para ler ouvindo

Não faz tanto tempo assim o Piauí foi excluído do mapa por uma publicação editada no Paraná. 251.529 quilômetros quadrados de área simplesmente extintos por um livro de geografia. O Piauí, e o Nordeste como um todo, é Bacurau.

 

O filme de Kleber Mendonça Filho e Juliano Dornelles – premiado em Cannes, Munique e Lima e visto por 20 mil brasileiros só na pré-estreia – vai te fazer sair do cinema tudo, menos do mesmo jeito. Para mim, que gosto muito de Aquarius mas acho O Som ao redor só ok, é o filme mais maduro do diretor pernambucano até aqui.

Na trama, Bacurau é um vilarejo perdido a oeste de Pernambuco, concentrador de todos os problemas que assolam o sertão: escassez de água, falta de assistência médica, descaso dos governantes, hibridização da cultura e a chegada das ferramentas de comunicação, também. Não estamos – nós, nordestinos – tão tecnicamente desconectados do mundo o quanto se ousa julgar.

Naquele lugar, onde quase nada chega e onde quase tudo falta (as cenas do prefeito Tony Júnior poderiam ser cômicas se não fossem tão dolorosamente reais), a comunidade encontrou um jeito de se auto organizar: quem faz as vezes de Estado são alguns dos moradores cujos poderes foram conquistados seja pelo respeito à idade, ao conhecimento, à intransigência ou mesmo ao uso da força.

São eles: o sábio professor Plínio – que numa das cenas mais bonitas tenta ensinar geografia a crianças com autoestima sabotada pela inexistência de Bacurau no mapa -, o veterano Damiano, um tipo curandeiro que concentra a sabedoria ancestral da aldeia; Acácio/Pacote, o ex-bandido redimido; Lunga, espécie de cangaceiro trans, o filho pródigo ou líder do morro; e a controversa médica Domingas, perfeitamente vivida por Sônia Braga.

 

Num primeiro momento, ao misturar disco voador e sertanejo, o enredo pode até parecer sem sentido – somos levados a crer que o foco está na personagem Teresa, chegando a Bacurau para o enterro da avó. Mas leva pouco tempo para entender que o personagem principal de Bacurau não é apenas um: é a comunidade, é o comum.

Já nos primeiros minutos de projeção, a cena da mala vermelha – que Teresa arrasta por uma estrada de terra até chegar em casa – é a que melhor descreve essa personagem “comum”: de mão em mão, a mala é conduzida pelos moradores de Bacurau até chegar ao quarto, num trabalho sincronizado e coletivo que resume com precisão o espírito daquela comunidade.

Mortes estranhas e brutais começam a atormentar a pacata Bacurau, num misto de faroeste hollywoodiano com cinema novo – Kill Bill fica no chinelo perto do iminente extermínio proposto pela distopia de Kleber Mendonça. Enquanto cabeças rolam sem nenhum resquício de piedade, os moradores desencanam de tentar descobrir quem é, afinal, o seu algoz, e partem para uma surpreendente estratégia de guerrilha.

Mesmo com toda a tecnologia da informação disponível, os gringos exterminadores (que aqui podem ser interpretados como o Estado, os políticos, a polícia e, se voltarmos um pouco mais na história, os próprios colonizadores do Brasil) não contavam com a força da união e, é claro, do “poderoso psicotrópico” que, ao invés de paliativo para transtornos contemporâneos como ansiedade e solidão, serve como pílula de coragem para aquela região.

Fica todo mundo doidão, com a droguinha do seu Damiano – convencidos de que excluídos de seus direitos estão também isentos de suas obrigações. Não faz nenhum sentido um dilema moral aqui – não há o básico sendo ofertado àquela comunidade, e não estou falando de água.

Os moradores de Bacurau são desprezados e subestimados – destaque para a resposta pontual que o guri dá ao menosprezo disfarçado de interesse da “turista”: “quem nasce em Bacurau é o quê?” – “é gente, ué” – Os princípios éticos não são cobrados dos matadores forasteiros que, aliás, não perdem a chance de eliminar os discordantes – é um casal de motoqueiros não-estrangeiros, mas podia ser a classe média brasileira sem a menor consciência de classe – e, na tentativa ridícula de igualar-se, atentam contra o seu próprio povo. Se não é a melhor cena, a reunião da dupla brasileira com a equipe gringa traz, sem dúvida, um dos melhores diálogos.

 

É curioso aqui no sudeste, durante as cenas de combate, perceber a sala de cinema torcendo pela vitória e resistência dos moradores de Bacurau. Ora, Bacurau é a Batalha do Jenipapo do – um dia também esquecido – Piauí, os jovens da periferia, o estudante que você quer ver fora da universidade, a bicha que te causa repulsa, os indígenas, os negros, as mulheres e os “paraíba”. De repente, explanada numa lógica mocinhos X vilões, lhe parece uma batalha cruel?

Numa guerra com condições tão desleais e injustas, a luta pela sobrevivência não pode ser vista como barbárie – a opção contrária a isso é morrer, não sei se ficou claro. O Nordeste pode ser sedutor como Domingas oferecendo guisado com suco de caju a Michel – mas não se engane: no minuto seguinte estamos a postos com nosso jaleco, vermelho de sangue, prontíssimos pra lutar. É Lampião que não nos deixa arregar.