A Leandra Leal fez um filme sobre o amor. Não importa o que você ouviu falar por aí sobre Divinas Divas – é um filme de gênero, bandeira LGBTI, de travesti, etc. O filme é, em essência, um recorte sobre o amor, sobre amar o que se é, o que se quer ser, e o que se pretende fazer.
Leandra fez um filme sobre arte – mas se a arte vem de dentro, tem um pouco de loucura e dor, é redundante dizer que é um filme sobre amor e arte. É sobre amor, e pronto. E ele está ali desde a ideia de revisitar o passado – a roupinha de vedete que ganhou ainda bebê, a primeira vez que subiu no palco de um teatro, a amizade com as drags, o passado do Rival. É interessantíssimo descobrir sobre a história de alguém que nos conta com paixão. “Teatro é uma missão”, relembra a fala do avô, enquanto desenha pra gente, sem nenhum pingo de ressentimento, a dor e delícia de carregar essa herança.
Cada uma das divas dava um filme totalmente a parte. Fico pensando na dificuldade de escolher aquelas, entre tantas, histórias. Porque montar um filme, lógico, é algo que exige a eterna angústia de fazer escolhas e saber abrir mão. Gosto como a diretora se coloca sutilmente no enredo – nós não a vemos, mas é a fala dela que conduz a narrativa. “Pelo olhar das divas, meu passado ganhava um brilho que eu não conhecia”, diz em off. E é pelo olhar de Leandra que a gente conhece o brilho das divas. “Elas nunca foram estranhas para mim”. Essa sensação de completa intimidade, é claro, nos é passada com maestria: 15 minutos de filme e Rogéria, Valéria, Jane, Camille, Fujika, Eloína, Marquesa e Brigitte já nos são amigas daquelas que a gente faz no banheiro da balada numa noite incrível.
Essas oito maravilhosas, juntas, formaram um grupo que testemunhou o auge da Cinelândia nos anos 1970 – o teatro Rival, do avô de Leandra, foi o primeiro palco a abrir espaço para homens vestidos de mulheres apresentarem seus espetáculos. O documentário, lançado este ano, acompanha o reencontro do grupo para uma apresentação especial, em 2014. É a estreia de Leandra como diretora.
“A arte é divina demais para ser normal”, diz Camille K em um dos depoimentos. Acho que essa coisa da arte existir porque a vida não é suficiente fica mesmo muito clara nos relatos de todas as divas, bem como na insistência de Leandra em fazer o filme acontecer (foram 10 anos entre produção, pesquisa e crowdfunding), nas histórias tão diversas quanto intensas de amores. E tem pra todos os gostos: Camille namorando um garotão, Fujika viúva saudosa e Jane Di Castro fazendo bodas de ouro com o boy que conheceu na plateia de um dos shows, em 1967 – a declaração dele é uma das cenas mais emocionantes de todo o filme. Tem ainda Rogéria descrevendo a diferença entre amor e tesão, em um ponto altíssimo: “Pra que ter apenas um se eu posso ter vários?”. Aprende com a rainha, meuamô.
Teresina teve uma sessão comentada do filme, com a presença, além de Leandra, da diva Jane Di Castro – memória viva, ali, da tela pra poltrona nos contando – e cantando – ao vivo sobre o dia em que abriu o camburão e livrou todas as amigas de levar cana. Leandra no sincerão dizendo que tá ferrada pra pagar o filme, mas venderia o carro e a casa pela trilha sonora. A grandeza dela em reconhecer no cinema a possibilidade de expandir seus próprios limites – e, por tabela, expandir os nossos, mesmo explicando que toda obra é o retrato do limite do autor em certo tempo.
Para mim Divinas Divas é uma colagem de múltiplas histórias de amor. Ele é uma constante em tudo: nas amizades cheias de tretas, na resistência, na vaidade, na música, na intimidade. A bicha horrorosa que se chamava “bonitinha”. A diferença taxada como loucura. As noites de boate, o preconceito, a prostituição. Os anos 70, o teatro, a boemia, o Rio. Eu tô aqui dando um google com saudade da Marquesa como uma amiga querida que partiu antes da hora. Parabéns, Leandra: seu amor me pegou.