Sérgio Ricardo muito pistola quebrando o violão e jogando na plateia enfurecida. Foi um baiano franzino, num terno quadriculado uns dois números maiores que o seu, acompanhado pelos Beat Boys, que dobrou o público. O peito cheio de amores. No rosto, “Alegria, alegria”.

(Tente não se arrepiar)

Começo esse texto lembrando o episódio de 67 (eu sou aloka das histórias dos festivais, me chama pra uma cerveja e fofocar sobre, bb) porque essa é a primeira música de Caetano que me lembro ter ouvido, ainda na infância. Curiosamente, é essa marchinha que abre o show mais recente dele com os filhos, o Ofertório, que acabo de assistir em Fortaleza. Mais de meio século depois de escrevê-la, os primeiros acordes tocados ao violão seguem emocionando, talvez por, ironicamente, seguir traduzindo tão bem a história.

O Ofertório surgiu assim: Caetano estava planejando um show com os filhos, era um desejo antigo tocar com eles, embora faltasse convencer Zeca, o mais tímido dos três. Aí quando eles estão nessa de “vamos ver ai”, “qualquer dia a gente marca”, escolhe repertório (Caetano passa o show todinho fazendo questão de dizer qual canção cada um escolheu), pensa na banda e… espera um pouco: não precisa de banda nenhuma! De repente Caetano se tocou que tinha ali mesmo, dentro de casa, excelentes instrumentistas. No show, Zeca (autor de “Todo homem”), toca piano e contrabaixo, Tom e Caetano nos violões e Moreno, muito maravilhoso, além de violoncelo, tira som até com um prato e uma faca de cozinha.

Eles foram juntando música que o pai fez pro filho, o filho pro pai, o filho pra mãe, o pai para a avó. Ofertório é um show sobre ter fé, e acho que por isso me toca tanto. Tem um momento em que Caetano se diz ateu, exatamente quando ressalta a religiosidade dos filhos: “Zeca e Tom são cristãos e Moreno é macumbeiro”. A plateia ri, mas dá pra ter ali uma clara noção do ambiente plural em que cada um deles cresceu e foi criado – para se ter uma ideia, Zeca frequenta a Universal e toda a imprensa divulgou isso como um fato curiosíssimo de sua personalidade.

“Todo homem” foi a segunda música que ele compôs, aos 22 anos – a primeira, ele diz que mostrou para o pai, que não aprovou. No show ele, que escuta pagode e Prince, arrisca uns passos de samba: “Eu fico nervoso, não consigo”. Todos dançam em algum momento: Caetano e Moreno em “How Beautiful Could a Being Be” (música que Moreno fez de presente para o pai, aos 9 anos) e Tom desengonçadamente lindo no funk Alexandrino.

É bonito ir acompanhando a história por trás de cada canção. “Agradeçam a Tom por esta estar no show, ele tem um gosto muito sofisticado”, diz o vaidoso pai da trupe. É tudo muito bem ensaiado, mas nem por isso menos lindo – há espontaneidade como quando Moreno conta a história do jenipapo (estou muito confusa agora porque o nome da música é “Genipapo abosoluto”, mas o Google diz que a fruta é jenipapo, com J), um fruto comum em Santo Amaro e do qual se originou o chiclete. “Eu não sabia disso não”, diz Caetano surpreso.

Dois momentos me emocionaram em especial: “Ofertório”, que dá nome ao show; e quando Caetano anuncia que vai cantar as músicas que fez para as mães de seus filhos (“Ela e Eu” e “Não me arrependo”, das músicas mais lindas de todo o universo). “Ofertório”, que eu  sabia, tinha sido composta para dona Canô, fez muito mais sentido com a explicação no show: é como uma prece proferida por ela. O que, no contexto de um show onde quatro homens exaltam a presença feminina em suas vidas se traduz em uma das mais lindas homenagens. É um repertório afetivo. Deixou meu coração mais leve, me deu fôlego pra continuar (mete o pé e vai na fé!).

Caetano existir é uma prova de que a vida é boa.
E de que a beleza vence o mal.