Luana Sena

Amar e escrever à máquina

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Elis – qualquer canto é menor do que a vida

Sim, eu vi Elis. Não estava com nenhum frisson pelo trailer, nem nada do tipo, portanto pode-se dizer que fui sem expectativas. Também não sou das maiores fãs, então fica registrado aqui que minhas impressões acerca do filme estão isentas de fanatismo ou adoração.

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Comprei o livro “Nada será como antes”, assim que chegou às livrarias. Nunca li. Está aqui do meu lado enquanto escrevo e penso “Eu deveria saber mais sobre Elis”. Entretanto, tudo que li até hoje sobre a era dos festivais (a minha parte preferida na história da música brasileira) e MPB, trazem Elis como uma personagem estourada, vaidosa, antipática e muitas vezes arrogante. Infelizmente, o filme reforça isso.

Digo infelizmente porque em determinado momento no cinema eu mesma achei que ela merecia mais. Fiquei esperando a história por trás. A carreira. A música. O dom. O estouro. Não veio. O filme focou numa Elis determinada, embora aflita, angustiada e aparentemente dependente de suas relações amorosas. Em certo ponto parece simplesmente um romance, a história da conturbada relação com Ronaldo Bôscoli – o amor que surge do ódio, as explosões de ciúme, e o declínio. Não me tocou.

É absolutamente fraco do ponto de vista da Elis artista – as parcerias, gente, cadê as parcerias? Belchior, Milton Nascimento, Renato Texeira, João Bosco, são sequer citados. Enquanto Nelson Motta, com quem se sabe, ela teve um namorico secreto, aparece de maneira quase didática na história.

O episódio com os militares, tenho que destacar. Quando saí do cinema discuti com uma amiga essa cena: Elis foi coagida e ameaçada para dar aquele show. Ela tinha um filho, ela estava com medo e confusa. Ok. Não desconsidero nada disso. O ponto é: eram motivos DELA. E enquanto ela fazia o que lhe convém, lutando por ela, pela segurança dela, pessoas morriam em porões lutando por um país.

Não tem como não fazer a comparação com Gal – o próprio filme nos convida a isso. Enquanto Elis trazia o canto sofrido, Gal Costa era a voz da juventude, da revolução. Ótimo que ela escolheu o caminho dela, mas repito, independente do motivo, cantar para os militares foi uma posição política. Novamente, enquanto ela limpava a barra dela, Gal era a voz da resistência trazendo notícias dos exilados.

Para mim fica a imagem de uma artista vaidosa que viveu a angústia de depender do aplauso dos outros – veja que ela não descansa até checar pessoalmente com Henfil o propósito da charge no Pasquim. Ela não conseguia não se importar. Lia as críticas, sofria com a opinião alheia. Me toca o diálogo com César Mariano, ela gritando “Esse jornalista falou que tudo que fiz foi uma merda!”, e ele dizendo “Não, Elis, ele disse que esse é o seu melhor disco”. Era uma questão de ponto de vista, era uma questão de escolher não sofrer, não se importar em não agradar. “O problema, Elis, é que nem você sabe o que você quer”.

Entendo muito. Entendo demais.
Até porque, analisar daqui, distante, é fácil.
No fundo eu sou um pouco Elis.

Minha estupidez

Adoro Fernanda Torres, tanto que dei um desconto naquele episódio em que ela falou umas bobagens sobre o feminismo. Polêmicas a parte, na semana passada ela estreou um programa chamado “Minha estupidez”, no GNT.

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Foram cinco episódios onde Fernanda Torres aparece entrevistando alguns intelectuais que admira – a edição mistura a conversa informal com uma esquete de ficção, adaptada livremente de um texto: Viva o Povo Brasileiro (João Ubaldo Ribeiro), José Agrippino de Paula, Shakespeare e outros tantos textos desses que nos trazem a sensação de sermos estúpidos.

O primeiro episódio me pegou de cara: Fernanda apresenta sua estante de livros, herdada do avô. “Esse programa nasceu dessa estante aqui”, afirma. “Por mais que eu tenha lido e amado os livros que eu li, eles se reduzem a isso aqui. Ou seja: nada, perto do que existe pra se ler”. E com a perplexidade de quem se reconhece miúdo, conclui: “Essa estante de certa maneira mede o tamanho da minha estupidez”.

A entrevista com João Ubaldo Ribeiro foi gravada em 2008. Fernanda confessa que apesar de ter feito “A casa dos budas ditosos” no palco por anos, nunca havia lido um livro fundamental do autor: “Viva o povo brasileiro”, de 1984. Ela resolve relatar isso pessoalmente a Ubaldo.

Fernanda não é uma repórter – esse é outro grande charme. Na contramão daqueles que se preparam lendo tudo sobre alguém a quem vai entrevistar, ela escancara a ignorância, a fragilidade, a vulnerabilidade – e, não podemos negar que a intimidade com o entrevistado acaba o deixando à vontade para também transparecer as suas.

É assim que temos Ubaldo dizendo: “Eu lia muita coisa sem entender coisa nenhuma”, uma antropóloga falando da burrice do etnocídio, uma ministra preocupada com a força da palavra, Caetano Veloso dizendo que perdeu dois anos no colégio e um agrônomo que, ao falar do antropoceno (período geólogico que estamos vivendo, caracterizado pelo impacto da intervenção humana no planeta) faz a gente se sentir ao mesmo tempo culpado e insignificante.

Ideia original, conversas que rendem longuíssimos debates e reflexões – tudo isso pescado das lembranças de Fernanda da infância, as dúvidas, as questões existenciais e a conclusão a qual só os grandes conseguem chegar: a certeza da nossa ignorância.

Bora triscar?

15138504_1345085435510971_7331478473021663329_oQuando eu era criança, pouco existiam os programas de criança. A gente meio que acompanhava os adultos e ficava por ali relegada a ambientes noturnos, conversas estranhas, e no máximo aparecia alguém para ligar uma tv, botar um desenho. Os anos 90 trouxeram isso dos shoppings e da tecnologia, a nossa descoberta – até tardia, pode-se dizer – de cinema e brinquedos eletrônicos. Era tudo novo e bom, mas era uma diversão inteiramente associada ao consumo, a qual poucos tinham acesso e da qual pouco nos livramos.

Esse pequeno arrodeio é pra dizer que me enche de alegria a proposta do Trisca– Festival de Arte para Crianças, que acontece entre os dias 23 e 27 em Teresina, Parnaíba e Floriano. Na programação, são mais de 10 espetáculos, oficinas, workshop, cinema, bate-papo e exposições, envolvendo arte circense, teatro, música, literatura e grupos do Piauí, Ceará, São Paulo, Minas Gerais e Santa Catarina. Tudo de graça, em muitos espaços da cidade.

Destaco aqui a ideia do Jardim Sensorial, produzido pelos artistas Hudson Melo, Josélia Neves e Rosa Prado – é tudo lindo e lúdico, pensado para ver, mexer, sentir e ouvir.

O Trisca tem direção artística do Canteiro (Criação, Produção e Práticas artísticas), patrocínio da Secult e do Sesc. É a primeira edição, e já vale o nosso apoio só pela iniciativa de pensar espaços para crianças, num mundo onde acostumamos a pagar o playground em churrascaria. Para Layane Holanda, uma das gestoras do projeto, insistir na potência da arte, dos ambientes sensíveis, do encontro é urgente – e é nosso papel para as novas gerações. Repare como as crianças triscam em tudo, toda hora. É o jeito delas de nos convidar pra ver o mundo.

Quando?
23 a 27 de novembro.
Onde?
Clube dos Diários, Teatro do Boi, 4 de Setembro, Potycabana…. confira a programação aqui!

Cinema Novo

Eryk Rocha não tá a fim de te explicar nada. Seu documentário, escolhido como o melhor na seleção oficial do Festival de Cannes em maio é um filme-homenagem ao movimento que discutiu um novo rumo para o cinema nacional nos anos 50.

Fernanda Montenegro em cena do filme 'A Falecida', um dos destaques do documentário 'Cinema Novo'

Fernanda Montenegro em cena do filme ‘A Falecida’, um dos destaques do documentário ‘Cinema Novo’

Não é um filme para principiantes. Foge do didatismo e os depoimentos que relatam a produção da época, são, talvez, da própria época – não há distanciamento que permita uma reflexão histórica, mas há, sim, um olhar muito crítico. Glauber Rocha, Ruy Guerra, Joaquim Pedro de Andrade, Nelson Pereira dos Santos (e às vezes, a esse grupo de juntava Vinícius de Moraes e, na França, até Edgar Morin) estão lá debatendo suas próprias produções sem nenhum romantismo.

Para mim o doc é uma espécie de bricolagem – sendo que não estamos falando de amadorismo, mas sim de alguém que de tão familiarizado com o assunto, se permitiu romper, inclusive, com o recorte temporal do Cinema Novo. É um filme para falar de outros filmes, e ele faz isso utilizando menos a linguagem documental e mais a montagem de recortes de cenas, trilhas e falas selecionadas em mais de 500 horas de material (foram nove meses de montagem e três da edição de som, em um projeto iniciado quase dez anos atrás, revelou o diretor).

Cinema Novo é um brinde aqueles que conseguiram enxergar o Brasil em seu contexto de país subdesenvolvido– sem disfarce, sem artifícios. Isso está na pele dos retirantes, na luz natural, na discussão das questões ligadas a nossa realidade. “O Cinema Novo procurou tratar dos problemas do povo, mas não alcançou o sucesso popular”, diz Cacá Diegues, constatando que o movimento foi vítima de seu próprio alvo. Ele observa a sua época, ou quem sabe, a nossa.

 

O essencial à vida

Engana-se quem pensa que um repórter deve ser, antes de mais nada, alguém que sabe o caminho a seguir. Obviamente preparar-se rende boa economia de tempo durante um percurso – esteja você conduzindo um carro, um navio, ou só um texto mesmo. De vez em quando, perder-se no mar de informações pode ser perigoso e totalmente útil.

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“Quando eu não tiver curiosidade pela vida, é melhor não viver mais”

Não é de hoje o meu preconceito com pautas. Tenho mesmo é um histórico de discriminação e cara feia para muitos assuntos. Na reunião de pauta (e na vida), talvez eu seja sempre aquela no canto, reclamando de tudo. Uma hora, talvez, eu melhore. Mas por enquanto eu vou aceitando e pegando cada ideia com goladas de resignação.

Foi assim que eu acabei indo pesquisar sobre o maior paisagista moderno do século XX, no mundo, o Burle Marx. De quem eu algum dia ouvi, levemente, falar. Fiz meu primeiro contato com alguém – consegui um número. Liguei, queria tudo pra ontem, ela iria viajar. Não sei se foi minha voz triste de um lado ou a presteza do outro, conseguiu me encaixar na agenda. Uma horinha, uma aula, um livro e uma repórter feliz.

Depois vieram outras – “olha eu tenho alguns minutos no fim da tarde antes de uma palestra – e antes deu pegar um voo”. Foi o suficiente. Corri, me perdi, ganhei outro livro. “Fulana também é especialista no assunto, ela pode se juntar a nós”, e a roda foi crescendo, o coração acelerando.

Mais um nome, um telefone, um email, uma sugestão. “Mas por que isso é tão importante?”, a pergunta que inverteu a lógica do eu-pergunto-você-responde.  Até agora, a mim parece mais sensato responder: porque, talvez, ninguém nunca tenha perguntado.

Volto a falar com a primeira fonte. “Consegui essa foto!” – mostro no Whatsapp. Era quase meia-noite e estávamos, nós duas, arrepiadas com uma imagem.

Consigo mais três telefones. “Minha mãe falava direto com ele!” – agora me sinto mais íntima, mais perto da história. O quebra-cabeça vai fechando, vai ficando incrível, vai ficando intenso.

Aqui estou no que chamo de lipoaspiração do texto – tira as gordurinhas, corta todo o excesso – e ainda me corrói a ideia de não ter o título perfeito. Não tem fórmula, não tem regra: apenas quando for o certo, você saberá. É sensitivo, quase como os jardins que ele fazia. Vejo mais um vídeo, leio mais um treco passando a vista e opa, “por que eu ia pulando essa linha?”, penso me recriminando. Ali está. Foi a Tarsila do Amaral que disse, mas tenho certeza de que ela não iria contrapor essa homenagem.

É a última hora do dia 4 de outubro, não por acaso, o dia do paisagista, quando finalmente boto o último ponto. Conclui o raciocínio, mais uma história que se fecha, um amor a menos – ou quem sabe a mais – nessa vida.

Realmente, Burle Marx, é preciso curiosidade pra viver.