A primeira vez que eu vi Paulo Fernando foi incrível.

Mentira. Eu não me lembro da primeira vez que o vi. Lembro de ser um rosto familiar, sempre por ali, no circuito, amigo dos meus amigos mas que, no entanto, não era meu amigo.

Pode não ter sido a primeira, mas foi a mais marcante, talvez, a vez em que ficamos cara a cara na minha entrevista de seleção do mestrado. Ele me olhava rindo e surpreso: “Como assim você não gosta de ler e quer vir pro nosso programa?”, me perguntava num misto de desprezo e compaixão. Eu nunca pude me explicar sobre isso, mas coloco agora que, acima de qualquer imagem durona que tentou me passar, sua provocação era mais atraente que assustadora.

A segunda aula do segundo dia no mestrado era dele. Teorias da Comunicação, quatro horas daquele homem que espalmava a mão uma na outra como quem quer estalar o nosso pensamento e repetia “percebe?” o tempo todo. Eu não entendia nada do que ele falava, exceto quando refletia sobre a vida, e tocava em pontos tão caros à minha pobre existência humana. Em dois anos foram dezenas de moleskines que hoje guardo com afeto e aos quais recorro para lembrar aquela frase, dita naquele dia, quando citava aquele filme ou ensaiava cantar um trecho daquela canção. Jamais foi chato, nem por um minuto, ir para uma aula do professor Paulo Fernando – pelo contrário, era dormir por cima dos textos na véspera, lendo pela milésima vez, pela necessidade de participar, minimamente, das discussões daquele cara. Eu precisava entender o que ele dizia.

Também fui parar no grupo de pesquisa que ele comanda – Jornalismo e Discurso, o JORDIS – e me encantava ainda mais o modo prazeroso e empolgado com o qual falava das pesquisas ali desenvolvidas. Era impressionante a capacidade dele de aproveitar qualquer resquício das asneiras que a gente falava, só pra fazer a gente se sentir útil naquele debate (hoje eu percebo). Era atencioso e humilde, fazia provocações e perguntava o tempo todo dizendo: “pode falar o que você tá pensando, preciso entender o que se passa na tua cabeça pra te ajudar”.  Nessas noites de sexta, depois de uma semana cansada, a gente se esforçava pra acertar os conceitos valendo um quilo de picanha – ele prometia e pagava. Talvez foi a essa altura que eu pensei em querer ser, minimamente, um dia, pelo menos um tiquinho do que ele era.

Um dos primeiros e-mails que a gente trocou, foi ao final daquela disciplina de Teoria, quando a turma toda levou bomba nos artigos – eu, no auge da minha arrogância, escrevi essa mensagem surpresa com a minha nota, um 7,3. “Você devia estar dando pulos de alegria que a sua nota foi uma das maiores”, ele respondeu. O sete era o novo dez, e meu professor me ensinava ali a ver o mundo por outra perspectiva.

É preciso lembrar da sua fama e o quanto ela nunca me afetou. “Orientanda do PF? Boa sorte”, diziam alguns. “Ele me reprovou”, “ele é muito cri cri”, ele isso, ele aquilo. Todo mundo tinha uma história impactante pra contar sobre meu orientador. “A verdade é que é mais fácil pras pessoas culparem os outros do que assumirem suas mediocridades”, ele me disse certa vez e eu anotei como muitas das frases e reflexões. Ele nem sabia, mas às vezes eu registrava até um papo informal – que eram raros, não pense você que ele é assim propriamente fácil. Foi muito difícil quebrar esse distanciamento imposto, professor e aluno. Foram meses pra ele me dar moral no whatsapp – e vez ou outra eu ainda levo umas patadas. Foram quase três anos, muito chororô e madrugadas de aflição conjunta até chegar aqui.

Eu sonhava com esse dia em que, após defender a dissertação, a gente seria amigos. Eu queria, a toda força, arrumar um espaço na vida e no coração da pessoa que existia atrás do professor turrão. Exigente? Sim. Duro na bronca? Com certeza. Mas Paulo Fernando é talvez uma das pessoas mais doces e prestativas que eu conheço – maior que sua inteligência, só seu coração, eu disse certa vez enquanto falava para uma plateia de alunos que estava ali para vê-lo, mas ele, generoso como sempre, dividiu o momento com a gente, seus meros orientandos.

Paulo Fernando me cobrou até o último minuto – até a véspera da defesa, enquanto eu tentava abstrair o peso daquilo tudo e ele dizia: “Tem uma pessoa cruzando o país pra comentar o seu trabalho”. As pernas tremiam, eu estava em pânico. Ele batia e assoprava, como um pai que consola pela queda mas não deixa de falar: “eu avisei”.  “Agora vá dormir que você já fez o suficiente”, me ligou para dizer.

Meu professor me ensinou que a insegurança é fundamental pra gente se preparar bem – mas que, em excesso, pode te prejudicar, e que é preciso equilíbrio o tempo todo entre autoconfiança e dedicação. Me ensinou que a gente só aprende na dor – mas que nem tudo precisa ser tão Maria do Bairro assim. Me deu a chave da sua sala pra que eu pudesse escrever quando fiquei desabrigada (o meu processo de desterritorialização foi vivido na prática), abriu as portas e os ouvidos pra me ouvir e corria pra pegar lenços quando eu usava o espaço da orientação para chorar. A gente falava da vida, do sentido, da linguagem, do peso da palavra, dos sentimentos humanos e às vezes, até, dos rumos da pesquisa.

Com Paulo Fernando aprendi que o que acaba são os prazos. Não as pesquisas, nem os planos, nem os sonhos. Talvez ele nem saiba, mas eu aprendia mais com o que ele é do que com o que me dizia. Sempre um filme para me indicar, sempre um livro para oferecer, a piada pronta pra fazer. Desde o dia que o vi dando seu espetáculo na sala de aula, eu jamais consegui ser a mesma. Que homão da porra, que showman, meu deus deixa esse professor me reprovar mas por favor, faça com que sejamos amigos um dia – eu rezava.

O mestrado acabou, as orientações passaram e ficou um buraco, uma saudade. Foram dois anos dele pegando na minha mão e me ajudando a enxergar, e isso explica porque ainda é pra ele que eu corro quando alguma coisa aperta. Na semana passada eu fui ousada e enviei: “Posso passar na sua sala pra bater um papo?”. “Venha”, respondeu prontamente. “Tô ocupado, mas pra você sempre tenho um tempinho”.